João Paulo Cotrim:Três ou quatro taças de champanhe em bar de alterne

10-09-2014
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Aborrece-me, ainda que ligeiramente, o facto de, a propósito do livro salgado, azedo, picante, Eu, Carolina, se andar a discutir questões menores como a justiça, a corrupção, a vingança. Com modéstia, gostava de erguer umas quantas taças de espumante em ambiente nocturno para colocar as coisas no seu lugar.

Um. Aborrece-me sobremaneira que se desvalorize a escrita e as revelações de Carolina Salgado classificando-a de puta. Ciclicamente há um livro que vem revelar segredos de alcova, mas não é este o caso. Gente assim só dá mau nome à mais velha (e digna) profissão do mundo. E possuidora de uma deontologia só comparável à dos jornalistas, estabelecida ao longo de séculos por uma prática exigente e necessária: não se fala do que acontece naquele espaço sem tempo que corresponde à tarifa (20 € a dança, 25 € felação sem dentes, etc.). Alguém que se serve das intimidades para revelar segredos, tamanhos, negócios não será puta, mas outra coisa qualquer que alguma alta autoridade ou alta moralidade deveria primeiro definir e depois expulsar da comunidade dos de bem. Como nós.

Dois. A própria Carolina se confessa “conselheira matrimonial”, certamente em aulas de substituição No Calor da Noite. Esta confusão deve terminar de vez: uma alternadeira não pode ser comparada a psicóloga ou outras feitiçarias afins. Qual é o homem que vai desabafar acerca do casamento para um bar onde se dança e bebe espumante?! É por estas e por outras que o País não se levanta. Alguém deve assumir responsabilidades e tornar claro o lugar de cada um. Talvez Bolonha deva obrigar à inclusão de aulas de dança (agarradinha) nos cursos de psicologia, pois os de sociologia têm já, pelo menos, uma cadeira semestral – não ouviram as alternadeiras dizer, em entrevista, que andam “na vida” para pagar o curso de sociologia? Tais ambiguidades não servem a ninguém.

Três. É subvalorizado o papel do escritor-fantasma na nossa literatura. Este episódio colocou-o no seu sítio: ao lado da escritora a dar autógrafos. Diz a senhora que é de Letras e amiga de Carolina, e muito justamente põe-se nos hipermercados a ajudar a autora de que é fantasma a assinar com todas as letras. Não apenas não se envergonha de ter sido parteira de tão estranho filho, como se orgulha de ter tirado um curso para isso. Não tenho dúvidas que é feito de letras aquele texto que celebra o cortar de unhas do pés como suprema proximidade humana, mas não haverá números por aqui?

O que nos leva a erguer uma última e quarta taça bem cheia a Tereza Coelho, a bem caçada [leia-se também este artigo], ela sim a fantasma que pairou sobre o acto de escrever e o de vender, mas também o de assinar, isto a julgar pelas imagens de televisão onde a vemos pairar sobre a mesa da autora Carolina e da escritora de Letras em pleno lançamento da obra. Não contente com o sucesso esmagador, resolveu dar-nos a pista para o interpretar: a filhadeputice era afinal um depoimento acerca da condição feminina, uma voz uterina que gritava contra a opressão. Não, a Dom Quixote não o editou por gostar de best-sellers, mas por uma urgência ética… A alternadeira, a escritora-fantasma e a sua editora, todas entaladas entre letras e psicologia, vejam se não dariam boas personagens de uma triste novela. E depois também há que contar com o Jorge Nuno e a Maria Elisa.

João Paulo Cotrim

Aborrece-me, ainda que ligeiramente, o facto de, a propósito do livro salgado, azedo, picante, Eu, Carolina, se andar a discutir questões menores como a justiça, a corrupção, a vingança. Com modéstia, gostava de erguer umas quantas taças de espumante em ambiente nocturno para colocar as coisas no seu lugar.

Um. Aborrece-me sobremaneira que se desvalorize a escrita e as revelações de Carolina Salgado classificando-a de puta. Ciclicamente há um livro que vem revelar segredos de alcova, mas não é este o caso. Gente assim só dá mau nome à mais velha (e digna) profissão do mundo. E possuidora de uma deontologia só comparável à dos jornalistas, estabelecida ao longo de séculos por uma prática exigente e necessária: não se fala do que acontece naquele espaço sem tempo que corresponde à tarifa (20 € a dança, 25 € felação sem dentes, etc.). Alguém que se serve das intimidades para revelar segredos, tamanhos, negócios não será puta, mas outra coisa qualquer que alguma alta autoridade ou alta moralidade deveria primeiro definir e depois expulsar da comunidade dos de bem. Como nós.

Dois. A própria Carolina se confessa “conselheira matrimonial”, certamente em aulas de substituição No Calor da Noite. Esta confusão deve terminar de vez: uma alternadeira não pode ser comparada a psicóloga ou outras feitiçarias afins. Qual é o homem que vai desabafar acerca do casamento para um bar onde se dança e bebe espumante?! É por estas e por outras que o País não se levanta. Alguém deve assumir responsabilidades e tornar claro o lugar de cada um. Talvez Bolonha deva obrigar à inclusão de aulas de dança (agarradinha) nos cursos de psicologia, pois os de sociologia têm já, pelo menos, uma cadeira semestral – não ouviram as alternadeiras dizer, em entrevista, que andam “na vida” para pagar o curso de sociologia? Tais ambiguidades não servem a ninguém.

Três. É subvalorizado o papel do escritor-fantasma na nossa literatura. Este episódio colocou-o no seu sítio: ao lado da escritora a dar autógrafos. Diz a senhora que é de Letras e amiga de Carolina, e muito justamente põe-se nos hipermercados a ajudar a autora de que é fantasma a assinar com todas as letras. Não apenas não se envergonha de ter sido parteira de tão estranho filho, como se orgulha de ter tirado um curso para isso. Não tenho dúvidas que é feito de letras aquele texto que celebra o cortar de unhas do pés como suprema proximidade humana, mas não haverá números por aqui?

O que nos leva a erguer uma última e quarta taça bem cheia a Tereza Coelho, a bem caçada [leia-se também este artigo], ela sim a fantasma que pairou sobre o acto de escrever e o de vender, mas também o de assinar, isto a julgar pelas imagens de televisão onde a vemos pairar sobre a mesa da autora Carolina e da escritora de Letras em pleno lançamento da obra. Não contente com o sucesso esmagador, resolveu dar-nos a pista para o interpretar: a filhadeputice era afinal um depoimento acerca da condição feminina, uma voz uterina que gritava contra a opressão. Não, a Dom Quixote não o editou por gostar de best-sellers, mas por uma urgência ética… A alternadeira, a escritora-fantasma e a sua editora, todas entaladas entre letras e psicologia, vejam se não dariam boas personagens de uma triste novela. E depois também há que contar com o Jorge Nuno e a Maria Elisa.

João Paulo Cotrim

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