Boas Intenções: reflexões gingerícas

21-01-2012
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ai, que parece que é dia de escrever sobre a queda do muro(o muro do cemitério e o muro de berlim, daqui)Se eu me tivesse mudado para Berlim há vinte e dois anos, o muro passava ao fundo da minha rua, depois do parque, poucos metros depois de o riacho ter desaparecido debaixo da terra para ir desaguar em privado no rio Spree, longe dos nossos olhos. Do outro lado, cemitérios de quatro paróquias de Berlim, que quase foram transladados na sua totalidade após a construção do muro, albergam entre outros o meu querido vizinho Theodor Fontane, que é um daqueles vizinhos que nao incomodam ninguém mas gostamos de saber por perto (a este propósito, promessa de post para um dia destes: histórias, anedotas e peripécias dos cemitérios berlinenses).O nosso caminho para o trabalho, meu e da Ginger, dá assim de caras com o muro, passeia-se ao longo deste e acaba por atravessá-lo um quilómetro à frente.Quando comecei a fazer este caminho, já há muitos anos, iniciei uma tradição muito interessante: ao cruzar-me com o muro pela primeira vez, tentava imaginar como seria Berlim se o muro ainda cá estivesse. Não há dúvida que o meu caminho para o trabalho, pelo menos, seria muito mais difícil...e os amigos que moram do outro lado? E os bairros nas suas dinâmicas da Berlim separada? Com um toque de dramatismo romântico, estava assim prestada a homenagem diária aos homens e mulheres que reunificaram a Alemanha, limpando de caminho o pó à cortina de ferro*.Mas mais interessante era a segunda parte deste ritual, poucos minutos depois: ao atravessar o muro, considerava como seria Berlim se o muro nunca tivesse existido. E, quiçá porque a paz é muito menos conforme ao dramatismo romântico, esta Berlim é muito mais difícil de imaginar. Aqui chegados, a reflexão aflorava questões diferentes: não só até que ponto o muro marcou a cidade, mais do que qualquer outro período histórico apesar da pompa historicista dos Fredericos, dos sonhos do Hitler e da destruição da guerra, mas a que ponto o muro fez e organizou a cidade reconstruida e ditou por fim a forma como a cidade recuperou as suas centralidades e as organizou, com os dois centros antigos cada vez mais periféricos e "regionais".A conclusão dependia dos dias. Se ia apaixonada pela vida, concluía que se tratava de uma cidade com um je ne sais quoi que só dão as cicatrizes, efeito que eu tentava replicar quando era miúda vestindo sempre uns calções curtinhos quando estava programada uma pancadaria. Se estava mais meditabunda, pensava na forma como a cidade exibe as suas cicatrizes, umas e outras. Em que medida são elas memorial e garantia de paz e em que medida se tornam folclore? E quando já são folclore, ainda podem ser garantia de paz? Tornarem-se folclore é um sintoma de paz ou um sintoma de esquecimento? E se ia com pressa, concluía só que já eram cinco para as nove e ainda ia eu aqui, e se já não há muro também não há desculpa.*note-se que quando iniciei este ritual ainda nao se ouvia todos os dias falar do duo franco-allemande, que foi entretanto aliás substituído nos microfones da RFI pelo couple franco-allemand, uma evoluçao com muito que se lhe diga. Só assim se explica que nao me ocorresse prontamente que se ainda cá estivesse o muro a Angie ainda estaria do outro lado, quiçá a estudar a 'rapidez das reações bimoleculares em meios densos', uma área de estudo que privilegiou antes da queda do muro e que às tantas também é bastante significativa. Extra, extra, um presente para quem chegou até aqui!: ler sobre fugas do muro originais aqui.


ai, que parece que é dia de escrever sobre a queda do muro(o muro do cemitério e o muro de berlim, daqui)Se eu me tivesse mudado para Berlim há vinte e dois anos, o muro passava ao fundo da minha rua, depois do parque, poucos metros depois de o riacho ter desaparecido debaixo da terra para ir desaguar em privado no rio Spree, longe dos nossos olhos. Do outro lado, cemitérios de quatro paróquias de Berlim, que quase foram transladados na sua totalidade após a construção do muro, albergam entre outros o meu querido vizinho Theodor Fontane, que é um daqueles vizinhos que nao incomodam ninguém mas gostamos de saber por perto (a este propósito, promessa de post para um dia destes: histórias, anedotas e peripécias dos cemitérios berlinenses).O nosso caminho para o trabalho, meu e da Ginger, dá assim de caras com o muro, passeia-se ao longo deste e acaba por atravessá-lo um quilómetro à frente.Quando comecei a fazer este caminho, já há muitos anos, iniciei uma tradição muito interessante: ao cruzar-me com o muro pela primeira vez, tentava imaginar como seria Berlim se o muro ainda cá estivesse. Não há dúvida que o meu caminho para o trabalho, pelo menos, seria muito mais difícil...e os amigos que moram do outro lado? E os bairros nas suas dinâmicas da Berlim separada? Com um toque de dramatismo romântico, estava assim prestada a homenagem diária aos homens e mulheres que reunificaram a Alemanha, limpando de caminho o pó à cortina de ferro*.Mas mais interessante era a segunda parte deste ritual, poucos minutos depois: ao atravessar o muro, considerava como seria Berlim se o muro nunca tivesse existido. E, quiçá porque a paz é muito menos conforme ao dramatismo romântico, esta Berlim é muito mais difícil de imaginar. Aqui chegados, a reflexão aflorava questões diferentes: não só até que ponto o muro marcou a cidade, mais do que qualquer outro período histórico apesar da pompa historicista dos Fredericos, dos sonhos do Hitler e da destruição da guerra, mas a que ponto o muro fez e organizou a cidade reconstruida e ditou por fim a forma como a cidade recuperou as suas centralidades e as organizou, com os dois centros antigos cada vez mais periféricos e "regionais".A conclusão dependia dos dias. Se ia apaixonada pela vida, concluía que se tratava de uma cidade com um je ne sais quoi que só dão as cicatrizes, efeito que eu tentava replicar quando era miúda vestindo sempre uns calções curtinhos quando estava programada uma pancadaria. Se estava mais meditabunda, pensava na forma como a cidade exibe as suas cicatrizes, umas e outras. Em que medida são elas memorial e garantia de paz e em que medida se tornam folclore? E quando já são folclore, ainda podem ser garantia de paz? Tornarem-se folclore é um sintoma de paz ou um sintoma de esquecimento? E se ia com pressa, concluía só que já eram cinco para as nove e ainda ia eu aqui, e se já não há muro também não há desculpa.*note-se que quando iniciei este ritual ainda nao se ouvia todos os dias falar do duo franco-allemande, que foi entretanto aliás substituído nos microfones da RFI pelo couple franco-allemand, uma evoluçao com muito que se lhe diga. Só assim se explica que nao me ocorresse prontamente que se ainda cá estivesse o muro a Angie ainda estaria do outro lado, quiçá a estudar a 'rapidez das reações bimoleculares em meios densos', uma área de estudo que privilegiou antes da queda do muro e que às tantas também é bastante significativa. Extra, extra, um presente para quem chegou até aqui!: ler sobre fugas do muro originais aqui.

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