Márcia Luz "É possível renascer"

25-06-2011
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Márcia fez voluntariado durante sete meses no México. Agora está em Chisinau, na Moldávia CORTESIA LUCAS FARCY

Mandou o Marketing às urtigas. Tem 30 anos e faz actividades com vítimas de tráfico humano na Moldávia. Está no Serviço Voluntário Europeu, programa em que participam 135 portugueses, sobretudo, na Polónia, na República Checa, na Áustria, na França, na Turquia, no Reino Unido, em Itália, na Letónia, na Alemanha e em Espanha. Este é o Ano Europeu do Voluntariado.

Falava-se muito de tráfico humano no México. É um problema muito grande por lá. Procurei informação. Percebi que a Europa de Leste é um dos maiores focos. Na página do Serviço Voluntário Europeu encontrei a possibilidade de vir para um centro de assistência e protecção a vítimas e a potenciais vítimas de tráfico, em Chisinau, na República da Moldávia.

Sou de Lisboa e nunca tinha trabalhado com vítimas de tráfico humano. Estudei Publicidade e Marketing. Ainda trabalhei quarto anos na área, mas não gostei. Aquilo não era para mim. Devia ter percebido isso durante o curso. Trabalhar para o lucro? Não. Isso nada tem a ver comigo.

Não aconteceu de repente. Fui percebendo que não era feliz. Sabes aquela música dos Humanos, com letra de António Variações? "Muda de vida se tu não vives satisfeito/Muda de vida, estás sempre a tempo de mudar/Muda de vida, não deves viver contrafeito." Era isso mesmo. Tinha de mudar de vida. Tinha de me despedir, de fazer outra coisa.

Foi um choque para os meus pais: "E agora? O que vais fazer?" Têm outra mentalidade. A minha mãe trabalha na cozinha de uma cantina e o meu pai faz molduras. Estávamos em 2008. Já se falava muito em crise económica. Ainda me tentaram demover: "Não é altura para isso."

Somos seis irmãos. Tivemos sempre de nos ajudar uns aos outros. Para mim, ajudar é natural. Sempre fiz voluntariado. Nas férias, nos fins-de-semana, quando podia, ia para a Casa do Sol - Associação de Apoio a Crianças Infectadas pelo Vírus da Sida. Recebia muito mais do que dava.

Pus-me na Internet à procura de voluntariado no estrangeiro. Surgiu uma oportunidade em bairros degradados do México - com uma Homes for Hope, uma associação que constrói prefabricados. Atrai-me o país, a América Latina, e a organização, o trabalho com crianças.

Portugal: zona de conforto

Parti seis meses depois de me ter despedido. Quando o momento chegou, estava preparada. Os meus pais choraram. Ainda choram. Eu quero estar no estrangeiro, eles querem que eu esteja em Portugal. A minha mãe ainda diz: "Há tanta gente que podes ajudar aqui." Claro que tem sentido fazer voluntariado em Portugal, mas isso já fiz. Penso que aprendo mais fazendo voluntariado fora. Portugal é a minha casa. Portugal é a minha zona de conforto.

Estive sete meses no México - seis meses a trabalhar, um a viajar pelo país. Desta vez, fico mais tempo. O Serviço Voluntário Europeu [http://www.sve.pt] contempla acções que podem ir até 12 meses. Vim a 20 de Dezembro. Fico até 20 de Setembro. Passei cá o Natal. Estava tanto frio...

Qual a minha primeira impressão? Parecia que tinha aterrado no Portugal de há 20 anos. Os enfeites de rua eram muito antigos, a música parecia saída dos anos 80. Até a forma como os moldavos decoram as casas me fazia ter a sensação de que fizera uma viagem no tempo.

Há pouca diversidade, apesar de Chisinau ser uma capital. Sou um bicho raro. As mulheres parecem todas iguais: cabelo comprido, saltos altos, unhas pintadas. Sinto-me olhada todos os dias. Há pessoas que me abordam nos transportes públicos. Perguntam-me muitas vezes se sou americana. Há miúdos que gritam: "American! American!"

