Depois, "todos os indivíduos eram obrigados a trabalhar na lavoura, contra a sua vontade, quase sempre desde o nascer do sol até ao anoitecer, por vezes pela noite dentro, todos os dias, na sementeira ou na apanha de batata, cenoura, cebola e alho, quase sempre 12, 14 ou 16 horas diárias e por vezes 18 e 20 horas diárias, sempre sob a vigilância atenta e permanente dos arguidos, descansando apenas nos dias e períodos em que as máquinas avariavam".Quando se dava o caso de alguém reclamar das condições, da falta de pagamento - quando alguém, desiludido, dizia que queria regressar a Portugal -, então avançava Tó Zé, com uma bengala de junco com uma moca numa extremidade. A contestação era calada à pancada.
Pela quinta de Iscar passaram o capataz José António Rodrigues, os irmãos Rui e Carlos Horta, Bruno Esteves, mais conhecido por "Inchado", Ricardo Santos, Luís de Sousa, José Silva, José da Cruz, o "P"ro", e Joaquim Henriques, o "Sardini". Todos foram roubados, ameaçados e a maior parte espancados. Alguns conseguiram fugir e relatar as suas desventuras. Mas nem sempre os seus relatos terão sido escutados com a atenção devida. Isso faz parte da história de Ricardo dos Santos.
Quatro anos de cativeiro
A sua aventura começa em Setembro ou Outubro de 2003. Ainda menor de idade, sai da casa da mãe, em Coja, Arganil, e passa a vaguear pelas ruas do Fundão. É numa dessas noites que é abordado pelo quarto arguido da história. João Carlos Carrola aborda-o e diz-lhe: "Ouve lá, andas aqui a passar fome. Não queres ir para Espanha? Eu arranjo-te lá trabalho".
Vão os dois para um bar, onde falam das condições. Uma hora depois, após Carrola fazer um telefonema, surge Tó Zé. Este e o jovem voltam a falar do futuro trabalho. Acordam todos os pormenores e resolvem ir festejar para um bar de alterne, em Teixoso. Quando dali saem, voltam ao Fundão, onde os espera Maria Clotilde. Saem os três em direcção ao aeródromo da Covilhã. É nesse momento que Ricardo diz não querer ir de imediato para Espanha, porque precisa de avisar a família. Tó Zé vai ao carro e volta com a bengala de junco. Agride o jovem nas costas e nas pernas, ao mesmo tempo que grita que a partir daquele momento é ele quem manda.
Ricardo entra para o carro dos esclavagistas. Dorme no banco de trás, trancado e transido com medo. Mãe e filho ocupam os bancos da frente. Ainda de madrugada, vão até Castelo Branco, onde Tó Zé diz que tem de entregar a carta de condução à GNR. Depois empreendem nova viagem, desta vez para Espanha. Ricardo fica sem os documentos e é de imediato encaminhado para o campo, para trabalhar. Não almoça. Só come algo à noite, para ser de imediato agrilhoado pelos pulsos. Estão nessa situação Bruno Esteves e também Joaquim, de Santa Margarida (Idanha-a-Nova), e David, de Valverde (Fundão).
Ricardo, a quem nem sequer foi permitido fazer um telefonema, passa o primeiro ano a dormir acorrentado e outros três em que, mesmo livre das correntes, não escapa aos espancamentos sempre que diz ter frio e fome ou que está doente e não consegue deslocar-se para os campos dos agricultores espanhóis que pagam a mão-de-obra escrava à família de Tó Zé.
Os dias passam e o jovem, tal como os restantes companheiros de cativeiro, é alimentado, de manhã, a café e pão, com uma sandes ao almoço, e com arroz ou massa e frango ao jantar. Recebe, como todos os que fumam, um maço de cigarros por dia. Dos 250 euros mensais, nunca viu um só cêntimo.
Categorias
Entidades
Depois, "todos os indivíduos eram obrigados a trabalhar na lavoura, contra a sua vontade, quase sempre desde o nascer do sol até ao anoitecer, por vezes pela noite dentro, todos os dias, na sementeira ou na apanha de batata, cenoura, cebola e alho, quase sempre 12, 14 ou 16 horas diárias e por vezes 18 e 20 horas diárias, sempre sob a vigilância atenta e permanente dos arguidos, descansando apenas nos dias e períodos em que as máquinas avariavam".Quando se dava o caso de alguém reclamar das condições, da falta de pagamento - quando alguém, desiludido, dizia que queria regressar a Portugal -, então avançava Tó Zé, com uma bengala de junco com uma moca numa extremidade. A contestação era calada à pancada.
Pela quinta de Iscar passaram o capataz José António Rodrigues, os irmãos Rui e Carlos Horta, Bruno Esteves, mais conhecido por "Inchado", Ricardo Santos, Luís de Sousa, José Silva, José da Cruz, o "P"ro", e Joaquim Henriques, o "Sardini". Todos foram roubados, ameaçados e a maior parte espancados. Alguns conseguiram fugir e relatar as suas desventuras. Mas nem sempre os seus relatos terão sido escutados com a atenção devida. Isso faz parte da história de Ricardo dos Santos.
Quatro anos de cativeiro
A sua aventura começa em Setembro ou Outubro de 2003. Ainda menor de idade, sai da casa da mãe, em Coja, Arganil, e passa a vaguear pelas ruas do Fundão. É numa dessas noites que é abordado pelo quarto arguido da história. João Carlos Carrola aborda-o e diz-lhe: "Ouve lá, andas aqui a passar fome. Não queres ir para Espanha? Eu arranjo-te lá trabalho".
Vão os dois para um bar, onde falam das condições. Uma hora depois, após Carrola fazer um telefonema, surge Tó Zé. Este e o jovem voltam a falar do futuro trabalho. Acordam todos os pormenores e resolvem ir festejar para um bar de alterne, em Teixoso. Quando dali saem, voltam ao Fundão, onde os espera Maria Clotilde. Saem os três em direcção ao aeródromo da Covilhã. É nesse momento que Ricardo diz não querer ir de imediato para Espanha, porque precisa de avisar a família. Tó Zé vai ao carro e volta com a bengala de junco. Agride o jovem nas costas e nas pernas, ao mesmo tempo que grita que a partir daquele momento é ele quem manda.
Ricardo entra para o carro dos esclavagistas. Dorme no banco de trás, trancado e transido com medo. Mãe e filho ocupam os bancos da frente. Ainda de madrugada, vão até Castelo Branco, onde Tó Zé diz que tem de entregar a carta de condução à GNR. Depois empreendem nova viagem, desta vez para Espanha. Ricardo fica sem os documentos e é de imediato encaminhado para o campo, para trabalhar. Não almoça. Só come algo à noite, para ser de imediato agrilhoado pelos pulsos. Estão nessa situação Bruno Esteves e também Joaquim, de Santa Margarida (Idanha-a-Nova), e David, de Valverde (Fundão).
Ricardo, a quem nem sequer foi permitido fazer um telefonema, passa o primeiro ano a dormir acorrentado e outros três em que, mesmo livre das correntes, não escapa aos espancamentos sempre que diz ter frio e fome ou que está doente e não consegue deslocar-se para os campos dos agricultores espanhóis que pagam a mão-de-obra escrava à família de Tó Zé.
Os dias passam e o jovem, tal como os restantes companheiros de cativeiro, é alimentado, de manhã, a café e pão, com uma sandes ao almoço, e com arroz ou massa e frango ao jantar. Recebe, como todos os que fumam, um maço de cigarros por dia. Dos 250 euros mensais, nunca viu um só cêntimo.