Boas Intenções: terapia alternativa

30-06-2011
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Schönefeld, o paraíso das companhias aéreas de baixo custo e o futuro aeroporto único de Berlim, é um sítio detestável - um prédio perfeito para uma seguradora de província perdido por entre os restos menos charmosos da DDR. Escusado será dizer que o facto de ter lá ido antes das sete da manha com apenas três ou quatro horas de sono depois de um Primeiro de Maio gélido em Kreuzberg, ainda por cima para ver ser-me arrancado dos braços o amor que me andava a colorir os dias, nao acrescentou nada aos seus encantos."Que fazer?" perguntaria Lénine (nao adoram quando as pessoas citam figuras históricas ou grandes autores a dizer coisas de todos os dias?). Que fazer? Ir trabalhar. Perder uma lagrimita. Pedir um café. E...ser salva por uma tarefa bloguística.É entao com grande prazer que respondo ao questionário da provocaçao, em duas partes (primeiro os livros, depois o passar a outros)(a lamechice é sempre um estado egocêntrico, que permite outréns no número máximo de um, qual passar a dez pessoas!). Ora aqui vai:1. Existe um livro que lerias e relerias várias vezes?Existem livros que leio e releio. Na minha adolescência lia os Maias todos os Veroes, era uma tradiçao. Na última vez demorei três dias - sou uma leitora sôfrega e impaciente, infelizmente, mas notem por favor que foram três dias com pausas apenas para as refeiçoes obrigatórias. Também relia, quando precisava de chorar umas lagriminhas mas nao tinha bem porquê, o terceiro volume das aventuras de Julia Crèvecoeur, depois de ela deixar o impulsivo jornalista Raoul que tinha morto em duelo Hugo, o jovem amante garboso dos Alpes. No comments.Também releio regularmente a minha muito querida Anne of Green Gables e quero muito, um dia destes, reler o Zauberberg, desta vez na versao original. E os livros de poesia, claro, que nao sao para ler e arquivar mas para ir redescobrindo.2. Existe algum livro que começaste a ler, paraste, recomeçaste, tentaste e tentaste e nunca conseguiste ler até ao fim?Faulkner e Henry Miller. Nos dois casos tenho a certeza de que estão quase a abrir-se para mim, da próxima vez, se calhar. Faulkner, especialmente. Mas ainda não lá cheguei.3. Se escolhesses um livro para ler para o resto da tua vida, qual seria ele?Um dos grandes romances, em definitivo. Os Maias, ou o Guerra e Paz, se calhar também podiam ser os Buddenbrooks, Proust ou um Jorge Amado, a Tereza Baptista ou a Gabriela. Um livro com o mundo inteiro dentro, grande, grande, mas sensível a todas as pequenas fragilidades e alegrias, daqueles que tocam o ínfimo da alma humana, assim como que de passagem, e lhe piscam o olho.Ou uma coisa complicada, cheia de enredos alternativos, como Borges ou um Torrente Ballester brilhante que li há muitos anos?(agora que penso nisto, se calhar já respondi a este questionário)4. Que livro gostarias de ter lido mas que, por algum motivo, nunca leste?A Bíblia e o Alcorão? Se nao contar entao Dante, que já comecei mil vezes mas cuja ediçao, pesada e desconfortável, me tolhe sempre os movimentos.5. Que livro leste cuja 'cena final' jamais conseguiste esquecer?Gostava de evitar escrever os Maias pela terceira vez, mas tem de ser. Cenário: Noite de Verao. Rita Maria, muito novinha, treze ou catorze anos, a chegar ao fim dos Maias, tenta dormir. Mas bzzzzzzzzzzzzzzzzz....uma melga. Acende a luz, procura, nada. Apaga a luz. Bzzzzz. Acende a luz, procura, nada. Apaga a luz e tenta dormir. Bzzzzzzz. Acende a luz, faz de conta que está a ler distraída, bzzzzzz, procura, nada. Apaga a luz. Bzzzzzzz. Acende a luz, recomeça a fingir que estava a ler, lê, lê, continua, se calhar Bzzzzzzzzzzz, sei lá eu, lê, lê por ali fora e "Ainda o apanhamos!". Se calhar foi ali, naquele momento, que me tornei pombalista, acordada, no escuro, de madrugada, com os olhos a brilharem muito e um chinelo esquecido na mesinha de cabeceira.Também muito bom em toda uma outra linha: Dom Casmurro.6. Tinhas o hábito de ler quando eras criança? Se lias, qual era o tipo de leitura?Lia muito, acima de tudo Enid Blyton. Nao gostava muito da Uma Aventura, mas gostava daquela colecçao das viagens no tempo, adorei também aquele livro da Alice Vieira em que os protagonistas andam por Lisboa na companhia de Fernao Lopes e, claro, o Triângulo Jota, que dava direito a momentos românticos. Também lia contos de fadas, enciclopédias