O Serviço Voluntário Europeu, coordenado pela Agência Nacional para a Gestão do Programa Juventude em Acção, é financiado pela Comissão Europeia. Vivo num apartamento com outros voluntários. Temos casa paga - renda, água, luz, gás. E dinheiro de bolso - 1500 lei, uns 80 euros. Não dá para uma vida de luxo, mas dá para alimentação e transporte.

Somos quatro: uma dinamarquesa, uma francesa e um inglês. A língua oficial lá em casa é o inglês. O rapaz não está a aprender nenhuma língua, coitado. Ele está sempre na rua, mas, como toda a gente fala inglês com ele, não se sente motivado para aprender romeno.

Tenho aprendido muito com esta experiência. Identifico-me com a dor das mulheres que vão parar ao centro - parceria da Organização Internacional das Migrações (OIM) com o Ministério do Trabalho, da Protecção Social e da Família - mas nunca senti: "Isto podia ser eu."

No ano passado, 355 pessoas passaram por lá. A lotação máxima é 25. Em Março estavam umas 20. Neste momento, está meia dúzia. São muito novas. A mais nova tem 17 anos e a mais velha 34. A mais nova que conheci tinha 14. Vivia num orfanato. Já tinha fugido sete vezes - a polícia encontrou-a a prostituir-se. O risco de ser traficada era elevado.

Renascer

Surpreendeu-me perceber que algumas se sentem melhor com o traficante do que em casa. Muitas eram vítimas de violência doméstica antes de serem recrutadas e estavam à procura de uma saída - entrevistas feitas a vítimas de tráfico assistidas pela OIM apontam para 90 por cento.

Não tenho informação [oficial] sobre os casos, mas elas acabam por contar. Lembro-me de uma rapariga de 20 e poucos anos que caiu na típica história. Tem pouca formação, muita dificuldade em arranjar emprego. Pensava que ia trabalhar como empregada de mesa na Turquia. No aeroporto, percebeu que estava nos Emirados Árabes Unidos. Ficou seis meses num bar de alterne. Conseguiu escapar. A OIM ajudou-a a regressar à Moldávia.

Tenho crescido muito com elas. Aprendi que é possível renascer. Mesmo nas situações mais complicadas, há uma margem de esperança. Não sei... Acho que elas continuam com os sonhos que tinham antes de terem sido traficadas: ter uma família, um emprego, uma casa, uma vida normal. Eu não. Eu não quero ter uma vida normal [ri-se]. Elas admiram-se: "Mas tens 30 anos! Não és casada? Não tens filhos?" Há muito essa ideia de casar e de ter filhos. Isso não é o meu objectivo de vida. Há tanta coisa que quero fazer. Quero viajar, conhecer pessoas, ajudar pessoas. Realizo-me ao ajudar, ao dar. Recebo muito ao dar.

Há muitas questões de direitos humanos para resolver. Na Moldávia, as pessoas acham que a homossexualidade é uma doença, por exemplo. Mas discute-se muito. As pessoas manifestam-se muito. Já fui a mais manifestações aqui do que em Portugal. Ainda há dias houve uma por causa da falta de acessibilidades para pessoas com deficiências motoras.

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Não tenho saudades do tempo em que trabalhava em marketing e vivia sozinha. A minha mãe diz: "És nova, não vais ser nova para sempre, tens de pensar no futuro." Às vezes, penso em voltar a estudar alguma coisa que tenha mais a ver comigo (serviço social, psicologia), mas não me imagino muito tempo num lugar. Faz-me um bocado de impressão ficar três anos numa cidade. Se houvesse oportunidade de trabalhar numa organização humanitária...

