O embate com o real

10-07-2011
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O 5 Dias arrisca-se a ser a preferência do google sempre que alguém procurar referências a «comunismo». À boleia de entrevistas, efemérides e publicações, parece mesmo que nos estamos a especializar em estudos sobre o tema, o que não pode deixar de preocupar quem vem assegurando essas despesas.

Serve isto para dizer que, em todo o caso, quando vejo as imagens do muro a cair em Berlim, não é no comunismo e nos seus problemas que penso, mas no ocaso histórico de uma muito específica declinação do capitalismo, a saber, a sua forma estatal e burocrática. O comunismo, esse, haverá que procurá-lo noutro lado que não no bolso do secretário-geral.

Interessa-me o que escreve, a esse respeito, o Carlos Vidal. E para lhe fazer a justiça que cumpre colocar nestes debates, cito-o directamente: “O “meu” comunismo, ou o comunismo, não é “comunismo” se não sofrer um embate com o real.” O real, penso ser lícito dizê-lo, são as convulsões da história, o imprevisível, o incontrolável, o que resulta dos conflitos e das paixões, mais do que das formulações generosas e das categorias abstractas.

Como o Carlos diz isto a propósito do que escreve o Zé, e eu não quero interferir num debate que lhes diz mais respeito a eles do que a mim, limito-me a dizer que sou sensível ao raciocinio que valoriza o «embate com o real». Simplesmente, e isto parece-me bastante relevante, aquilo que separa o comunismo da sua desfiguração burocrática – ou pelo menos um dos aspectos fundamentais e mais actuais dessa separação – é precisamente a relação com o real. Anton Ciliga referiu em tempos a URSS como o «país da mentira desconcertante». E fê-lo a partir das suas convicções comunistas, que o levaram a desfrutar do conforto siberiano. Aquilo que torna o «estalinismo» (para simplificar) uma descontinuidade efectiva relativamente à história anterior do movimento operário (bolchevismo incluído) é precisamente o lugar que nele ocupa a categoria de «verdade», sob a qual se arrumou durante muitos anos o «real».

Uma crítica comunista dos processos de moscovo e do «terror» durante os anos 30, não pode deixar de dar conta de tudo aquilo que os separa de realidades históricas como o «terror» jacobino, a violência dos insurrectos de Junho de 1848 ou dos combatentes da Comuna de Paris, ou do exército vermelho russo durante a guerra civil. Não se trata meramente de uma questão de contabilidade – ainda que também me pareça pouco sério ignorar o significado dos números e o conjunto de realidades para as quais eles remetem – mas da natureza da violência empregue e do lugar que ela ocupa no discurso e no imaginário político dos seus actores.

Sem dúvida que toda a guerra endurece os seus participantes. Na guerra cometem-se actos de crueldade, a morte está sempre próxima e tende a instalar-se um terreno de indiferença relativamente à s normativas seguidas em tempo de paz.Só que o «estalinismo» – o seu terror e a sua violência – foi outra coisa, algo de sistematicamente programado e levado a cabo com objectivos políticos muito concretos e nunca revelados publicamente, em que o espaço para os erros, os abusos, os incidentes, as vinganças e ajustes de contas, as crueldades espontâneas e incontroláveis, foi reduzido ao mínimo. Foi organizado com a mesma precisão burocrática de uma campanha de vacinação, uma recolha de impostos ou um plano quinquenal. Note-se que, em termos meramente formais e jurídicos, parte da repressão estalinista foi até mais garantista do que aquela praticada em tempos conturbados como a guerra civil russa ou a revolução francesa. O que só demonstra como formalidades jurídicas podem ser um óptimo acompanhamento para uma justiça meramente ornamental.

Onde os bolcheviques e os jacobinos se preocuparam em explicar e justificar cada acto de violência ou repressão do ponto de vista político – explicando a sua necessidade em termos explícitos, mesmo quando discutíveis, como foi o caso em Kronstaadt – a repressão estalinista empregou categorias cada vez mais genéricas, amplas e opacas para justificar os seus procedimentos e, a dada altura, dispensou até qualquer tipo de justificação, operando no segredo. O segredo, a mistificação e a calúnia foram os seus principais instrumentos. Isso e uma política secreta cujos méritos ninguém desconhece.

Não é de erros que falamos, mas de uma perversão voluntária e deliberada de um processo revolucionário e da acumulação do poder por uma camada burocrática. Aqui chegados, não se trata, logicamente, de carpir mágoas ou de condenar um processo revolucionário no grande tribunal da história. Basta ser tão crítico para com a burocracia como para com a burguesia. E até mais, sempre que ela se destacar no campo da contra-revolução. Se o comunismo é uma invariante, necessário se torna avaliar com severidade tudo aquilo que o desviou do seu percurso. Importa não fugir a esse embate com o real. Até porque muitos revolucionários não tiveram para onde fugir. Levaram com o real precisamente onde ele mais dói.

