Lisgoa e outras observações

09-09-2014
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A noite de Domingo estava, à partida, destinada a ser um museu de horrores e uma noite dos mortos vivos. Antecipava-se um cenário terrífico, com inúmeros cadáveres a abandonar as respectivas sepulturas e a vaguear, incólumes, pelos ecrãns de televisão. E assim foi, mas não sem que modestas alegrias viessem dar alguma côr a um serão a todos os títulos sombrio.

Sou um desses curiosos cidadãos que contribuem para que Oeiras seja o concelho com maior taxa de licenciados, pelo menos até à s próximas eleições em que, graças ao simpático Cartão do Cidadão, passarei oficialmente a Lisboeta. Tudo isto para dizer que me desloquei a Oeiras (a Paço de Arcos, para ser mais rigoroso) no passado Domingo para eleger um vereador da CDU, Amílcar Campos de seu nome, autarca comunista mefistofélico, incorruptível e charmoso em quem deposito toda a confiança. A miragem de despachar Isaltino estava ostensiva e irremediavelmente impossibilitada, desde logo pelo culto laico que lhe é prestado por largas fatias da população, mas também pela irredutível insignificância dos candidatos do bloco central. Assim sendo, e tendo em vista um prometido almoço matriarcal (salmão marinado em molho de limão…), fui votar, aproveitando para pôr de sobreaviso os familiares no que dizia respeito a Marcos Perestrello e à sua putativa candidatura. Não custou tanto como pensava e ao menos há no executivo camarário um Engenheiro Mecânico em tempos “perseguido pelo regime e incorporado compulsivamente no Serviço Militar.” Mais a mais com experiência e obra feita como vereador dos transportes entre 1989 e 1993, época áurea da mobilidade Oeirense, adiante.

Tudo isto para dizer que Lisboa, a minha cidade, me merecia muito mais atenção e só por um lamentável lapso (foi por dias) não consegui votar aqui. Tenho várias razões para uma aproximação pragmática à questão do poder local e, mais concretamente, ao governo da cidade. Bem se vê que é para mim relevante ter um jardim encerrado com obras suspensas por falta de pagamento ao respectivo empreiteiro ou um jardim aberto e, ainda por cima, onde se servem imperiais. Nesse campo o meu raciocínio não perde de vista as pequenas diferenças e, como tal, a minha simpatia para com a candidatura de António Costa/Helena Roseta/Sá Fernandes tinha bons argumentos do seu lado.

António Costa afirmou várias vezes uma ideia que me parece distanciá-lo efectivamente da candidatura de Santana Lopes, colocando na ordem do dia uma opção de fundo que a CDU e o Bloco se esforçaram em vão por contornar. Disse António Costa que Lisboa não necessitava de grandes obras que assegurassem a este ou aquele presidente um lugar cativo na história municipal, mas de um conjunto de pequenas intervenções que, no seu conjunto, tivessem um efeito global efectivo na vida dos lisboetas. Pode não o fazer, pode ser só campanha eleitoral, pode fazer todas as cedências e capitulações aos interesses, albergar casos de corrupção. Mas um mérito teve e esse é inegável. Havia na sua campanha e no seu projecto uma efectiva ideia do que são as competências e poderes da CML, as suas potencialidades e problemas, implicações e limitações. Se para nada mais servisse, só o facto de ter centrado o debate na ideia de que as grandes obras não são a condição de grandes cidades deu à sua campanha uma aparência de racionalidade e lógica que, espera-se, poderá durar até às próximas eleições.

António Costa concorreu efectivamente à CML com uma ideia própria de cidade. Santana Lopes também. E elas não podiam ser mais diferentes. Ruben de Carvalho e a CDU jogaram a cartada da oposição séria e responsável qualquer que fosse o vencedor. Bastou a implantação local do PCP para fazer o resto e manter os votos suficientes para eleger um vereador.

