Pinturas, da esquerda para a direita: Gregório Lopes, Adoração dos Pastores, c. 1535, retábulo de Santos-o-Novo, MNAA; Gregório Lopes, Última Ceia, 1536-8, Igreja de São João Baptista de Tomar; Mestre da Lourinhã, Nossa Senhora com o Menino e Anjos, 1515, Convento de Nossa Senhora da Serra, Almeirim.
A segunda tertúlia PÚBLICO/Eleven teve como tema a pintura portuguesa antiga. Nos quadros viram-se poucos alimentos, mas no jantar não foi assim. Houve salada com pastéis de camarão e bacalhau, borrego agridoce com favas e chouriço e farófias com crocante de Tentúgal. Alexandra Prado Coelho ficou a saber que no século XVI abusava-se das especiarias
Tivemos muita sorte - não há dúvidas sobre isso. Já o tínhamos percebido quando os pratos concebidos pelo chefe do Eleven, Joachim Koerper, começaram a chegar à mesa, mas tivemos a confirmação absoluta quando o conservador do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), Joaquim Caetano, nos mostrou as primeiras imagens.
Foi o segundo jantar temático das tertúlias PÚBLICO/Eleven - um tema de cultura, desenvolvido por um orador convidado, é o pretexto e inspiração para o que se come. E é aí que entra a sorte. É que por muito atentamente que olhássemos para as reproduções de quadros de pintores portugueses do século XVI - os chamados primitivos, que mereceram uma exposição recente no MNAA da qual Caetano foi precisamente um dos comissários - dificilmente conseguíamos vislumbrar sinais de comida.
Havia, é certo, a Última Ceia, de Gregório Lopes (1936-8, Igreja de São João Baptista de Tomar), mas Jesus e os seus discípulos pareciam-nos bastante frugais, tendo em cima da mesa apenas uma taça, dois rábanos finos e esbranquiçados, e alguns pães. Nada que nos animasse.
Havia também o Nascimento da Virgem, de Garcia Fernandes (c. 1525, Igreja do Castelo de Montemor-o-Velho), mas tirando o fogareiro em primeiro plano, via-se apenas uma galinha ainda por cozinhar, para a qual Santa Ana, a mãe da Virgem, apontava debilmente. Ao lado, na Morte da Virgem, de Jorge Leal, Gregório Lopes e Garcia Fernandes (1523, Retábulo da Igreja do Paraíso), surgiam umas discretas taças com o que adivinharíamos serem doces. E assim era também nas outras imagens.
Felizmente, Joachim Koerper, se bem que influenciado pela época, não seguiu esta linha de frugalidade e pela mesa desfilaram uma salada com pastéis de camarão e bacalhau, seguido por um borrego agridoce com favas e chouriço acompanhado por arroz de passas e, para finalizar, farófias com crocante de Tentúgal, tudo acompanhado por vinhos do Douro - primeiro um Avídagos Branco 2010, depois um Thyro Branco 2009, para a carne um Quinta do Além Tanha Grande Reserva Tinto 2007, e para a sobremesa um Thyro Colheita Tardia 2009. Um cenário muito diferente do das pinturas para as quais olhávamos.
Joaquim Caetano, que para além de historiador de arte é um gastrónomo, confirmou que os ingredientes usados pelo chefe eram perfeitamente compatíveis com a época sobre a qual ia falar. Acontece é que, disse, "a pintura não será a forma mais correcta de se saber o que se comia em Portugal no final do século XV, início do XVI" porque os temas eram limitados a alguns (e nem por isso muitos) episódios religiosos.
"A iconografia religiosa entra mais cedo do que noutros países. Em Portugal começamos a ter temas muito estandardizados: a infância e a Paixão de Cristo. Os temas mais complexos tendem a desaparecer", afirma. "A nossa pintura é iconograficamente muito restritiva. Portugal é verdadeiramente bom a cingir-se." Ainda assim, vistos pelos olhos de Caetano, os quadros revelam mais do que parecia à primeira vista.