O 5 Dias arrisca-se a ser a preferência do google sempre que alguém procurar referências a «comunismo». À boleia de entrevistas, efemérides e publicações, parece mesmo que nos estamos a especializar em estudos sobre o tema, o que não pode deixar de preocupar quem vem assegurando essas despesas.

Serve isto para dizer que, em todo o caso, quando vejo as imagens do muro a cair em Berlim, não é no comunismo e nos seus problemas que penso, mas no ocaso histórico de uma muito específica declinação do capitalismo, a saber, a sua forma estatal e burocrática. O comunismo, esse, haverá que procurá-lo noutro lado que não no bolso do secretário-geral.

Interessa-me o que escreve, a esse respeito, o Carlos Vidal. E para lhe fazer a justiça que cumpre colocar nestes debates, cito-o directamente: “O “meu” comunismo, ou o comunismo, não é “comunismo” se não sofrer um embate com o real.” O real, penso ser lícito dizê-lo, são as convulsões da história, o imprevisível, o incontrolável, o que resulta dos conflitos e das paixões, mais do que das formulações generosas e das categorias abstractas.

Como o Carlos diz isto a propósito do que escreve o Zé, e eu não quero interferir num debate que lhes diz mais respeito a eles do que a mim, limito-me a dizer que sou sensível ao raciocinio que valoriza o «embate com o real». Simplesmente, e isto parece-me bastante relevante, aquilo que separa o comunismo da sua desfiguração burocrática – ou pelo menos um dos aspectos fundamentais e mais actuais dessa separação – é precisamente a relação com o real. Anton Ciliga referiu em tempos a URSS como o «país da mentira desconcertante». E fê-lo a partir das suas convicções comunistas, que o levaram a desfrutar do conforto siberiano. Aquilo que torna o «estalinismo» (para simplificar) uma descontinuidade efectiva relativamente à história anterior do movimento operário (bolchevismo incluído) é precisamente o lugar que nele ocupa a categoria de «verdade», sob a qual se arrumou durante muitos anos o «real».

Uma crítica comunista dos processos de moscovo e do «terror» durante os anos 30, não pode deixar de dar conta de tudo aquilo que os separa de realidades históricas como o «terror» jacobino, a violência dos insurrectos de Junho de 1848 ou dos combatentes da Comuna de Paris, ou do exército vermelho russo durante a guerra civil. Não se trata meramente de uma questão de contabilidade – ainda que também me pareça pouco sério ignorar o significado dos números e o conjunto de realidades para as quais eles remetem – mas da natureza da violência empregue e do lugar que ela ocupa no discurso e no imaginário político dos seus actores.

Sem dúvida que toda a guerra endurece os seus participantes. Na guerra cometem-se actos de crueldade, a morte está sempre próxima e tende a instalar-se um terreno de indiferença relativamente à s normativas seguidas em tempo de paz.Só que o «estalinismo» – o seu terror e a sua violência – foi outra coisa, algo de sistematicamente programado e levado a cabo com objectivos políticos muito concretos e nunca revelados publicamente, em que o espaço para os erros, os abusos, os incidentes, as vinganças e ajustes de contas, as crueldades espontâneas e incontroláveis, foi reduzido ao mínimo. Foi organizado com a mesma precisão burocrática de uma campanha de vacinação, uma recolha de impostos ou um plano quinquenal. Note-se que, em termos meramente formais e jurídicos, parte da repressão estalinista foi até mais garantista do que aquela praticada em tempos conturbados como a guerra civil russa ou a revolução francesa. O que só demonstra como formalidades jurídicas podem ser um óptimo acompanhamento para uma justiça meramente ornamental.

Onde os bolcheviques e os jacobinos se preocuparam em explicar e justificar cada acto de violência ou repressão do ponto de vista político – explicando a sua necessidade em termos explícitos, mesmo quando discutíveis, como foi o caso em Kronstaadt – a repressão estalinista empregou categorias cada vez mais genéricas, amplas e opacas para justificar os seus procedimentos e, a dada altura, dispensou até qualquer tipo de justificação, operando no segredo. O segredo, a mistificação e a calúnia foram os seus principais instrumentos. Isso e uma política secreta cujos méritos ninguém desconhece.

Não é de erros que falamos, mas de uma perversão voluntária e deliberada de um processo revolucionário e da acumulação do poder por uma camada burocrática. Aqui chegados, não se trata, logicamente, de carpir mágoas ou de condenar um processo revolucionário no grande tribunal da história. Basta ser tão crítico para com a burocracia como para com a burguesia. E até mais, sempre que ela se destacar no campo da contra-revolução. Se o comunismo é uma invariante, necessário se torna avaliar com severidade tudo aquilo que o desviou do seu percurso. Importa não fugir a esse embate com o real. Até porque muitos revolucionários não tiveram para onde fugir. Levaram com o real precisamente onde ele mais dói.

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