E depois havia o Bloco de Esquerda e Luís Fazenda, eleito deputado há duas semanas atrás e que corria para, como nos dizia num jornal local do Bloco, «votar tudo o que for positivo para a cidade, mas rejeitando o negocismo autárquico». O equivoco parecia evidente desde a primeira hora. O candidato estabelecia o sentido do seu voto na base do que poderia vir a apreciar ser positivo ou ser negocismo (notem como o qualificativo «autárquico» funciona aqui, simbolicamente, para assinalar que as autarquias são mais propensas do que outras realidades institucionais, ao «negocismo»). Não parecia muito explícito e de facto foi calculado propositadamente para que assim fosse. Já se sabe que quanto mais opaco é o programa, maior a margem de manobra para o manobrismo autárquico, mas Fazenda, a quem essas coisas nunca preocuparam muito, justificava a sua campanha com o que presumia ser a estupidez dos Lisboetas. Dizia ele que ninguém perceberia que o Bloco fosse oposição ao PS a nível nacional estando com ele coligado na CML.

[Note-se que a UDP, da qual Fazenda foi dirigente, fez parte da coligação com o PS e o PCP que governava Lisboa, ainda em 1997, quando Guterres era 1º Ministro. Não teria feito mal a Fazenda explicar-nos o balanço político que efectuou dessa experiência e que o autorizava a fazer este diagnóstico. Semelhante lógica inviabilizaria, por exemplo, qualquer convergência como a que ocorreu por ocasião do referendo de despenalização da IVG, mas a lógica não parece ser o forte do líder parlamentar do Bloco de Esquerda]

Fazenda não tinha qualquer programa para a cidade e isso mesmo era visível neste jornal. Um título destaca-se imediatamente. É aquele que diz «PS: um mandato falhado» e que se dispensava de entrar nos pormenores que levaram o Bloco a apoiar e a deixar de apoiar Sá Fernandes, partilhando assim pelo menos uma parte das responsabilidades pelo falhanço do mandato. Começa por dizer que o PSD manteve a maioria na Assembleia Municipal para depois dizer que houve um «jogo de passa-culpas entre os dois partidos».

Assim. Fazenda aperceber-se-à alguma vez do quanto isto se assemelha à tirada populista de que o país não anda para a frente porque os políticos não se entendem ou não querem trabalhar? Demasiado ocupado para entrar nos detalhes concretos que envolvem cada problema e os debates que o acompanham, Fazenda preferiu dizer que todos são culpados.

“O Saneamento financeiro, a reestruturação das empresas municipais, o relançamento dos serviços, tiveram apenas intervenções pontuais, e várias erradas.” Deixo de lado a duvidosa sintaxe para destacar o modo como se fala destas coisas sem nunca concretizar ao certo o que é que foi errado e de que forma teria Fazenda encarado esses problemas. Toda a campanha se resumiu a isto. Mais um exemplo? Está no site da candidatura. Diz Fazenda a propósito do Bairro do Loureiro: “o candidato do Bloco defendeu que bairros como este devem ser equipados “de todos os equipamentos necessários” e que “não basta encaixotar as pessoas” nas suas residências. […] Como exemplo dos problemas do bairro o candidato destacou: “Este bairro não tem uma caixa multibanco, não tem um posto de saúde, prometeram-lhe uma piscina, não a tem, prometeram-lhe um ginásio, não o tem (…) Este bairro, outrora tão problemático, precisa de um outro impulso, e é isso que o BE quer fazer”, sublinhou o candidato bloquista.”

Mas sem proceder ao saneamento financeiro de uma autarquia endividada, como é que Fazenda pretende fazer todas estas coisas? Não sabemos. Nunca o saberemos.

