A última chamada

24-06-2011
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m homem recebeu um telefonema. Isto passou-se no Haiti, dias depois do terramoto. Alguém lhe ligou dos escombros de um prédio, e o homem reconheceu a voz. Era a prima de uma amiga da esposa, estava a ligar porque precisava de ser salva. O edifício onde vivia ruiu e ela ficou por baixo. Toneladas de betão e ferro caíram-lhe em cima, destruíram tudo, o prédio, que era moderno e tinha vários andares, ficou transformado num monte de entulho. Quem lá estava dentro não sobreviveu.

As equipas de salvamento nem prestavam muita atenção a esta zona de Port-au-Prince. Concentravam-se nas ruas do centro, de construções mais antigas, em cuja confusão de lixo e corpos ainda tudo era possível. Muitas pessoas ficaram encarceradas em carros, ou entre paredes. Era uma questão de procurar, com lanternas, pás, picaretas e cães.

Mas houve aquele telefonema. O homem falou com a improvável sobrevivente e contou a alguém, que por sua vez chamou uma equipa de peritos salvadores suecos. A operação durou um dia inteiro. Primeiro, por fendas e aberturas, entraram os cães K9, especializados em farejar sinais de vida sob camadas de terra e pedregulhos. Como o relatório canídeo fosse inconclusivo, entraram em cena os espeleólogos. Rastejavam entre lajes irregulares e tangentes, rasgavam a roupa e a carne a descer pelos aleatórios labirintos da destruição. Voltavam com objectos, vestígios, sinais, que eram interpretados por uma equipa de técnicos. Mergulhavam de novo nas entranhas do monstro esventrado, ainda aturdido e quente.

Traziam coisas pessoais, íntimas, cada vez mais próximas da pessoa. Uma carteira, um casaco de malha, uma escova de cabelo. Mas da suposta sobrevivente, nenhum sinal de vida. Nem um gemido, nem um movimento, nem um indício térmico.

O telefonema porém tinha existido, garantiam várias pessoas que chegavam ao local. A mulher ligara ao marido de uma amiga da prima e dera coordenadas muito precisas. Enquanto falava, ouvia-se até o som de água a correr, diziam as pessoas, relatando o que o homem referira, o que fazia agora os suecos seguirem os canos, à procura das zonas da cozinha ou da casa de banho.

O prédio implodira, as placas dos vários pisos acumularam-se umas sobre as outras sem hiatos, como prensas de chumbo. E no entanto, sob a massa inerte e silenciosa, uma mulher viva esperava ser salva. Ninguém (excepto os suecos) tinha dúvidas sobre isto. Parecia até normal e evidente que a tal prima da amiga da esposa... estivesse ali sob os nossos pés, a fazer telefonemas.

Num sismo ocorrido antes da era dos telemóveis, a situação seria inimaginável. Um ser humano sepultado sob todo aquele betão seria considerado isso mesmo: sepultado. A ligação com o mundo dos vivos estaria quebrada, quer ele estivesse morto ou vivo. A barreira está na incompreensão e incomunicabilidade, não na paragem do coração.

Hoje é diferente. As tecnologias reintroduziram no mundo a magia. Ninguém sabe como funciona um telemóvel, muito menos seria capaz de construir um. Mas não poderia viver sem eles. Tal como os amuletos vudu, os gadgets íntimos e incompreensíveis que usamos abrem o campo do possível até ao infinito.

A mulher que de facto vivia naquela casa foi encontrada. Mas nem quando os peritos provaram que deixara de respirar vários dias antes alguém duvidou de que ela tivesse feito aquela última chamada. Talvez pouco antes, ou no ápice da morte. Ou depois. a

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Jornalista

paulo.moura@publico.pt

m homem recebeu um telefonema. Isto passou-se no Haiti, dias depois do terramoto. Alguém lhe ligou dos escombros de um prédio, e o homem reconheceu a voz. Era a prima de uma amiga da esposa, estava a ligar porque precisava de ser salva. O edifício onde vivia ruiu e ela ficou por baixo. Toneladas de betão e ferro caíram-lhe em cima, destruíram tudo, o prédio, que era moderno e tinha vários andares, ficou transformado num monte de entulho. Quem lá estava dentro não sobreviveu.

As equipas de salvamento nem prestavam muita atenção a esta zona de Port-au-Prince. Concentravam-se nas ruas do centro, de construções mais antigas, em cuja confusão de lixo e corpos ainda tudo era possível. Muitas pessoas ficaram encarceradas em carros, ou entre paredes. Era uma questão de procurar, com lanternas, pás, picaretas e cães.

Mas houve aquele telefonema. O homem falou com a improvável sobrevivente e contou a alguém, que por sua vez chamou uma equipa de peritos salvadores suecos. A operação durou um dia inteiro. Primeiro, por fendas e aberturas, entraram os cães K9, especializados em farejar sinais de vida sob camadas de terra e pedregulhos. Como o relatório canídeo fosse inconclusivo, entraram em cena os espeleólogos. Rastejavam entre lajes irregulares e tangentes, rasgavam a roupa e a carne a descer pelos aleatórios labirintos da destruição. Voltavam com objectos, vestígios, sinais, que eram interpretados por uma equipa de técnicos. Mergulhavam de novo nas entranhas do monstro esventrado, ainda aturdido e quente.

Traziam coisas pessoais, íntimas, cada vez mais próximas da pessoa. Uma carteira, um casaco de malha, uma escova de cabelo. Mas da suposta sobrevivente, nenhum sinal de vida. Nem um gemido, nem um movimento, nem um indício térmico.

O telefonema porém tinha existido, garantiam várias pessoas que chegavam ao local. A mulher ligara ao marido de uma amiga da prima e dera coordenadas muito precisas. Enquanto falava, ouvia-se até o som de água a correr, diziam as pessoas, relatando o que o homem referira, o que fazia agora os suecos seguirem os canos, à procura das zonas da cozinha ou da casa de banho.

O prédio implodira, as placas dos vários pisos acumularam-se umas sobre as outras sem hiatos, como prensas de chumbo. E no entanto, sob a massa inerte e silenciosa, uma mulher viva esperava ser salva. Ninguém (excepto os suecos) tinha dúvidas sobre isto. Parecia até normal e evidente que a tal prima da amiga da esposa... estivesse ali sob os nossos pés, a fazer telefonemas.

Num sismo ocorrido antes da era dos telemóveis, a situação seria inimaginável. Um ser humano sepultado sob todo aquele betão seria considerado isso mesmo: sepultado. A ligação com o mundo dos vivos estaria quebrada, quer ele estivesse morto ou vivo. A barreira está na incompreensão e incomunicabilidade, não na paragem do coração.

Hoje é diferente. As tecnologias reintroduziram no mundo a magia. Ninguém sabe como funciona um telemóvel, muito menos seria capaz de construir um. Mas não poderia viver sem eles. Tal como os amuletos vudu, os gadgets íntimos e incompreensíveis que usamos abrem o campo do possível até ao infinito.

A mulher que de facto vivia naquela casa foi encontrada. Mas nem quando os peritos provaram que deixara de respirar vários dias antes alguém duvidou de que ela tivesse feito aquela última chamada. Talvez pouco antes, ou no ápice da morte. Ou depois. a

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