Suaves Bolcheviques

07-11-2013
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Cheguei, mais uma vez, atrasado ao último debate do 5 Dias. A culpa não será tanto minha, que optei por passar o fim de semana longe do mundo e perto do aquecedor, quanto dos incansáveis escrevinhadores que optaram por passar o Natal a escalpelizar currículos. Como o essencial da escalpelização está feita e rapidamente se concluiu pelo óbvio - pode-se trabalhar para a MacDonalds e ser-se contra o capitalismo, Ferreira Fernandes deveria ser mais criterioso no uso da sua imbecilidade e cingir-se à s crónicas irrelevantes que lhe põem comida em cima da mesa – eu opto por escrever acerca do que mais me fez espécie no texto do Diário de Notícias como no de Pacheco Pereira.

Ao repisar a tecla da genealogia violenta da esqueda radical e ao fazer dos bolcheviques o seu incontornável termo de comparação, um e outro cronista disseram muito mais acerca do seu imaginário político do que acerca dos debates do 5 Dias e do Arrastão. Eles são reveladores de uma “weltanschuung” (ler com sotaque da alta Baviera) que passa fundamentalmente por utilizar paradigmas históricos familiares, encaixando neles factos, protagonistas, discursos e posições relativos a acontecimentos que estão a acontecer no presente. Foi assim que o espectro de Munique se viu agitado em múltiplas direcções, por altura da guerra contra o Iraque, como se Daladier e Chamberlain tivessem regressado para tergiversar relativamente a Saddam Hussein. Ou o anti-semitismo, que volta a entrar em cena de cada vez que o Tsahal prepara novas incursões. E ainda recentemente ouvimos falar dos malefícios do PREC, a propósito da nacionalização da água, dos combustíveis ou da eletricidade.

Não desconheço as virtualidades e possibilidades que este tipo de aproximação permite e calculo que haja exercícios interessantes nesse campo. Limito-me a constatar que isso acontece com uma frequência que não deixa de ser surpreendente e que, mais vezes do que seria desejável, assenta em certezas que a historiografia raramente autoriza.

Ao oferecer-nos o epípeto de «bolcheviques suaves», Ferreira Fernandes veio escrever mais uma linha deste livro. Relações entre política e violência? Tomada do palácio de inverno, terror vermelho, execução do Czar e respectiva família. Eis a visão do mundo em que está aprisionado o cronista. E se Pacheco Pereira, refugiando-se atrás de generalidades, se escusou a desenvolver o seu raciocínio, também ele apontou para uma “tradição revolucionária” da inevitabilidade da violência.

Ora dá-se o caso de este debate ter lugar hoje, em 2009, e não num qualquer outro momento histórico. Hoje, à luz de várias análises desses episódios históricos, com argumentos que colocam novas questões em debate, perante problemas de outra ordem e tendo em conta preocupações de outra natureza. É radicalmente falso que o debate que aqui decorreu, e decorre, acerca da violência, ou da hipótese comunista, ou da melhor receita para um bom goulash (não confundir com um bom gulag), seja uma permanente reedição de um qualquer capítulo da história do movimento operário ou do século xx ou da culinária húngara. E só quem tem falta de argumentos para nele participar é que se esconde atrás desses tortuosos paralelismos, apostado em transformar a questão num indistinto teatro de sombras. Recuando para encontrar refúgio num episódio histórico que julgam resolvido a seu favor, apenas revelam a sua dificuldade em participar nos debates do nosso tempo, que está aberto a múltiplas interrogações e interpretações, e não encerrado ou fechado para balanço. É para evitar falar do que acontece perante os nosso olhos, para evitar o confronto com a situação histórica concreta em que vivemos, que Pacheco e Fernandes evitam sair de 1917.

Seremos, uns mais e outros menos, suaves. Mas dificilmente «bolcheviques», no sentido em que eles o entendem. Para isso teria sido necessária a asfixiante experiência militante que serve de suporte à s suas reflexões, o insuportável espírito de seita e a permanente economia de inteligência que caracterizou a sua passagem pela militância e ainda hoje se detecta no que escrevem. Os seus raciocínios nesse campo soam, alternadamente, ora a um incompreensível dialecto ora a uma interminável oração. Não admira que ambos tenham medo da palavra «comunismo». No seu imaginário de ex-futuros-aparatchiks, ele nunca foi mais do que a ditadura de um punhado de dirigentes sobre a generalidade da população. Eu também tenho medo disso. Só que nunca me ocorre chamar-lhe «comunismo» e não consigo imaginar que uma revolução possa resultar nisso sem que ocorra uma contra-revolução.

E será aí, no fundo, que está a diferença fundamental, que obriga Ferreira Fernandes a ir comer ao MacDonalds sempre que quer dizer alguma coisa importante. Para ele, um revolucionário respeitável é aquele que está disposto a todos os sacrifícios e que obterá como recompensa o governo da sociedade. Bem se vê que os que escapam a esse desígnio nunca tomarão o palácio de inverno nem habitarão o Kremlin. Penso que os Ferreira Fernandes deste mundo se arriscam a ser surpreendidos pela realidade básica de que a história das revoluções não ficou encerrada na Avenida Nevsky. Felizmente para ele, os «bolcheviques» de hoje saberão seguramente ser mais suaves do que aqueles que ele tentou, em vão, emular na sua juventude. Tudo faremos para que nunca lhe venham a faltar gelados nem hambúrgueres. Nem gulag, perdão, goulash.