A partir de uma conversa com Márcia Luz

A jornalista viajou com uma bolsa do European Journalism Center

Márcia fez voluntariado durante sete meses no México. Agora está em Chisinau, na Moldávia CORTESIA LUCAS FARCY

Mandou o Marketing às urtigas. Tem 30 anos e faz actividades com vítimas de tráfico humano na Moldávia. Está no Serviço Voluntário Europeu, programa em que participam 135 portugueses, sobretudo, na Polónia, na República Checa, na Áustria, na França, na Turquia, no Reino Unido, em Itália, na Letónia, na Alemanha e em Espanha. Este é o Ano Europeu do Voluntariado.

Falava-se muito de tráfico humano no México. É um problema muito grande por lá. Procurei informação. Percebi que a Europa de Leste é um dos maiores focos. Na página do Serviço Voluntário Europeu encontrei a possibilidade de vir para um centro de assistência e protecção a vítimas e a potenciais vítimas de tráfico, em Chisinau, na República da Moldávia.

Sou de Lisboa e nunca tinha trabalhado com vítimas de tráfico humano. Estudei Publicidade e Marketing. Ainda trabalhei quarto anos na área, mas não gostei. Aquilo não era para mim. Devia ter percebido isso durante o curso. Trabalhar para o lucro? Não. Isso nada tem a ver comigo.

Não aconteceu de repente. Fui percebendo que não era feliz. Sabes aquela música dos Humanos, com letra de António Variações? "Muda de vida se tu não vives satisfeito/Muda de vida, estás sempre a tempo de mudar/Muda de vida, não deves viver contrafeito." Era isso mesmo. Tinha de mudar de vida. Tinha de me despedir, de fazer outra coisa.

Foi um choque para os meus pais: "E agora? O que vais fazer?" Têm outra mentalidade. A minha mãe trabalha na cozinha de uma cantina e o meu pai faz molduras. Estávamos em 2008. Já se falava muito em crise económica. Ainda me tentaram demover: "Não é altura para isso."

Somos seis irmãos. Tivemos sempre de nos ajudar uns aos outros. Para mim, ajudar é natural. Sempre fiz voluntariado. Nas férias, nos fins-de-semana, quando podia, ia para a Casa do Sol - Associação de Apoio a Crianças Infectadas pelo Vírus da Sida. Recebia muito mais do que dava.

Pus-me na Internet à procura de voluntariado no estrangeiro. Surgiu uma oportunidade em bairros degradados do México - com uma Homes for Hope, uma associação que constrói prefabricados. Atrai-me o país, a América Latina, e a organização, o trabalho com crianças.

Portugal: zona de conforto

Parti seis meses depois de me ter despedido. Quando o momento chegou, estava preparada. Os meus pais choraram. Ainda choram. Eu quero estar no estrangeiro, eles querem que eu esteja em Portugal. A minha mãe ainda diz: "Há tanta gente que podes ajudar aqui." Claro que tem sentido fazer voluntariado em Portugal, mas isso já fiz. Penso que aprendo mais fazendo voluntariado fora. Portugal é a minha casa. Portugal é a minha zona de conforto.

Estive sete meses no México - seis meses a trabalhar, um a viajar pelo país. Desta vez, fico mais tempo. O Serviço Voluntário Europeu [http://www.sve.pt] contempla acções que podem ir até 12 meses. Vim a 20 de Dezembro. Fico até 20 de Setembro. Passei cá o Natal. Estava tanto frio...

Qual a minha primeira impressão? Parecia que tinha aterrado no Portugal de há 20 anos. Os enfeites de rua eram muito antigos, a música parecia saída dos anos 80. Até a forma como os moldavos decoram as casas me fazia ter a sensação de que fizera uma viagem no tempo.

Há pouca diversidade, apesar de Chisinau ser uma capital. Sou um bicho raro. As mulheres parecem todas iguais: cabelo comprido, saltos altos, unhas pintadas. Sinto-me olhada todos os dias. Há pessoas que me abordam nos transportes públicos. Perguntam-me muitas vezes se sou americana. Há miúdos que gritam: "American! American!"