O que melhor ilustra o estado de espírito com que Luís Fazenda se dedicou a esta batalha são as prioridades enunciadas no jornal. Habitação, transportes, planeamento e revitalização. Em todas elas o discurso remete para outras realidades e competências que não as da CML, à qual supostamente o candidato do Bloco concorria. Castigo fiscal a sério, taxas de entrada rodoviária, transportes ferroviários gratuitos. Fazenda preencheu a sua candidatura autárquica com a sua agenda de deputado. Sobre o que faria quanto ao governo da cidade, pouco ou nada. E note-se como nos parágrafos dedicados ao planeamento e à revitalização tudo é definido pela negativa e na base da constatação. Ficamos sem saber, minimamente, o que propõe Luís Fazenda relativamente a dois temas que elegeu como prioridade. Gosto do lamento choroso relativamente aos hipermercados que não «produziram comunidade» (safa!).

Existe aqui, uma súmula das diversas propostas autárquicas organizadas por temas e permitindo a comparação entre as forças políticas. Evidentemente que num programa de 160 páginas, a candidatura do Bloco incluiu várias propostas concretas, mas ao lê-las fica-se com a impressão de que nada daquilo foi muito pensado e se procurou sobretudo acumular elementos sem uma coerência visível. O problema de tudo isto é que a gestão autárquica é mais do que um acumulado de boas ideias. É uma prática quotidiana com condições muito concretas, âmbitos, competências e problemas delicados. Não se trata de legislar, mas de projectar, gerir e concretizar. Cada equívoco assume quase imediatamente proporções desastrosas na vida de milhares de pessoas. O poder local é um caso sério e bom seria que fosse encarado com seriedade. Pessoas que conhecem bem os assuntos e se dão ao trabalho de os estudar são imprescindíveis e percebe-se mal a desenvoltura com que Fazenda acusou tudo e todos de apenas pretenderem ficar a qualquer custo no poder. Se realmente deseja uma piscina, uma caixa multibanco, um ginásio e um posto de saúde no Bairro do Aleixo e pretende fazer da CML o instrumento que assegure tudo isso, percebe-se mal como pode pensar permanecer confortavelmente alojado em declarações para a imprensa e generalidades sobre a Liscont. Não chega agora, como não chegará nunca.

Jogar o jogo da representação não é obrigatório, tal como não o é a política local. Se o terreno lhe é desconfortável o Bloco pode perfeitamente optar por não ir a votos para o governo das autarquias. O que se compreende mal é que se candidate para fazer oposição, sem explicitar o fundamental das suas divergências com quem se candidata para conduzir a CML e depois estranhe os resultados. Os lisboetas perceberam perfeitamente a diferença entre as eleições para uma Assembleia legislativa e as eleições para um órgão autárquico. Luís Fazenda pode voltar tranquilamente à sua bancada parlamentar e deixar a gestão da cidade para quem a leva um pouco mais a sério. O João Bau, por exemplo, serve perfeitamente. A esse não lhe faltaram os votos.

Fica-lhe a lição. Contar com a estupidez dos outros pode ser a mais estúpida das estratégias políticas.

Entretanto descobri no esquerda.net o balanço para-oficial que o Bloco faz destes resultados. Jorge Costa explica-nos o que se passou. O bloco perdeu porque foi coerente:“Fizemos em Lisboa o que tínhamos a fazer: o Bloco restabeleceu a coerência entre o seu programa e a sua presença política e avançou para pesar em medidas de esquerda na autarquia. Assim nascemos: como recusa da bipolarização, do “voto útil” e da alternância sem verdadeira alternativa. Do lado dos cidadãos, esta campanha foi leal a esse projecto e assim será a sua futura bancada municipal. Podemos ganhar ou perder e estamos preparados para a coerência na luta política. Assim foi em Lisboa: o Bloco ficou a 1% da eleição de um vereador e o “voto útil” deu à luz uma maioria absoluta.”

Talvez não tenha, afinal, ficado qualquer lição. Se o preço da coerência é ficar de fora, que esperança pode acalentar uma força política que faz da coerência a justificação primeira? Por entre a ficção de que o Bloco rompeu com Sá Fernandes porque este «abandonou o programa», Jorge Costa diz-nos que a ideia era boa, mas o povo está enganado. Calculo que esteja a esboçar planos para substituir o povo com a mesma facilidade com que pretendia substituir o vereador. Há quem faça dos equívocos um talento profissional.