juvenis e, a partir do quinto ano, o Expresso ao sábado de manha. Mas nao podia com os contos da Sophia de Mello Breyner (e gosto muito da poesia) e sempre odiei os livros para crianças pseudo-poéticos, aqueles em que um adulto qualquer achou por bem ligar-se ao seu lado infantil com flores chamadas Amizade e meninos que se comovem com o azul do céu. Que falta fazem às crianças portuguesas boas traduçoes dos grandes clássicos da literatura infantil, a Astrid Lindgren, o Janosch, A Ana dos Cabelos Ruivos, a Heidi. Se eu nao fosse medricas, era já.7. Qual o livro que achaste chato mas ainda assim leste até ao fim? Porquê?Tantos, tantos. Na maioria dos casos, o motivo terá sido o tédio e a falta de actividades alternativas, mas lembro-me de um caso, A Curva do Rio do Naipaul, que continuei a ler pelo que estava a aprender sobre África, o livro muito chato, mas a perspetiva tão absolutamente enriquecedora.8. Indica alguns dos teus livros preferidos.Ora! Sinceramente!Fazendo batota para nao escrever de novo todos aqueles que guardava para a vida toda e de que já falei ali em cima: A Rosa do Mundo, aquela coisa maravilhosa lançada no ano do Porto Capital da Cultura com 2001 poemas desde o princípio dos tempos e todos aqueles que já fizeram malabarismo com bocadinhos do meu cérebro ou me entusiasmaram com aquele truque da piscadela de olho à alma. Só em jeito de exemplo: O Caderno Dourado, de Doris Lessing. Mas podiam ser muitos outros, o mundo está cheio de livros maravilhosos.9. Que livro estás a ler neste momento?A Lolita, at last. Fantástico, como nos leva. Que interessa se sou uma cidada responsável, correcta, com duas irmas mais novas? Nabokov sugere que eu teste com a língua como se diz "Lolita" e eu, obediente, Lo-Li-Ta. Quer que me excite, excito-me. Que despreze a mae da rapariga, essa sopeira? Às suas ordens. A personagem principal preocupa-se com questoes mais práticas? O meu cérebro acorre a ajudá-lo, procura caminhos, atalhos. Rio quando devo rir, aceito justificaçoes impossíveis, fecho os olhos aos detalhes da violência. Sou um autêntico fantoche. Grande livro, devíamos proibi-lo com urgência.E passo a dez doze pessoas? Passo, prometo. Vou só ali chorar um bocadinho ou fazer um café.


Schönefeld, o paraíso das companhias aéreas de baixo custo e o futuro aeroporto único de Berlim, é um sítio detestável - um prédio perfeito para uma seguradora de província perdido por entre os restos menos charmosos da DDR. Escusado será dizer que o facto de ter lá ido antes das sete da manha com apenas três ou quatro horas de sono depois de um Primeiro de Maio gélido em Kreuzberg, ainda por cima para ver ser-me arrancado dos braços o amor que me andava a colorir os dias, nao acrescentou nada aos seus encantos."Que fazer?" perguntaria Lénine (nao adoram quando as pessoas citam figuras históricas ou grandes autores a dizer coisas de todos os dias?). Que fazer? Ir trabalhar. Perder uma lagrimita. Pedir um café. E...ser salva por uma tarefa bloguística.É entao com grande prazer que respondo ao questionário da provocaçao, em duas partes (primeiro os livros, depois o passar a outros)(a lamechice é sempre um estado egocêntrico, que permite outréns no número máximo de um, qual passar a dez pessoas!). Ora aqui vai:1. Existe um livro que lerias e relerias várias vezes?Existem livros que leio e releio. Na minha adolescência lia os Maias todos os Veroes, era uma tradiçao. Na última vez demorei três dias - sou uma leitora sôfrega e impaciente, infelizmente, mas notem por favor que foram três dias com pausas apenas para as refeiçoes obrigatórias. Também relia, quando precisava de chorar umas lagriminhas mas nao tinha bem porquê, o terceiro volume das aventuras de Julia Crèvecoeur, depois de ela deixar o impulsivo jornalista Raoul que tinha morto em duelo Hugo, o jovem amante garboso dos Alpes. No comments.Também releio regularmente a minha muito querida Anne of Green Gables e quero muito, um dia destes, reler o Zauberberg, desta vez na versao original. E os livros de poesia, claro, que nao sao para ler e arquivar mas para ir redescobrindo.2. Existe algum livro que começaste a ler, paraste, recomeçaste, tentaste e tentaste e nunca conseguiste ler até ao fim?Faulkner e Henry Miller. Nos dois casos tenho a certeza de que estão quase a abrir-se para mim, da próxima vez, se calhar. Faulkner, especialmente. Mas ainda não lá cheguei.3. Se escolhesses um livro para ler para o resto da tua vida, qual seria ele?Um dos grandes romances, em definitivo. Os Maias, ou o Guerra e Paz, se calhar também podiam ser os Buddenbrooks, Proust ou um Jorge Amado, a Tereza Baptista ou a Gabriela. Um livro com o mundo inteiro dentro, grande, grande, mas sensível a todas as pequenas fragilidades e alegrias, daqueles que tocam o ínfimo da alma humana, assim como que de passagem, e lhe piscam o olho.Ou uma coisa complicada, cheia de enredos alternativos, como Borges ou um Torrente Ballester brilhante que li há muitos anos?