O historiador começou, no entanto, por outras fontes, eventualmente mais ricas para dar o contexto da época - Gil Vicente e Auto da Feira, com as vendedeiras a anunciar favas, estorninhos, láparos (coelhos pequenos); e relatos de visitantes estrangeiros, que achavam a comida em Portugal "uma porcaria" e que estranhavam em particular um prato feito com "coentros, alhos, azeite e migas de pão" - a açorda. Pelas ruas de Lisboa havia mulheres a vender cuscuz e peras cozidas - "uma espécie de fast-food" da época - viam-se (como nas pinturas) muitos fogareiros de pé alto, que "eram as verdadeiras cozinhas da altura" e por todo o lado cheirava a peixe assado, algo que aparentemente não agradava a alguns dos nossos visitantes.
"Os Descobrimentos tinham trazido novidades extraordinárias, mas que demoraram algum tempo a entrar na cozinha. No século XVI são sabores novos que chegam e que são consumidos como tal", explica Caetano. O açúcar, por exemplo, "põe-se em tudo", em doses exageradas. No livro de receitas da Infanta D. Maria, provavelmente "um dos piores do mundo", a receita dos ovos mexidos leva uma escudela (um quilo) de açúcar. E todas as receitas "levam gengibre, noz-moscada, canela em doses iguais". Ninguém sabia exactamente como usar as novas especiarias - mais um sinal de que tivemos muita sorte pelo facto de o chefe do Eleven não ter decidido seguir à letra os sabores do tempo dos Descobrimentos.
E o que nos ensinam, afinal, as pinturas? Só o olhar de um especialista permitiria, por exemplo, perceber o que fazem dois pajens ao fundo da Última Ceia de Gregório Lopes. Caetano explica: "Um deles despeja vinho de um garrafão para uma salva, para só depois ir para a jarra e ser servido. A salva de prata era uma peça de enorme importância porque acreditava-se que só a prata permitiria ver se o vinho estava envenenado."
Noutra Última Ceia, a de Francisco Henriques (1508-12, Convento de São Francisco de Évora), Jesus e os apóstolos estão a comer borrego ou cabrito, comida tradicional da Páscoa. Caetano nota, contudo, que o pão, como é habitual nas representações da Última Ceia, é alto, "uma marca da cristandade" - não existe aqui o pão ázimo, sem fermento, da Páscoa judaica. Tal como não existem talheres. Os convivas usam apenas facas - e um deles está mesmo a palitar os dentes com uma.
Essa ausência de pratos e talhares percebe-se melhor quando se sabe que "a cozinha antiga tinha muito maior componente de comidas frias, pastéis, empadas, peixe fumado, fruta". Era comida que podia ser servida em qualquer altura e que não se estragava com facilidade.
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Onde surge comida mais rica é em "situações de aflição" - e aí temos o nascimento da Virgem, em que Santa Ana, que acaba de dar à luz, precisa de alimentos para se recompor (é por isso que está a escolher a galinha mais gorda no quadro já referido, de Garcia Fernandes), ou na morte da Virgem, onde numa pequena bancada aparecem representados doces e frutas. "Sempre que há a representação de um doente há aos pés ou ao lado da cama uma mesa baixa com marmelada, mel, compotas, pães de açúcar, uma comida mais energética para os doentes."
A representação dos alimentos têm uma enorme importância ao longo da História, sublinha Caetano. A partir de 1515, por exemplo, surge o tema da adoração dos pastores ao menino Jesus e "o povo entra na pintura, com dádivas de produtos populares, ovos, lebres, perdizes". E, falando agora já não apenas de Portugal, alguma coisa muda quando o italiano Annibale Carraci pinta O Comedor de Feijões. "A pintura, que até aí era uma coisa nobre e elevada, que tinha uma história por trás, torna-se com esse quadro uma representação. Quanto mais "baixo" é o tema, mais a pintura vive da forma como representa e não tanto daquilo que representa. Ganha autonomia em relação ao referente. Isso inaugura o século XVII".
Mas aqui, no jantar do Eleven, estamos a falar de uma pintura anterior, e de uma época mais frugal. Só que, felizmente - repetimos - quando olhou para ela, o chefe viu mais o borrego da Última Ceia do que os pálidos rábanos que também repousavam na mesa dos apóstolos.