O Serviço Voluntário Europeu, coordenado pela Agência Nacional para a Gestão do Programa Juventude em Acção, é financiado pela Comissão Europeia. Vivo num apartamento com outros voluntários. Temos casa paga - renda, água, luz, gás. E dinheiro de bolso - 1500 lei, uns 80 euros. Não dá para uma vida de luxo, mas dá para alimentação e transporte.

Somos quatro: uma dinamarquesa, uma francesa e um inglês. A língua oficial lá em casa é o inglês. O rapaz não está a aprender nenhuma língua, coitado. Ele está sempre na rua, mas, como toda a gente fala inglês com ele, não se sente motivado para aprender romeno.

Tenho aprendido muito com esta experiência. Identifico-me com a dor das mulheres que vão parar ao centro - parceria da Organização Internacional das Migrações (OIM) com o Ministério do Trabalho, da Protecção Social e da Família - mas nunca senti: "Isto podia ser eu."

No ano passado, 355 pessoas passaram por lá. A lotação máxima é 25. Em Março estavam umas 20. Neste momento, está meia dúzia. São muito novas. A mais nova tem 17 anos e a mais velha 34. A mais nova que conheci tinha 14. Vivia num orfanato. Já tinha fugido sete vezes - a polícia encontrou-a a prostituir-se. O risco de ser traficada era elevado.

Renascer

Surpreendeu-me perceber que algumas se sentem melhor com o traficante do que em casa. Muitas eram vítimas de violência doméstica antes de serem recrutadas e estavam à procura de uma saída - entrevistas feitas a vítimas de tráfico assistidas pela OIM apontam para 90 por cento.

Não tenho informação [oficial] sobre os casos, mas elas acabam por contar. Lembro-me de uma rapariga de 20 e poucos anos que caiu na típica história. Tem pouca formação, muita dificuldade em arranjar emprego. Pensava que ia trabalhar como empregada de mesa na Turquia. No aeroporto, percebeu que estava nos Emirados Árabes Unidos. Ficou seis meses num bar de alterne. Conseguiu escapar. A OIM ajudou-a a regressar à Moldávia.

Tenho crescido muito com elas. Aprendi que é possível renascer. Mesmo nas situações mais complicadas, há uma margem de esperança. Não sei... Acho que elas continuam com os sonhos que tinham antes de terem sido traficadas: ter uma família, um emprego, uma casa, uma vida normal. Eu não. Eu não quero ter uma vida normal [ri-se]. Elas admiram-se: "Mas tens 30 anos! Não és casada? Não tens filhos?" Há muito essa ideia de casar e de ter filhos. Isso não é o meu objectivo de vida. Há tanta coisa que quero fazer. Quero viajar, conhecer pessoas, ajudar pessoas. Realizo-me ao ajudar, ao dar. Recebo muito ao dar.

Há muitas questões de direitos humanos para resolver. Na Moldávia, as pessoas acham que a homossexualidade é uma doença, por exemplo. Mas discute-se muito. As pessoas manifestam-se muito. Já fui a mais manifestações aqui do que em Portugal. Ainda há dias houve uma por causa da falta de acessibilidades para pessoas com deficiências motoras.

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Não tenho saudades do tempo em que trabalhava em marketing e vivia sozinha. A minha mãe diz: "És nova, não vais ser nova para sempre, tens de pensar no futuro." Às vezes, penso em voltar a estudar alguma coisa que tenha mais a ver comigo (serviço social, psicologia), mas não me imagino muito tempo num lugar. Faz-me um bocado de impressão ficar três anos numa cidade. Se houvesse oportunidade de trabalhar numa organização humanitária...

A partir de uma conversa com Márcia Luz

A jornalista viajou com uma bolsa do European Journalism Center

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