Tatoo

24-06-2011
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Esta é a body art deste século e os cidadãos que a fazem sem o saberem estão a realizar, na prática, um dos maiores desejos do filósofo Michel Foucault: o da assunção por cada sujeito de uma política do corpo.

Declaração de interesses: Eu gosto de tatuagens, do tatoo! A mais antiga lembrança é de uma âncora tatuada no bíceps do marinheiro regressado do Japão, num dos anos de 60. Depois recordo melhor as tatuagens rudes dos soldados: "Moçambique 1969", "Guiné 1970", "amor de mãe Cabinda 1971". Sabia-se que era para toda a vida e por isso era uma inscrição de fidelidade, uma marca na carne pública e até à morte. Não seria bem assim como o conta João do Rio a propósito das prostitutas que tatuavam no peito o nome dos amantes, mas que depois, na decepção do amor, desmanchavam a tatuagem com "sal de azedas e leite de mulher" e marcavam o mesmo nome no calcanhar, roçando a poeira, achincalhando o homem. Hoje as técnicas de cirurgia plástica facilitam o safar da tatuagem, o que de algum modo terá facilitado uma adesão tão global às tatuagens.

Parece que o tatoo foi trazido para o Ocidente pelo navegador inglês James Cook no século XVIII e teve a adesão de algumas figuras das cortes europeias, mas a sua difusão maciça foi feita entre os marinheiros, meretrizes, gangs de rufiões e criminosos. Talvez por causa desta associação esteve muito tempo ausente até que regressou em meados da década de noventa do século passado muitas vezes associado ao piercing. Um filme, "Of Skin & Metal", de Olga Schubart, apesar de bastante linear na documentação deste fenómeno, foi acolhido em Lisboa em 1997 com grande entusiasmo. E nos últimos dez anos o tatoo passou a ser vulgar. Já não é de uso apenas proletário. As actrizes de Hollywood fazem-no; fazem-no os surfistas, as empregadas dos centros comerciais e as professoras universitárias; o tatoo é interclassista, interracial. Fazem-no famílias inteiras tatuando um símbolo de identidade familiar; é usado como declaração poética escrita no corpo da amada no filme "The Pillow Book", de Peter Greenway; aparece como obra de arte: a tatuagem nas costas do artista Maurício Miranda e cujo contrato de aquisição implica a compra de todo o corpo enquanto vivo. Há ainda o tatoo memorial: no Texas, ao lado da maior base militar dos EUA, existe o River City Tattoo. Nesta loja, uma espécie de loja de conveniência, todos os dias (e durante a noite) dezenas de soldados atravessam a porta para serem tatuados. Aqui os recrutas marcam a sua individualidade através de uma tatuagem. Calcula-se que 95 por cento dos soldados do Exército Americano têm pelo menos uma. Muitas evocam práticas ancestrais índias de protecção, outras são slogans de guerreiros e outras ainda são apenas a identificação do soldado. Há um caso de um soldado que tatuou no tronco o nome de todos os seus companheiros mortos - 232 - na Guerra do Afeganistão.

Não há uma explicação que seja a única para o tatoo embora se possa dizer que, na maioria das situações, a realização do tatoo pode resultar em motivos identitários e em motivos de decoração do corpo. Parte do sucesso deste movimento global passa também pela liberdade de uma expressão sexual pública. Na verdade há uma componente de fetichização que o tatoo expressa. Mais atractivo quando adivinhado sob a roupa, menos quando mais explícito - de motivos florais e animais, ou de motivos arabizantes orientalistas - com todo o seu colorido, possibilita uma erotização do corpo no espaço público e no privado.

Mas o mais fascinante deste fenómeno é que é no início deste século que a body art, tantas vezes proclamada como arte iconoclasta e reivindicativa e pessoal, saiu das galerias de arte e das comunidades dos artistas para se instalar nos corpos dos cidadãos anónimos. Na verdade, o manifesto de Joseph Beuys que na década de setenta reclamava a arte para todos os cidadãos, os rituais corporais de Hermann Nitcher que esteticizavam as cicatrizes e o corpo tingido ou as acções-manifestos do grupo vienense onde protagonizava Arnuf Rainer que reclamavam a deslocação de uma arte nova para o corpo do artista têm agora, cinquenta anos depois, a sua materialização nos corpos actuais.

Esta é a body art deste século e os cidadãos que a fazem sem o saberem estão a realizar, na prática, um dos maiores desejos do filósofo Michel Foucault: o da assunção por cada sujeito de uma política do corpo. Hoje já não se proclamará de forma submissa: este é o meu corpo, mas é possível afirmar no acto do tatoo: Este corpo é meu!