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Pinturas, da esquerda para a direita: Gregório Lopes, Adoração dos Pastores, c. 1535, retábulo de Santos-o-Novo, MNAA; Gregório Lopes, Última Ceia, 1536-8, Igreja de São João Baptista de Tomar; Mestre da Lourinhã, Nossa Senhora com o Menino e Anjos, 1515, Convento de Nossa Senhora da Serra, Almeirim.
A segunda tertúlia PÚBLICO/Eleven teve como tema a pintura portuguesa antiga. Nos quadros viram-se poucos alimentos, mas no jantar não foi assim. Houve salada com pastéis de camarão e bacalhau, borrego agridoce com favas e chouriço e farófias com crocante de Tentúgal. Alexandra Prado Coelho ficou a saber que no século XVI abusava-se das especiarias
Tivemos muita sorte - não há dúvidas sobre isso. Já o tínhamos percebido quando os pratos concebidos pelo chefe do Eleven, Joachim Koerper, começaram a chegar à mesa, mas tivemos a confirmação absoluta quando o conservador do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), Joaquim Caetano, nos mostrou as primeiras imagens.
Foi o segundo jantar temático das tertúlias PÚBLICO/Eleven - um tema de cultura, desenvolvido por um orador convidado, é o pretexto e inspiração para o que se come. E é aí que entra a sorte. É que por muito atentamente que olhássemos para as reproduções de quadros de pintores portugueses do século XVI - os chamados primitivos, que mereceram uma exposição recente no MNAA da qual Caetano foi precisamente um dos comissários - dificilmente conseguíamos vislumbrar sinais de comida.
Havia, é certo, a Última Ceia, de Gregório Lopes (1936-8, Igreja de São João Baptista de Tomar), mas Jesus e os seus discípulos pareciam-nos bastante frugais, tendo em cima da mesa apenas uma taça, dois rábanos finos e esbranquiçados, e alguns pães. Nada que nos animasse.
Havia também o Nascimento da Virgem, de Garcia Fernandes (c. 1525, Igreja do Castelo de Montemor-o-Velho), mas tirando o fogareiro em primeiro plano, via-se apenas uma galinha ainda por cozinhar, para a qual Santa Ana, a mãe da Virgem, apontava debilmente. Ao lado, na Morte da Virgem, de Jorge Leal, Gregório Lopes e Garcia Fernandes (1523, Retábulo da Igreja do Paraíso), surgiam umas discretas taças com o que adivinharíamos serem doces. E assim era também nas outras imagens.
Felizmente, Joachim Koerper, se bem que influenciado pela época, não seguiu esta linha de frugalidade e pela mesa desfilaram uma salada com pastéis de camarão e bacalhau, seguido por um borrego agridoce com favas e chouriço acompanhado por arroz de passas e, para finalizar, farófias com crocante de Tentúgal, tudo acompanhado por vinhos do Douro - primeiro um Avídagos Branco 2010, depois um Thyro Branco 2009, para a carne um Quinta do Além Tanha Grande Reserva Tinto 2007, e para a sobremesa um Thyro Colheita Tardia 2009. Um cenário muito diferente do das pinturas para as quais olhávamos.
Joaquim Caetano, que para além de historiador de arte é um gastrónomo, confirmou que os ingredientes usados pelo chefe eram perfeitamente compatíveis com a época sobre a qual ia falar. Acontece é que, disse, "a pintura não será a forma mais correcta de se saber o que se comia em Portugal no final do século XV, início do XVI" porque os temas eram limitados a alguns (e nem por isso muitos) episódios religiosos.
"A iconografia religiosa entra mais cedo do que noutros países. Em Portugal começamos a ter temas muito estandardizados: a infância e a Paixão de Cristo. Os temas mais complexos tendem a desaparecer", afirma. "A nossa pintura é iconograficamente muito restritiva. Portugal é verdadeiramente bom a cingir-se." Ainda assim, vistos pelos olhos de Caetano, os quadros revelam mais do que parecia à primeira vista.
