Portas, Gaspar e os dois tabuleiros

23-10-2012
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A mudança de contexto político europeu favorece a posição relativa dos países em dificuldades

1. Tenho escrito bastante sobre política geral na União Europeia, mas menos do que seria recomendável sobre a política europeia do Estado português. E aí, de há muito que propus a adopção consciente daquilo a que chamo, talvez inspirado na Ponte Luiz I, a "doutrina dos dois tabuleiros".

2. O primeiro corresponde, grosso modo, à política do "bom aluno", habitualmente atribuída ao actual Governo. A condução dos trabalhos neste tabuleiro cabe ao ministro das Finanças (no Ecofin e no Eurogrupo). Todos conhecemos os pressupostos e os contornos desta política, que assenta na situação de estado de necessidade financeiro e na inevitabilidade do cumprimento do programa de assistência, traçado e controlado pela troika. E a verdade é que, no plano externo, ela se traduziu para Portugal e para o Governo num precioso capital de credibilidade e reconhecimento - capital que talvez se devesse aproveitar para jogar no segundo tabuleiro. Daí que haja sempre defendido - e defenda ainda, mesmo no quadro da duríssima conjuntura orçamental - que continuemos a demonstrar "disponibilidade" para cumprir as exigências do programa. Independentemente de concordarmos ou não com ele e com os seus pressupostos, antolha-se crucial, no curto prazo, que revelemos "vontade" e "capacidade" de o aplicar.

3. Mas isso não nos deve impedir nem nos impede de recorrer a um segundo tabuleiro. Um tabuleiro em que se joga, com impacto mais forte no imediato, a eventual mudança de algumas das condições dos programas de ajustamento e as perspectivas financeiras para 2014-2020 (fundos estruturais). Mas também, e mais ambiciosamente, a nossa visão para o futuro da Europa, tocando as questões constitucionais das chamadas união bancária, união económica, união fiscal e união orçamental. Neste segundo pilar, é fundamental que desenvolvamos uma diplomacia activa junto dos mais variados parceiros, com destaque óbvio para os restantes países em dificuldades. É aí, a meu ver, que entra o papel decisivo do ministro dos Negócios Estrangeiros, o qual se tem mantido demasiado discreto na condução dos assuntos europeus e, especialmente, na apresentação da sua visão para a Europa.

Essa discrição excessiva, explicam alguns, deve-se à circunstância de, depois do Tratado de Lisboa, os ministros das relações externas terem perdido peso nas instituições da União. É verdade que deixaram de participar no Conselho Europeu (onde agora só têm assento os chefes de Estado e de Governo) e que, dada a crise das dívidas soberanas, o centro de tensão política passou do Conselho de Assuntos Gerais (onde estão os ministros dos estrangeiros) para o Ecofin. Mas ainda assim, estão muito presentes na vida da União e contam muito no que toca ao design das soluções. Veja-se, por exemplo, o que fazem Lucinda Creighton (responsável irlandesa pelos assuntos europeus), a dupla espanhola García-Margallo-Mendez de Vigo ou o ministro polaco Sikorski para se perceber a relevância do cargo. De resto, recorde-se a visibilidade que Luís Amado dava à política europeia - mesmo já em dissonância com o primeiro-ministro José Sócrates - para avaliarmos o papel que pode ter este segundo tabuleiro.

4. Note-se que não é a primeira vez que critico este aparente relaxamento ou afrouxamento. Já o fiz, neste preciso espaço, há quase um ano, a 22 de Novembro de 2011, quando censurei a primazia dada à moda e à ilusão da "diplomacia económica". Lamento desiludir os mais entusiastas, mas não há diplomacia que possamos ou devamos adjectivar de económica. Há apenas diplomacia e tem de ser política. Há que estabelecer prioridades, que, de resto, não são necessariamente inconciliáveis. Uma correcção de rota na política europeia que atinge os países em ajustamento valerá bem mais do que a conquista de um mercado exótico adicional algures nos Trópicos...