A noite de Domingo estava, à partida, destinada a ser um museu de horrores e uma noite dos mortos vivos. Antecipava-se um cenário terrífico, com inúmeros cadáveres a abandonar as respectivas sepulturas e a vaguear, incólumes, pelos ecrãns de televisão. E assim foi, mas não sem que modestas alegrias viessem dar alguma côr a um serão a todos os títulos sombrio.

Sou um desses curiosos cidadãos que contribuem para que Oeiras seja o concelho com maior taxa de licenciados, pelo menos até à s próximas eleições em que, graças ao simpático Cartão do Cidadão, passarei oficialmente a Lisboeta. Tudo isto para dizer que me desloquei a Oeiras (a Paço de Arcos, para ser mais rigoroso) no passado Domingo para eleger um vereador da CDU, Amílcar Campos de seu nome, autarca comunista mefistofélico, incorruptível e charmoso em quem deposito toda a confiança. A miragem de despachar Isaltino estava ostensiva e irremediavelmente impossibilitada, desde logo pelo culto laico que lhe é prestado por largas fatias da população, mas também pela irredutível insignificância dos candidatos do bloco central. Assim sendo, e tendo em vista um prometido almoço matriarcal (salmão marinado em molho de limão…), fui votar, aproveitando para pôr de sobreaviso os familiares no que dizia respeito a Marcos Perestrello e à sua putativa candidatura. Não custou tanto como pensava e ao menos há no executivo camarário um Engenheiro Mecânico em tempos “perseguido pelo regime e incorporado compulsivamente no Serviço Militar.” Mais a mais com experiência e obra feita como vereador dos transportes entre 1989 e 1993, época áurea da mobilidade Oeirense, adiante.

Tudo isto para dizer que Lisboa, a minha cidade, me merecia muito mais atenção e só por um lamentável lapso (foi por dias) não consegui votar aqui. Tenho várias razões para uma aproximação pragmática à questão do poder local e, mais concretamente, ao governo da cidade. Bem se vê que é para mim relevante ter um jardim encerrado com obras suspensas por falta de pagamento ao respectivo empreiteiro ou um jardim aberto e, ainda por cima, onde se servem imperiais. Nesse campo o meu raciocínio não perde de vista as pequenas diferenças e, como tal, a minha simpatia para com a candidatura de António Costa/Helena Roseta/Sá Fernandes tinha bons argumentos do seu lado.

António Costa afirmou várias vezes uma ideia que me parece distanciá-lo efectivamente da candidatura de Santana Lopes, colocando na ordem do dia uma opção de fundo que a CDU e o Bloco se esforçaram em vão por contornar. Disse António Costa que Lisboa não necessitava de grandes obras que assegurassem a este ou aquele presidente um lugar cativo na história municipal, mas de um conjunto de pequenas intervenções que, no seu conjunto, tivessem um efeito global efectivo na vida dos lisboetas. Pode não o fazer, pode ser só campanha eleitoral, pode fazer todas as cedências e capitulações aos interesses, albergar casos de corrupção. Mas um mérito teve e esse é inegável. Havia na sua campanha e no seu projecto uma efectiva ideia do que são as competências e poderes da CML, as suas potencialidades e problemas, implicações e limitações. Se para nada mais servisse, só o facto de ter centrado o debate na ideia de que as grandes obras não são a condição de grandes cidades deu à sua campanha uma aparência de racionalidade e lógica que, espera-se, poderá durar até às próximas eleições.

António Costa concorreu efectivamente à CML com uma ideia própria de cidade. Santana Lopes também. E elas não podiam ser mais diferentes. Ruben de Carvalho e a CDU jogaram a cartada da oposição séria e responsável qualquer que fosse o vencedor. Bastou a implantação local do PCP para fazer o resto e manter os votos suficientes para eleger um vereador.