(agora que penso nisto, se calhar já respondi a este questionário)4. Que livro gostarias de ter lido mas que, por algum motivo, nunca leste?A Bíblia e o Alcorão? Se nao contar entao Dante, que já comecei mil vezes mas cuja ediçao, pesada e desconfortável, me tolhe sempre os movimentos.5. Que livro leste cuja 'cena final' jamais conseguiste esquecer?Gostava de evitar escrever os Maias pela terceira vez, mas tem de ser. Cenário: Noite de Verao. Rita Maria, muito novinha, treze ou catorze anos, a chegar ao fim dos Maias, tenta dormir. Mas bzzzzzzzzzzzzzzzzz....uma melga. Acende a luz, procura, nada. Apaga a luz. Bzzzzz. Acende a luz, procura, nada. Apaga a luz e tenta dormir. Bzzzzzzz. Acende a luz, faz de conta que está a ler distraída, bzzzzzz, procura, nada. Apaga a luz. Bzzzzzzz. Acende a luz, recomeça a fingir que estava a ler, lê, lê, continua, se calhar Bzzzzzzzzzzz, sei lá eu, lê, lê por ali fora e "Ainda o apanhamos!". Se calhar foi ali, naquele momento, que me tornei pombalista, acordada, no escuro, de madrugada, com os olhos a brilharem muito e um chinelo esquecido na mesinha de cabeceira.Também muito bom em toda uma outra linha: Dom Casmurro.6. Tinhas o hábito de ler quando eras criança? Se lias, qual era o tipo de leitura?Lia muito, acima de tudo Enid Blyton. Nao gostava muito da Uma Aventura, mas gostava daquela colecçao das viagens no tempo, adorei também aquele livro da Alice Vieira em que os protagonistas andam por Lisboa na companhia de Fernao Lopes e, claro, o Triângulo Jota, que dava direito a momentos românticos. Também lia contos de fadas, enciclopédias juvenis e, a partir do quinto ano, o Expresso ao sábado de manha. Mas nao podia com os contos da Sophia de Mello Breyner (e gosto muito da poesia) e sempre odiei os livros para crianças pseudo-poéticos, aqueles em que um adulto qualquer achou por bem ligar-se ao seu lado infantil com flores chamadas Amizade e meninos que se comovem com o azul do céu. Que falta fazem às crianças portuguesas boas traduçoes dos grandes clássicos da literatura infantil, a Astrid Lindgren, o Janosch, A Ana dos Cabelos Ruivos, a Heidi. Se eu nao fosse medricas, era já.7. Qual o livro que achaste chato mas ainda assim leste até ao fim? Porquê?Tantos, tantos. Na maioria dos casos, o motivo terá sido o tédio e a falta de actividades alternativas, mas lembro-me de um caso, A Curva do Rio do Naipaul, que continuei a ler pelo que estava a aprender sobre África, o livro muito chato, mas a perspetiva tão absolutamente enriquecedora.8. Indica alguns dos teus livros preferidos.Ora! Sinceramente!Fazendo batota para nao escrever de novo todos aqueles que guardava para a vida toda e de que já falei ali em cima: A Rosa do Mundo, aquela coisa maravilhosa lançada no ano do Porto Capital da Cultura com 2001 poemas desde o princípio dos tempos e todos aqueles que já fizeram malabarismo com bocadinhos do meu cérebro ou me entusiasmaram com aquele truque da piscadela de olho à alma. Só em jeito de exemplo: O Caderno Dourado, de Doris Lessing. Mas podiam ser muitos outros, o mundo está cheio de livros maravilhosos.9. Que livro estás a ler neste momento?A Lolita, at last. Fantástico, como nos leva. Que interessa se sou uma cidada responsável, correcta, com duas irmas mais novas? Nabokov sugere que eu teste com a língua como se diz "Lolita" e eu, obediente, Lo-Li-Ta. Quer que me excite, excito-me. Que despreze a mae da rapariga, essa sopeira? Às suas ordens. A personagem principal preocupa-se com questoes mais práticas? O meu cérebro acorre a ajudá-lo, procura caminhos, atalhos. Rio quando devo rir, aceito justificaçoes impossíveis, fecho os olhos aos detalhes da violência. Sou um autêntico fantoche. Grande livro, devíamos proibi-lo com urgência.E passo a dez doze pessoas? Passo, prometo. Vou só ali chorar um bocadinho ou fazer um café.

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