O capitalismo tem sete vidas

12-04-2015
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Corria o ano de 1974 e havia decorrido apenas uma semana desde o 28 de Setembro. O projecto de Spínola fracassara, Caxias enchia-se de contra-revolucionários, alguns empresários saboreavam já o pão amargo do exílio, o poder parecia ter caído nas ruas. Poucos dias depois, Kissinger comunicaria a Costa Gomes a preocupação do governo dos EUA, perante a facilidade com que se haviam erguido barricadas nos acessos a Lisboa e pela força revelada pelo PCP, dentro e fora do governo.

Por esta altura, começava a acentuar-se a oscilação para a esquerda do espectro político, bem traduzida no debate das questões económicas. Os problemas da economia portuguesa deixavam, progressivamente, de ser equacionados ao nível das soluções imediatas e a curto prazo, para ganhar alento o debate em torno das necessárias transformações estruturais. E foi nesse contexto que um jovem economista, comentador habitual nas páginas do «Expresso», desenvolveu as suas reflexões sobre o tema, num artigo publicado a 5 de Outubro e intitulado “O momento político e a economia”. Se aqui transcrevo passagens desse texto é porque ele remete, quase como se se propusesse ilustrá-lo, para o tema do seminário que a unipop irá realizar na Casa da Achada (aproveito para vos informar que ele foi adiado para Março, devido a um problema de saúde do seu principal dinamizador, o João Bernardo), a «economia organizada».

Numa situação de crise, o nosso colunista identificava os dois problemas fundamentais com que se defrontava a generalidade das empresas: a crise de liquidez e a crise de autoridade. Muitas empresas estavam descapitalizadas e revelavam-se incapazes de fazer frente aos gastos necessários à sua laboração ou de liquidar os seus compromissos comerciais e bancários. E quase todas as empresas se viam confrontadas com a organização dos seus trabalhadores em assembleias e comissões, que rapidamente evoluíam para disputar o poder à entidade patronal e subverter o direito de propriedade.

Perante este cenário, a intervenção do Estado parecia ser a única solução viável para organizar a economia e enfrentar a crise, conferindo ao papel da tecnocracia uma legitimidade cada vez mais tingida de vermelho. Eis o que escrevia a esse respeito Fernando Ulrich, dando mostras de uma aguda consciência de classe, num momento em que importava defender o essencial, ou seja, o processo de reprodução alargada do capital, fosse qual fosse a forma de propriedade a enquadrá-lo. A produtividade, ora aí está. Nessa zona de sombra em que o capitalismo de Estado e o socialismo mal se distinguiam, parecia ter chegado a hora dos gestores.

“Por mais que se afirme que o MFA não é anti-capital privado, é um facto (positivo) que este tem sofrido sucessivas diminuições de poder, o que se tem reflectido em notícias ultimamente vindas a lume na imprensa, acerca da presença de capitalistas portugueses em Espanha. Nota-se um princípio de pânico na burguesia portuguesa.

Paradoxalmente, este estado de coisas, que representa uma vitória para os trabalhadores, traduz-se num acréscimo de dificuldades para o Governo. A partir de agora é que a tão anunciada sabotagem económica vai começar em força. Até aqui era possível aos detentores do poder económico pensarem que se iria viver como em França ou em Inglaterra, pelo que tinham todo o interesse em apoiar o Governo Provisório e o MFA. Este horizonte ficou um tanto ensombrado por culpa da direita, que demonstrou não saber viver em democracia.

Por outro lado, para além do susto que apanharam (os capitalistas) nos últimos dias, com os piquetes populares, as prisões de implicados na intentona e as buscas domiciliárias, o acelerar do saneamento nas empresas privadas, diminuir-lhes-á grandemente, não só a capacidade de iniciativa individual (já deficiente na maioria dos casos) como lhes retirará aliados. Conjugando estes aspectos com o aumento da coesão e do poder das organizações sindicais, veremos facilmente que o argumento em que mais se tem baseado a defesa da iniciativa privada está fortemente ameaçado: a capacidade de gestão.

Explica-se assim o paradoxo que referimos acima, já que o Estado se pode ver obrigado, por motivos não só políticos mas, agora também, técnicos, a aumentar substancialmente a sua intervenção directa na actividade produtiva nacional.”