E depois havia o Bloco de Esquerda e Luís Fazenda, eleito deputado há duas semanas atrás e que corria para, como nos dizia num jornal local do Bloco, «votar tudo o que for positivo para a cidade, mas rejeitando o negocismo autárquico». O equivoco parecia evidente desde a primeira hora. O candidato estabelecia o sentido do seu voto na base do que poderia vir a apreciar ser positivo ou ser negocismo (notem como o qualificativo «autárquico» funciona aqui, simbolicamente, para assinalar que as autarquias são mais propensas do que outras realidades institucionais, ao «negocismo»). Não parecia muito explícito e de facto foi calculado propositadamente para que assim fosse. Já se sabe que quanto mais opaco é o programa, maior a margem de manobra para o manobrismo autárquico, mas Fazenda, a quem essas coisas nunca preocuparam muito, justificava a sua campanha com o que presumia ser a estupidez dos Lisboetas. Dizia ele que ninguém perceberia que o Bloco fosse oposição ao PS a nível nacional estando com ele coligado na CML.

[Note-se que a UDP, da qual Fazenda foi dirigente, fez parte da coligação com o PS e o PCP que governava Lisboa, ainda em 1997, quando Guterres era 1º Ministro. Não teria feito mal a Fazenda explicar-nos o balanço político que efectuou dessa experiência e que o autorizava a fazer este diagnóstico. Semelhante lógica inviabilizaria, por exemplo, qualquer convergência como a que ocorreu por ocasião do referendo de despenalização da IVG, mas a lógica não parece ser o forte do líder parlamentar do Bloco de Esquerda]

Fazenda não tinha qualquer programa para a cidade e isso mesmo era visível neste jornal. Um título destaca-se imediatamente. É aquele que diz «PS: um mandato falhado» e que se dispensava de entrar nos pormenores que levaram o Bloco a apoiar e a deixar de apoiar Sá Fernandes, partilhando assim pelo menos uma parte das responsabilidades pelo falhanço do mandato. Começa por dizer que o PSD manteve a maioria na Assembleia Municipal para depois dizer que houve um «jogo de passa-culpas entre os dois partidos».

Assim. Fazenda aperceber-se-à alguma vez do quanto isto se assemelha à tirada populista de que o país não anda para a frente porque os políticos não se entendem ou não querem trabalhar? Demasiado ocupado para entrar nos detalhes concretos que envolvem cada problema e os debates que o acompanham, Fazenda preferiu dizer que todos são culpados.

“O Saneamento financeiro, a reestruturação das empresas municipais, o relançamento dos serviços, tiveram apenas intervenções pontuais, e várias erradas.” Deixo de lado a duvidosa sintaxe para destacar o modo como se fala destas coisas sem nunca concretizar ao certo o que é que foi errado e de que forma teria Fazenda encarado esses problemas. Toda a campanha se resumiu a isto. Mais um exemplo? Está no site da candidatura. Diz Fazenda a propósito do Bairro do Loureiro: “o candidato do Bloco defendeu que bairros como este devem ser equipados “de todos os equipamentos necessários” e que “não basta encaixotar as pessoas” nas suas residências. […] Como exemplo dos problemas do bairro o candidato destacou: “Este bairro não tem uma caixa multibanco, não tem um posto de saúde, prometeram-lhe uma piscina, não a tem, prometeram-lhe um ginásio, não o tem (…) Este bairro, outrora tão problemático, precisa de um outro impulso, e é isso que o BE quer fazer”, sublinhou o candidato bloquista.”

Mas sem proceder ao saneamento financeiro de uma autarquia endividada, como é que Fazenda pretende fazer todas estas coisas? Não sabemos. Nunca o saberemos.

O que melhor ilustra o estado de espírito com que Luís Fazenda se dedicou a esta batalha são as prioridades enunciadas no jornal. Habitação, transportes, planeamento e revitalização. Em todas elas o discurso remete para outras realidades e competências que não as da CML, à qual supostamente o candidato do Bloco concorria. Castigo fiscal a sério, taxas de entrada rodoviária, transportes ferroviários gratuitos. Fazenda preencheu a sua candidatura autárquica com a sua agenda de deputado. Sobre o que faria quanto ao governo da cidade, pouco ou nada. E note-se como nos parágrafos dedicados ao planeamento e à revitalização tudo é definido pela negativa e na base da constatação. Ficamos sem saber, minimamente, o que propõe Luís Fazenda relativamente a dois temas que elegeu como prioridade. Gosto do lamento choroso relativamente aos hipermercados que não «produziram comunidade» (safa!).