Se isto era verdade há um ano, mostra-se agora evidente. A mudança de contexto político europeu - a liderança de Monti, a presidência de Hollande, a nova política do BCE, a nova posição do FMI, as eleições holandesas, a emergência das crises nacionalistas, o reconhecimento dos riscos do excesso de austeridade - favorece a posição relativa dos países em dificuldades. Portugal não pode eclipsar-se neste segundo tabuleiro e a condução dessa frente cabe obviamente ao ministro dos Negócios Estrangeiros.

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5. Poderá objectar-se que, jogando em dois tabuleiros, nos arriscamos a uma posição ambígua e ambivalente. Mas a diplomacia não foi toda a vida (também) uma arte da ambivalência? Como actuam, em termos europeus, os outros Estados? A Alemanha, a Finlândia e a Holanda não fazem juras à solidariedade europeia e não a mitigam, a cada passo, invocando a discordância de parceiros de coligação ou o risco do extremismo dos "Verdadeiros Finlandeses" ou de Geert Wilders?

Poderia também objectar-se que o ministro dos Negócios Estrangeiros ao fazer - registe-se a ironia - "diplomacia paralela" ameaçava entrar em divergência com o eixo do primeiro tabuleiro, protagonizado pelas Finanças. Mas sabemos que o ministro dos Negócios Estrangeiros não se tem inibido de expressar divergências nos mais vários domínios. Ora, não seria de esperar que as formulasse, se as tem, com mais cabimento e com mais legitimidade, precisamente na área que tutela, que melhor conhece e na qual dispõe de poder próprio de intervenção? E, feitas as contas, essa pretensa divergência e a complexidade que ela traduziria não poderiam constituir também mais um trunfo negocial junto dos nossos parceiros?

6. Mostrar disponibilidade para cumprir o que nos é exigido, mas demonstrar que esse não será talvez o melhor caminho; creio que anda por aí a solução para mais uma crise da nossa independência. Oxalá, os ministros de Estado a compreendam.

A mudança de contexto político europeu favorece a posição relativa dos países em dificuldades

1. Tenho escrito bastante sobre política geral na União Europeia, mas menos do que seria recomendável sobre a política europeia do Estado português. E aí, de há muito que propus a adopção consciente daquilo a que chamo, talvez inspirado na Ponte Luiz I, a "doutrina dos dois tabuleiros".

2. O primeiro corresponde, grosso modo, à política do "bom aluno", habitualmente atribuída ao actual Governo. A condução dos trabalhos neste tabuleiro cabe ao ministro das Finanças (no Ecofin e no Eurogrupo). Todos conhecemos os pressupostos e os contornos desta política, que assenta na situação de estado de necessidade financeiro e na inevitabilidade do cumprimento do programa de assistência, traçado e controlado pela troika. E a verdade é que, no plano externo, ela se traduziu para Portugal e para o Governo num precioso capital de credibilidade e reconhecimento - capital que talvez se devesse aproveitar para jogar no segundo tabuleiro. Daí que haja sempre defendido - e defenda ainda, mesmo no quadro da duríssima conjuntura orçamental - que continuemos a demonstrar "disponibilidade" para cumprir as exigências do programa. Independentemente de concordarmos ou não com ele e com os seus pressupostos, antolha-se crucial, no curto prazo, que revelemos "vontade" e "capacidade" de o aplicar.

3. Mas isso não nos deve impedir nem nos impede de recorrer a um segundo tabuleiro. Um tabuleiro em que se joga, com impacto mais forte no imediato, a eventual mudança de algumas das condições dos programas de ajustamento e as perspectivas financeiras para 2014-2020 (fundos estruturais). Mas também, e mais ambiciosamente, a nossa visão para o futuro da Europa, tocando as questões constitucionais das chamadas união bancária, união económica, união fiscal e união orçamental. Neste segundo pilar, é fundamental que desenvolvamos uma diplomacia activa junto dos mais variados parceiros, com destaque óbvio para os restantes países em dificuldades. É aí, a meu ver, que entra o papel decisivo do ministro dos Negócios Estrangeiros, o qual se tem mantido demasiado discreto na condução dos assuntos europeus e, especialmente, na apresentação da sua visão para a Europa.