Esta é a body art deste século e os cidadãos que a fazem sem o saberem estão a realizar, na prática, um dos maiores desejos do filósofo Michel Foucault: o da assunção por cada sujeito de uma política do corpo.

Declaração de interesses: Eu gosto de tatuagens, do tatoo! A mais antiga lembrança é de uma âncora tatuada no bíceps do marinheiro regressado do Japão, num dos anos de 60. Depois recordo melhor as tatuagens rudes dos soldados: "Moçambique 1969", "Guiné 1970", "amor de mãe Cabinda 1971". Sabia-se que era para toda a vida e por isso era uma inscrição de fidelidade, uma marca na carne pública e até à morte. Não seria bem assim como o conta João do Rio a propósito das prostitutas que tatuavam no peito o nome dos amantes, mas que depois, na decepção do amor, desmanchavam a tatuagem com "sal de azedas e leite de mulher" e marcavam o mesmo nome no calcanhar, roçando a poeira, achincalhando o homem. Hoje as técnicas de cirurgia plástica facilitam o safar da tatuagem, o que de algum modo terá facilitado uma adesão tão global às tatuagens.

Parece que o tatoo foi trazido para o Ocidente pelo navegador inglês James Cook no século XVIII e teve a adesão de algumas figuras das cortes europeias, mas a sua difusão maciça foi feita entre os marinheiros, meretrizes, gangs de rufiões e criminosos. Talvez por causa desta associação esteve muito tempo ausente até que regressou em meados da década de noventa do século passado muitas vezes associado ao piercing. Um filme, "Of Skin & Metal", de Olga Schubart, apesar de bastante linear na documentação deste fenómeno, foi acolhido em Lisboa em 1997 com grande entusiasmo. E nos últimos dez anos o tatoo passou a ser vulgar. Já não é de uso apenas proletário. As actrizes de Hollywood fazem-no; fazem-no os surfistas, as empregadas dos centros comerciais e as professoras universitárias; o tatoo é interclassista, interracial. Fazem-no famílias inteiras tatuando um símbolo de identidade familiar; é usado como declaração poética escrita no corpo da amada no filme "The Pillow Book", de Peter Greenway; aparece como obra de arte: a tatuagem nas costas do artista Maurício Miranda e cujo contrato de aquisição implica a compra de todo o corpo enquanto vivo. Há ainda o tatoo memorial: no Texas, ao lado da maior base militar dos EUA, existe o River City Tattoo. Nesta loja, uma espécie de loja de conveniência, todos os dias (e durante a noite) dezenas de soldados atravessam a porta para serem tatuados. Aqui os recrutas marcam a sua individualidade através de uma tatuagem. Calcula-se que 95 por cento dos soldados do Exército Americano têm pelo menos uma. Muitas evocam práticas ancestrais índias de protecção, outras são slogans de guerreiros e outras ainda são apenas a identificação do soldado. Há um caso de um soldado que tatuou no tronco o nome de todos os seus companheiros mortos - 232 - na Guerra do Afeganistão.

Não há uma explicação que seja a única para o tatoo embora se possa dizer que, na maioria das situações, a realização do tatoo pode resultar em motivos identitários e em motivos de decoração do corpo. Parte do sucesso deste movimento global passa também pela liberdade de uma expressão sexual pública. Na verdade há uma componente de fetichização que o tatoo expressa. Mais atractivo quando adivinhado sob a roupa, menos quando mais explícito - de motivos florais e animais, ou de motivos arabizantes orientalistas - com todo o seu colorido, possibilita uma erotização do corpo no espaço público e no privado.

Mas o mais fascinante deste fenómeno é que é no início deste século que a body art, tantas vezes proclamada como arte iconoclasta e reivindicativa e pessoal, saiu das galerias de arte e das comunidades dos artistas para se instalar nos corpos dos cidadãos anónimos. Na verdade, o manifesto de Joseph Beuys que na década de setenta reclamava a arte para todos os cidadãos, os rituais corporais de Hermann Nitcher que esteticizavam as cicatrizes e o corpo tingido ou as acções-manifestos do grupo vienense onde protagonizava Arnuf Rainer que reclamavam a deslocação de uma arte nova para o corpo do artista têm agora, cinquenta anos depois, a sua materialização nos corpos actuais.

Esta é a body art deste século e os cidadãos que a fazem sem o saberem estão a realizar, na prática, um dos maiores desejos do filósofo Michel Foucault: o da assunção por cada sujeito de uma política do corpo. Hoje já não se proclamará de forma submissa: este é o meu corpo, mas é possível afirmar no acto do tatoo: Este corpo é meu!

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