Que Treta!

26-01-2012
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Ainda a propósito do PL 118/XII, o tal da taxa sobre discos e cartões de memória, o Rodrigo Moita de Deus escreveu que não discute o valor da taxa em si e que «O que me chateia ver discutido e [diminuído] é a questão da propriedade intelectual. O valor que damos à criação e às ideias»(1). Se chateia, azar, porque é mesmo isso que temos de discutir.

A convenção de Berna foi assinada em 1886 e, durante pouco mais de um século, este tratado internacional serviu de base a muita legislação sobre o comércio de obras artísticas e literárias. A legislação imposta pelo tratado não tinha a legitimidade de representar a vontade da maioria mas, por outro lado, só afectava editores e os poucos que trabalhassem para eles. Para bem ou para mal, a coisa foi-se aguentando. Mas o crescimento canceroso do âmbito da aplicação destas leis, nestes últimos anos, mudou radicalmente o problema. Agora que nos querem impor mais uma taxa pelo que fazemos em privado com o equipamento que é nosso, importa questionar o fundamento destas medidas e de coisas como a “propriedade intelectual”.

Vamos supor que eu imprimo este texto e vendo essa cópia ao Rodrigo. Quando o Rodrigo olha para o papel, o cérebro dele interpreta as manchas de tinta e forma pensamentos conforme as palavras que eu escrevi. É assim que a escrita funciona. Ora, segundo a lei, o Rodrigo é o proprietário do papel com tinta. E, segundo o bom senso, o Rodrigo é dono dos seus pensamentos. Para mim fica a “propriedade intelectual” sobre aquilo que a lei chama “a Obra”. O problema é que “a Obra” nem é o papel com tinta nem os pensamentos de ninguém, e não parece sobrar mais nada.

Na verdade, a “propriedade intelectual” não é a expressão legal de um direito moral de propriedade sobre alguma coisa do intelecto. Os meus pensamentos são meus e os do Rodrigo são dele, seja quem for o dono do papel. A “propriedade intelectual” é apenas um conjunto arbitrário de monopólios legais. Por exemplo, eu posso proibir o Rodrigo de vender outro papel que tenha manchas de tinta parecidas com estas letras, mesmo que o papel e a tinta sejam dele. Não posso proibir o Rodrigo de emitir sons que correspondam a estas palavras se ele estiver em casa, mas já posso fazê-lo se ele estiver num palco. Estes monopólios são uma forma de propriedade porque os posso vender mas, ao contrário do barrete que nos querem enfiar, não representam qualquer direito moral de propriedade sobre “a Obra”, até porque “a Obra” nem sequer existe; não passa de um truque de retórica legal. O que existe são os suportes físicos, que são de quem os compra, e os pensamentos, que são de quem os pensa. Quando estes monopólios só afectavam o comércio, esta treta pouco importava. Mas agora que isto nos afecta a todos é pertinente discutir se faz sentido conceder poderes legais para proibir tanta coisa a tanta gente.

O “valor” é outra aldrabice. Tal como usam “propriedade intelectual” para disfarçar a referência a monopólios, usam “valor” para não dizer preço. Que é muito diferente, neste contexto. Imaginem que os textos de Camões deixavam de estar no domínio público e passavam a ser licenciados por uma editora. O preço de acesso aumentava muito, mas o valor cultural até seria menor, pela dificuldade acrescida de usufruir dessas obras e pela impossibilidade de criar obras derivadas. Por muito que o Rodrigo se chateie, é importante fazer esta distinção: o preço e o valor não são o mesmo e, na cultura, muitas vezes até são o contrário.

Finalmente, o Rodrigo quer dar valor «à criação e às ideias». Nisto estou de acordo. Valorize-se e incentive-se a criação e as ideias. Mas nem este projecto de lei nem a legislação que temos sobre “propriedade intelectual” serve para valorizar a criação e as ideias. As ideias, enquanto tal, estão explicitamente excluídas da lei. E todo o sistema de incentivos económicos está focado na cópia, que é aquilo de menos criativo e menos valioso que hoje se pode fazer a uma obra. De Gutenberg à Internet, a cópia foi o factor limitante. Arranjar quem escrevesse livros ou compusesse músicas sempre foi fácil; em muitos países e épocas nem ameaças de tortura e morte dissuadiram os autores de criar as suas obras. O problema era levar o suporte da obra desde o autor até ao público. Isso precisava de fábricas, transporte, lojas e uma data de gente e de dinheiro. Foi para isso que se legislou monopólios sobre a cópia.

Hoje a situação é tão diferente que vale a pena discutir alternativas. A cópia é gratuita, a distribuição é instantânea, o autor pode negociar directamente com o público, cada vez somos mais autores e cada vez menos nos importa a treta da cópia. É altura de revermos isso da "propriedade intelectual", do "valor" e de como incentivar a criatividade em vez de limitar a cópia. Se isto chateia o Rodrigo, é lá com ele. Desde que não me venha ao bolso, tem todo o direito de se chatear com o que quiser.