Cheguei, mais uma vez, atrasado ao último debate do 5 Dias. A culpa não será tanto minha, que optei por passar o fim de semana longe do mundo e perto do aquecedor, quanto dos incansáveis escrevinhadores que optaram por passar o Natal a escalpelizar currículos. Como o essencial da escalpelização está feita e rapidamente se concluiu pelo óbvio - pode-se trabalhar para a MacDonalds e ser-se contra o capitalismo, Ferreira Fernandes deveria ser mais criterioso no uso da sua imbecilidade e cingir-se à s crónicas irrelevantes que lhe põem comida em cima da mesa – eu opto por escrever acerca do que mais me fez espécie no texto do Diário de Notícias como no de Pacheco Pereira.

Ao repisar a tecla da genealogia violenta da esqueda radical e ao fazer dos bolcheviques o seu incontornável termo de comparação, um e outro cronista disseram muito mais acerca do seu imaginário político do que acerca dos debates do 5 Dias e do Arrastão. Eles são reveladores de uma “weltanschuung” (ler com sotaque da alta Baviera) que passa fundamentalmente por utilizar paradigmas históricos familiares, encaixando neles factos, protagonistas, discursos e posições relativos a acontecimentos que estão a acontecer no presente. Foi assim que o espectro de Munique se viu agitado em múltiplas direcções, por altura da guerra contra o Iraque, como se Daladier e Chamberlain tivessem regressado para tergiversar relativamente a Saddam Hussein. Ou o anti-semitismo, que volta a entrar em cena de cada vez que o Tsahal prepara novas incursões. E ainda recentemente ouvimos falar dos malefícios do PREC, a propósito da nacionalização da água, dos combustíveis ou da eletricidade.

Não desconheço as virtualidades e possibilidades que este tipo de aproximação permite e calculo que haja exercícios interessantes nesse campo. Limito-me a constatar que isso acontece com uma frequência que não deixa de ser surpreendente e que, mais vezes do que seria desejável, assenta em certezas que a historiografia raramente autoriza.

Ao oferecer-nos o epípeto de «bolcheviques suaves», Ferreira Fernandes veio escrever mais uma linha deste livro. Relações entre política e violência? Tomada do palácio de inverno, terror vermelho, execução do Czar e respectiva família. Eis a visão do mundo em que está aprisionado o cronista. E se Pacheco Pereira, refugiando-se atrás de generalidades, se escusou a desenvolver o seu raciocínio, também ele apontou para uma “tradição revolucionária” da inevitabilidade da violência.

Ora dá-se o caso de este debate ter lugar hoje, em 2009, e não num qualquer outro momento histórico. Hoje, à luz de várias análises desses episódios históricos, com argumentos que colocam novas questões em debate, perante problemas de outra ordem e tendo em conta preocupações de outra natureza. É radicalmente falso que o debate que aqui decorreu, e decorre, acerca da violência, ou da hipótese comunista, ou da melhor receita para um bom goulash (não confundir com um bom gulag), seja uma permanente reedição de um qualquer capítulo da história do movimento operário ou do século xx ou da culinária húngara. E só quem tem falta de argumentos para nele participar é que se esconde atrás desses tortuosos paralelismos, apostado em transformar a questão num indistinto teatro de sombras. Recuando para encontrar refúgio num episódio histórico que julgam resolvido a seu favor, apenas revelam a sua dificuldade em participar nos debates do nosso tempo, que está aberto a múltiplas interrogações e interpretações, e não encerrado ou fechado para balanço. É para evitar falar do que acontece perante os nosso olhos, para evitar o confronto com a situação histórica concreta em que vivemos, que Pacheco e Fernandes evitam sair de 1917.

Seremos, uns mais e outros menos, suaves. Mas dificilmente «bolcheviques», no sentido em que eles o entendem. Para isso teria sido necessária a asfixiante experiência militante que serve de suporte à s suas reflexões, o insuportável espírito de seita e a permanente economia de inteligência que caracterizou a sua passagem pela militância e ainda hoje se detecta no que escrevem. Os seus raciocínios nesse campo soam, alternadamente, ora a um incompreensível dialecto ora a uma interminável oração. Não admira que ambos tenham medo da palavra «comunismo». No seu imaginário de ex-futuros-aparatchiks, ele nunca foi mais do que a ditadura de um punhado de dirigentes sobre a generalidade da população. Eu também tenho medo disso. Só que nunca me ocorre chamar-lhe «comunismo» e não consigo imaginar que uma revolução possa resultar nisso sem que ocorra uma contra-revolução.

E será aí, no fundo, que está a diferença fundamental, que obriga Ferreira Fernandes a ir comer ao MacDonalds sempre que quer dizer alguma coisa importante. Para ele, um revolucionário respeitável é aquele que está disposto a todos os sacrifícios e que obterá como recompensa o governo da sociedade. Bem se vê que os que escapam a esse desígnio nunca tomarão o palácio de inverno nem habitarão o Kremlin. Penso que os Ferreira Fernandes deste mundo se arriscam a ser surpreendidos pela realidade básica de que a história das revoluções não ficou encerrada na Avenida Nevsky. Felizmente para ele, os «bolcheviques» de hoje saberão seguramente ser mais suaves do que aqueles que ele tentou, em vão, emular na sua juventude. Tudo faremos para que nunca lhe venham a faltar gelados nem hambúrgueres. Nem gulag, perdão, goulash.

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