O historiador começou, no entanto, por outras fontes, eventualmente mais ricas para dar o contexto da época - Gil Vicente e Auto da Feira, com as vendedeiras a anunciar favas, estorninhos, láparos (coelhos pequenos); e relatos de visitantes estrangeiros, que achavam a comida em Portugal "uma porcaria" e que estranhavam em particular um prato feito com "coentros, alhos, azeite e migas de pão" - a açorda. Pelas ruas de Lisboa havia mulheres a vender cuscuz e peras cozidas - "uma espécie de fast-food" da época - viam-se (como nas pinturas) muitos fogareiros de pé alto, que "eram as verdadeiras cozinhas da altura" e por todo o lado cheirava a peixe assado, algo que aparentemente não agradava a alguns dos nossos visitantes.
"Os Descobrimentos tinham trazido novidades extraordinárias, mas que demoraram algum tempo a entrar na cozinha. No século XVI são sabores novos que chegam e que são consumidos como tal", explica Caetano. O açúcar, por exemplo, "põe-se em tudo", em doses exageradas. No livro de receitas da Infanta D. Maria, provavelmente "um dos piores do mundo", a receita dos ovos mexidos leva uma escudela (um quilo) de açúcar. E todas as receitas "levam gengibre, noz-moscada, canela em doses iguais". Ninguém sabia exactamente como usar as novas especiarias - mais um sinal de que tivemos muita sorte pelo facto de o chefe do Eleven não ter decidido seguir à letra os sabores do tempo dos Descobrimentos.
E o que nos ensinam, afinal, as pinturas? Só o olhar de um especialista permitiria, por exemplo, perceber o que fazem dois pajens ao fundo da Última Ceia de Gregório Lopes. Caetano explica: "Um deles despeja vinho de um garrafão para uma salva, para só depois ir para a jarra e ser servido. A salva de prata era uma peça de enorme importância porque acreditava-se que só a prata permitiria ver se o vinho estava envenenado."
Noutra Última Ceia, a de Francisco Henriques (1508-12, Convento de São Francisco de Évora), Jesus e os apóstolos estão a comer borrego ou cabrito, comida tradicional da Páscoa. Caetano nota, contudo, que o pão, como é habitual nas representações da Última Ceia, é alto, "uma marca da cristandade" - não existe aqui o pão ázimo, sem fermento, da Páscoa judaica. Tal como não existem talheres. Os convivas usam apenas facas - e um deles está mesmo a palitar os dentes com uma.
Essa ausência de pratos e talhares percebe-se melhor quando se sabe que "a cozinha antiga tinha muito maior componente de comidas frias, pastéis, empadas, peixe fumado, fruta". Era comida que podia ser servida em qualquer altura e que não se estragava com facilidade.
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Onde surge comida mais rica é em "situações de aflição" - e aí temos o nascimento da Virgem, em que Santa Ana, que acaba de dar à luz, precisa de alimentos para se recompor (é por isso que está a escolher a galinha mais gorda no quadro já referido, de Garcia Fernandes), ou na morte da Virgem, onde numa pequena bancada aparecem representados doces e frutas. "Sempre que há a representação de um doente há aos pés ou ao lado da cama uma mesa baixa com marmelada, mel, compotas, pães de açúcar, uma comida mais energética para os doentes."
A representação dos alimentos têm uma enorme importância ao longo da História, sublinha Caetano. A partir de 1515, por exemplo, surge o tema da adoração dos pastores ao menino Jesus e "o povo entra na pintura, com dádivas de produtos populares, ovos, lebres, perdizes". E, falando agora já não apenas de Portugal, alguma coisa muda quando o italiano Annibale Carraci pinta O Comedor de Feijões. "A pintura, que até aí era uma coisa nobre e elevada, que tinha uma história por trás, torna-se com esse quadro uma representação. Quanto mais "baixo" é o tema, mais a pintura vive da forma como representa e não tanto daquilo que representa. Ganha autonomia em relação ao referente. Isso inaugura o século XVII".
Mas aqui, no jantar do Eleven, estamos a falar de uma pintura anterior, e de uma época mais frugal. Só que, felizmente - repetimos - quando olhou para ela, o chefe viu mais o borrego da Última Ceia do que os pálidos rábanos que também repousavam na mesa dos apóstolos.