1- 31 da Armada, ainda a cópia privada


Ainda a propósito do PL 118/XII, o tal da taxa sobre discos e cartões de memória, o Rodrigo Moita de Deus escreveu que não discute o valor da taxa em si e que «O que me chateia ver discutido e [diminuído] é a questão da propriedade intelectual. O valor que damos à criação e às ideias»(1). Se chateia, azar, porque é mesmo isso que temos de discutir.

A convenção de Berna foi assinada em 1886 e, durante pouco mais de um século, este tratado internacional serviu de base a muita legislação sobre o comércio de obras artísticas e literárias. A legislação imposta pelo tratado não tinha a legitimidade de representar a vontade da maioria mas, por outro lado, só afectava editores e os poucos que trabalhassem para eles. Para bem ou para mal, a coisa foi-se aguentando. Mas o crescimento canceroso do âmbito da aplicação destas leis, nestes últimos anos, mudou radicalmente o problema. Agora que nos querem impor mais uma taxa pelo que fazemos em privado com o equipamento que é nosso, importa questionar o fundamento destas medidas e de coisas como a “propriedade intelectual”.

Vamos supor que eu imprimo este texto e vendo essa cópia ao Rodrigo. Quando o Rodrigo olha para o papel, o cérebro dele interpreta as manchas de tinta e forma pensamentos conforme as palavras que eu escrevi. É assim que a escrita funciona. Ora, segundo a lei, o Rodrigo é o proprietário do papel com tinta. E, segundo o bom senso, o Rodrigo é dono dos seus pensamentos. Para mim fica a “propriedade intelectual” sobre aquilo que a lei chama “a Obra”. O problema é que “a Obra” nem é o papel com tinta nem os pensamentos de ninguém, e não parece sobrar mais nada.

Na verdade, a “propriedade intelectual” não é a expressão legal de um direito moral de propriedade sobre alguma coisa do intelecto. Os meus pensamentos são meus e os do Rodrigo são dele, seja quem for o dono do papel. A “propriedade intelectual” é apenas um conjunto arbitrário de monopólios legais. Por exemplo, eu posso proibir o Rodrigo de vender outro papel que tenha manchas de tinta parecidas com estas letras, mesmo que o papel e a tinta sejam dele. Não posso proibir o Rodrigo de emitir sons que correspondam a estas palavras se ele estiver em casa, mas já posso fazê-lo se ele estiver num palco. Estes monopólios são uma forma de propriedade porque os posso vender mas, ao contrário do barrete que nos querem enfiar, não representam qualquer direito moral de propriedade sobre “a Obra”, até porque “a Obra” nem sequer existe; não passa de um truque de retórica legal. O que existe são os suportes físicos, que são de quem os compra, e os pensamentos, que são de quem os pensa. Quando estes monopólios só afectavam o comércio, esta treta pouco importava. Mas agora que isto nos afecta a todos é pertinente discutir se faz sentido conceder poderes legais para proibir tanta coisa a tanta gente.

O “valor” é outra aldrabice. Tal como usam “propriedade intelectual” para disfarçar a referência a monopólios, usam “valor” para não dizer preço. Que é muito diferente, neste contexto. Imaginem que os textos de Camões deixavam de estar no domínio público e passavam a ser licenciados por uma editora. O preço de acesso aumentava muito, mas o valor cultural até seria menor, pela dificuldade acrescida de usufruir dessas obras e pela impossibilidade de criar obras derivadas. Por muito que o Rodrigo se chateie, é importante fazer esta distinção: o preço e o valor não são o mesmo e, na cultura, muitas vezes até são o contrário.

Finalmente, o Rodrigo quer dar valor «à criação e às ideias». Nisto estou de acordo. Valorize-se e incentive-se a criação e as ideias. Mas nem este projecto de lei nem a legislação que temos sobre “propriedade intelectual” serve para valorizar a criação e as ideias. As ideias, enquanto tal, estão explicitamente excluídas da lei. E todo o sistema de incentivos económicos está focado na cópia, que é aquilo de menos criativo e menos valioso que hoje se pode fazer a uma obra. De Gutenberg à Internet, a cópia foi o factor limitante. Arranjar quem escrevesse livros ou compusesse músicas sempre foi fácil; em muitos países e épocas nem ameaças de tortura e morte dissuadiram os autores de criar as suas obras. O problema era levar o suporte da obra desde o autor até ao público. Isso precisava de fábricas, transporte, lojas e uma data de gente e de dinheiro. Foi para isso que se legislou monopólios sobre a cópia.

Hoje a situação é tão diferente que vale a pena discutir alternativas. A cópia é gratuita, a distribuição é instantânea, o autor pode negociar directamente com o público, cada vez somos mais autores e cada vez menos nos importa a treta da cópia. É altura de revermos isso da "propriedade intelectual", do "valor" e de como incentivar a criatividade em vez de limitar a cópia. Se isto chateia o Rodrigo, é lá com ele. Desde que não me venha ao bolso, tem todo o direito de se chatear com o que quiser.

1- 31 da Armada, ainda a cópia privada

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