Corria o ano de 1974 e havia decorrido apenas uma semana desde o 28 de Setembro. O projecto de Spínola fracassara, Caxias enchia-se de contra-revolucionários, alguns empresários saboreavam já o pão amargo do exílio, o poder parecia ter caído nas ruas. Poucos dias depois, Kissinger comunicaria a Costa Gomes a preocupação do governo dos EUA, perante a facilidade com que se haviam erguido barricadas nos acessos a Lisboa e pela força revelada pelo PCP, dentro e fora do governo.

Por esta altura, começava a acentuar-se a oscilação para a esquerda do espectro político, bem traduzida no debate das questões económicas. Os problemas da economia portuguesa deixavam, progressivamente, de ser equacionados ao nível das soluções imediatas e a curto prazo, para ganhar alento o debate em torno das necessárias transformações estruturais. E foi nesse contexto que um jovem economista, comentador habitual nas páginas do «Expresso», desenvolveu as suas reflexões sobre o tema, num artigo publicado a 5 de Outubro e intitulado “O momento político e a economia”. Se aqui transcrevo passagens desse texto é porque ele remete, quase como se se propusesse ilustrá-lo, para o tema do seminário que a unipop irá realizar na Casa da Achada (aproveito para vos informar que ele foi adiado para Março, devido a um problema de saúde do seu principal dinamizador, o João Bernardo), a «economia organizada».

Numa situação de crise, o nosso colunista identificava os dois problemas fundamentais com que se defrontava a generalidade das empresas: a crise de liquidez e a crise de autoridade. Muitas empresas estavam descapitalizadas e revelavam-se incapazes de fazer frente aos gastos necessários à sua laboração ou de liquidar os seus compromissos comerciais e bancários. E quase todas as empresas se viam confrontadas com a organização dos seus trabalhadores em assembleias e comissões, que rapidamente evoluíam para disputar o poder à entidade patronal e subverter o direito de propriedade.

Perante este cenário, a intervenção do Estado parecia ser a única solução viável para organizar a economia e enfrentar a crise, conferindo ao papel da tecnocracia uma legitimidade cada vez mais tingida de vermelho. Eis o que escrevia a esse respeito Fernando Ulrich, dando mostras de uma aguda consciência de classe, num momento em que importava defender o essencial, ou seja, o processo de reprodução alargada do capital, fosse qual fosse a forma de propriedade a enquadrá-lo. A produtividade, ora aí está. Nessa zona de sombra em que o capitalismo de Estado e o socialismo mal se distinguiam, parecia ter chegado a hora dos gestores.

“Por mais que se afirme que o MFA não é anti-capital privado, é um facto (positivo) que este tem sofrido sucessivas diminuições de poder, o que se tem reflectido em notícias ultimamente vindas a lume na imprensa, acerca da presença de capitalistas portugueses em Espanha. Nota-se um princípio de pânico na burguesia portuguesa.

Paradoxalmente, este estado de coisas, que representa uma vitória para os trabalhadores, traduz-se num acréscimo de dificuldades para o Governo. A partir de agora é que a tão anunciada sabotagem económica vai começar em força. Até aqui era possível aos detentores do poder económico pensarem que se iria viver como em França ou em Inglaterra, pelo que tinham todo o interesse em apoiar o Governo Provisório e o MFA. Este horizonte ficou um tanto ensombrado por culpa da direita, que demonstrou não saber viver em democracia.

Por outro lado, para além do susto que apanharam (os capitalistas) nos últimos dias, com os piquetes populares, as prisões de implicados na intentona e as buscas domiciliárias, o acelerar do saneamento nas empresas privadas, diminuir-lhes-á grandemente, não só a capacidade de iniciativa individual (já deficiente na maioria dos casos) como lhes retirará aliados. Conjugando estes aspectos com o aumento da coesão e do poder das organizações sindicais, veremos facilmente que o argumento em que mais se tem baseado a defesa da iniciativa privada está fortemente ameaçado: a capacidade de gestão.

Explica-se assim o paradoxo que referimos acima, já que o Estado se pode ver obrigado, por motivos não só políticos mas, agora também, técnicos, a aumentar substancialmente a sua intervenção directa na actividade produtiva nacional.”

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