Essa discrição excessiva, explicam alguns, deve-se à circunstância de, depois do Tratado de Lisboa, os ministros das relações externas terem perdido peso nas instituições da União. É verdade que deixaram de participar no Conselho Europeu (onde agora só têm assento os chefes de Estado e de Governo) e que, dada a crise das dívidas soberanas, o centro de tensão política passou do Conselho de Assuntos Gerais (onde estão os ministros dos estrangeiros) para o Ecofin. Mas ainda assim, estão muito presentes na vida da União e contam muito no que toca ao design das soluções. Veja-se, por exemplo, o que fazem Lucinda Creighton (responsável irlandesa pelos assuntos europeus), a dupla espanhola García-Margallo-Mendez de Vigo ou o ministro polaco Sikorski para se perceber a relevância do cargo. De resto, recorde-se a visibilidade que Luís Amado dava à política europeia - mesmo já em dissonância com o primeiro-ministro José Sócrates - para avaliarmos o papel que pode ter este segundo tabuleiro.

4. Note-se que não é a primeira vez que critico este aparente relaxamento ou afrouxamento. Já o fiz, neste preciso espaço, há quase um ano, a 22 de Novembro de 2011, quando censurei a primazia dada à moda e à ilusão da "diplomacia económica". Lamento desiludir os mais entusiastas, mas não há diplomacia que possamos ou devamos adjectivar de económica. Há apenas diplomacia e tem de ser política. Há que estabelecer prioridades, que, de resto, não são necessariamente inconciliáveis. Uma correcção de rota na política europeia que atinge os países em ajustamento valerá bem mais do que a conquista de um mercado exótico adicional algures nos Trópicos...

Se isto era verdade há um ano, mostra-se agora evidente. A mudança de contexto político europeu - a liderança de Monti, a presidência de Hollande, a nova política do BCE, a nova posição do FMI, as eleições holandesas, a emergência das crises nacionalistas, o reconhecimento dos riscos do excesso de austeridade - favorece a posição relativa dos países em dificuldades. Portugal não pode eclipsar-se neste segundo tabuleiro e a condução dessa frente cabe obviamente ao ministro dos Negócios Estrangeiros.

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5. Poderá objectar-se que, jogando em dois tabuleiros, nos arriscamos a uma posição ambígua e ambivalente. Mas a diplomacia não foi toda a vida (também) uma arte da ambivalência? Como actuam, em termos europeus, os outros Estados? A Alemanha, a Finlândia e a Holanda não fazem juras à solidariedade europeia e não a mitigam, a cada passo, invocando a discordância de parceiros de coligação ou o risco do extremismo dos "Verdadeiros Finlandeses" ou de Geert Wilders?

Poderia também objectar-se que o ministro dos Negócios Estrangeiros ao fazer - registe-se a ironia - "diplomacia paralela" ameaçava entrar em divergência com o eixo do primeiro tabuleiro, protagonizado pelas Finanças. Mas sabemos que o ministro dos Negócios Estrangeiros não se tem inibido de expressar divergências nos mais vários domínios. Ora, não seria de esperar que as formulasse, se as tem, com mais cabimento e com mais legitimidade, precisamente na área que tutela, que melhor conhece e na qual dispõe de poder próprio de intervenção? E, feitas as contas, essa pretensa divergência e a complexidade que ela traduziria não poderiam constituir também mais um trunfo negocial junto dos nossos parceiros?

6. Mostrar disponibilidade para cumprir o que nos é exigido, mas demonstrar que esse não será talvez o melhor caminho; creio que anda por aí a solução para mais uma crise da nossa independência. Oxalá, os ministros de Estado a compreendam.

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