Existe aqui, uma súmula das diversas propostas autárquicas organizadas por temas e permitindo a comparação entre as forças políticas. Evidentemente que num programa de 160 páginas, a candidatura do Bloco incluiu várias propostas concretas, mas ao lê-las fica-se com a impressão de que nada daquilo foi muito pensado e se procurou sobretudo acumular elementos sem uma coerência visível. O problema de tudo isto é que a gestão autárquica é mais do que um acumulado de boas ideias. É uma prática quotidiana com condições muito concretas, âmbitos, competências e problemas delicados. Não se trata de legislar, mas de projectar, gerir e concretizar. Cada equívoco assume quase imediatamente proporções desastrosas na vida de milhares de pessoas. O poder local é um caso sério e bom seria que fosse encarado com seriedade. Pessoas que conhecem bem os assuntos e se dão ao trabalho de os estudar são imprescindíveis e percebe-se mal a desenvoltura com que Fazenda acusou tudo e todos de apenas pretenderem ficar a qualquer custo no poder. Se realmente deseja uma piscina, uma caixa multibanco, um ginásio e um posto de saúde no Bairro do Aleixo e pretende fazer da CML o instrumento que assegure tudo isso, percebe-se mal como pode pensar permanecer confortavelmente alojado em declarações para a imprensa e generalidades sobre a Liscont. Não chega agora, como não chegará nunca.

Jogar o jogo da representação não é obrigatório, tal como não o é a política local. Se o terreno lhe é desconfortável o Bloco pode perfeitamente optar por não ir a votos para o governo das autarquias. O que se compreende mal é que se candidate para fazer oposição, sem explicitar o fundamental das suas divergências com quem se candidata para conduzir a CML e depois estranhe os resultados. Os lisboetas perceberam perfeitamente a diferença entre as eleições para uma Assembleia legislativa e as eleições para um órgão autárquico. Luís Fazenda pode voltar tranquilamente à sua bancada parlamentar e deixar a gestão da cidade para quem a leva um pouco mais a sério. O João Bau, por exemplo, serve perfeitamente. A esse não lhe faltaram os votos.

Fica-lhe a lição. Contar com a estupidez dos outros pode ser a mais estúpida das estratégias políticas.

Entretanto descobri no esquerda.net o balanço para-oficial que o Bloco faz destes resultados. Jorge Costa explica-nos o que se passou. O bloco perdeu porque foi coerente:“Fizemos em Lisboa o que tínhamos a fazer: o Bloco restabeleceu a coerência entre o seu programa e a sua presença política e avançou para pesar em medidas de esquerda na autarquia. Assim nascemos: como recusa da bipolarização, do “voto útil” e da alternância sem verdadeira alternativa. Do lado dos cidadãos, esta campanha foi leal a esse projecto e assim será a sua futura bancada municipal. Podemos ganhar ou perder e estamos preparados para a coerência na luta política. Assim foi em Lisboa: o Bloco ficou a 1% da eleição de um vereador e o “voto útil” deu à luz uma maioria absoluta.”

Talvez não tenha, afinal, ficado qualquer lição. Se o preço da coerência é ficar de fora, que esperança pode acalentar uma força política que faz da coerência a justificação primeira? Por entre a ficção de que o Bloco rompeu com Sá Fernandes porque este «abandonou o programa», Jorge Costa diz-nos que a ideia era boa, mas o povo está enganado. Calculo que esteja a esboçar planos para substituir o povo com a mesma facilidade com que pretendia substituir o vereador. Há quem faça dos equívocos um talento profissional.

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