Quem tem razão?

01-12-2014
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Não deixa de ser interessante que visões diametralmente diferentes da realidade possam coexistir[1]. Para a maioria dos decisores políticos europeus e nacionais – e, diga-se, para muitos especialistas – a estratégia de austeridade resulta: a dívida pública portuguesa é sustentável e Portugal está a encetar, com sucesso, um regresso aos mercados; e a economia está a recuperar. Para muitos outros a estratégia não resulta, é destrutiva para a economia e sociedade e a dívida pública é insustentável e será reestruturada mais cedo ou mais tarde.

Poder-se-ia pensar que este é mais um artigo apenas sobre economia. Mas na realidade é também sobre psicologia e filosofia, na medida em que se sugere que a coexistência de opiniões diametralmente opostas resulta de diferentes percepções da realidade.

As diferentes percepções da realidade estão em constante evolução, à medida que a própria realidade vai evoluindo. Por outro lado, a realidade não é imutável: pode ser alterada pela acção determinada de agentes e, em particular, de governos.

Este processo, em que se desenvolvem teses alternativas e mutuamente exclusivas, é a forma como a sociedade humana reage a desafios existenciais: através de teses aglutinadoras de opiniões (percepções da realidade) e de um quase fanatismo em redor destas, que divide as populações.

A facção mais forte impõe a sua tese – “tese dominante” –. Face a contratempos ou fracassos, tende a cerrar fileiras e a extremar posições e políticas. Faz sentido, no abstracto, este tipo de reacção instintiva e quase automática (em teoria, uma atitude de não desistir à primeira contrariedade mas sim persistir na tese dominante, para que a mesma tenha alguma probabilidade sucesso, poderá fazer sentido; mas, no concreto, só faz sentido insistir se de facto houver razão objectiva que o justifique).

Este processo continua até que:

– Sucesso: o desafio é ultrapassado, i.e., a tese dominante estava correcta;

– Insucesso: a tese dominante estava errada, a facção mais forte perde apoios e entra em colapso, a tese alternativa mais convincente ganha ascendência. Os seus defensores tornam-se na facção mais forte e passam a impor políticas, repetindo o processo anterior.

Na actual situação portuguesa, a tese dominante é: resposta à crise baseada em “estratégia de austeridade”.

É uma tese que não é meramente uma opinião – é subscrita, defendida e posta em prática pelos decisores políticos nacionais, das instituições de governo da UE e do FMI, isto é por quem manda no país, na UE e no FMI. A facção dominante adopta políticas que são consistentes e que apoiam essa percepção da realidade.

Esses decisores políticos podem mobilizar muitos recursos económicos do país, da zona euro (e do resto do mundo). Ao fazê-lo, alteram a realidade, pelo menos temporariamente.

No caso português, o financiamento do sector oficial (UE, BCE, FMI) ao país era, em Abril de 2014, de cerca de 155,4 mil milhões de euros, representando 40,6% da sua dívida externa bruta, tendo esse financiamento do sector oficial aumentado cerca de 132 mil milhões de euros desde o final de 2009 quando ascendia a 23 mil milhões de euros. Acresce a este valor um subsídio ao país (sobretudo ao governo e à banca) na forma de taxas de juro mais baixas, que deverá representar perto de 2% do PIB (~3,4 mil milhões de euros), por ano.

Este financiamento do sector oficial alterou a realidade portuguesa nos últimos 3 anos: permitiu ao Estado refinanciar a sua dívida pública, evitando a entrada em incumprimento e também a reestruturação de dívida; mas, impôs ao País uma política de austeridade que, se não fosse o financiamento concedido, teria sido insustentável e incapaz de evitar o incumprimento da dívida pública (“a bancarrota”).

Portanto, quando os defensores da austeridade dizem que têm razão, não podemos esquecer que as suas palavras não são meras palavras. São palavras suportadas por mais de centena e meia de milhares de milhões de razões (euros).

Os defensores da austeridade acreditam que têm razão. Portanto, de certo modo, acreditam na sua própria propaganda. E alguns deles, em posições chave do Governo nacional e europeu, estão dispostos a gastar dinheiros públicos numa escala sem precedentes para suportar a sua percepção da realidade. Uma percepção muito dispendiosa, por conseguinte.

As palavras dos críticos da austeridade são, em contraste, palavras sem tal financiamento.

Mas, se olharmos aos dinheiros públicos já comprometidos e ao estado em que se encontram a economia e a sociedade portuguesas não terão os críticos da austeridade mais fundamento para argumentar que têm razão?

[1] Coluna em parte baseada em artigo em co-autoria com o Prof. Viriato Soromenho Marques “Portugal: 40 Years of Democracy and Integration in the EU”, Heinrich Böll Foundation, e em intervenção do autor na conferência do BE “Portugal e a Região depois da troika“, a 5 de Julho de 2014, no Funchal.

Não deixa de ser interessante que visões diametralmente diferentes da realidade possam coexistir[1]. Para a maioria dos decisores políticos europeus e nacionais – e, diga-se, para muitos especialistas – a estratégia de austeridade resulta: a dívida pública portuguesa é sustentável e Portugal está a encetar, com sucesso, um regresso aos mercados; e a economia está a recuperar. Para muitos outros a estratégia não resulta, é destrutiva para a economia e sociedade e a dívida pública é insustentável e será reestruturada mais cedo ou mais tarde.

Poder-se-ia pensar que este é mais um artigo apenas sobre economia. Mas na realidade é também sobre psicologia e filosofia, na medida em que se sugere que a coexistência de opiniões diametralmente opostas resulta de diferentes percepções da realidade.

As diferentes percepções da realidade estão em constante evolução, à medida que a própria realidade vai evoluindo. Por outro lado, a realidade não é imutável: pode ser alterada pela acção determinada de agentes e, em particular, de governos.

Este processo, em que se desenvolvem teses alternativas e mutuamente exclusivas, é a forma como a sociedade humana reage a desafios existenciais: através de teses aglutinadoras de opiniões (percepções da realidade) e de um quase fanatismo em redor destas, que divide as populações.

A facção mais forte impõe a sua tese – “tese dominante” –. Face a contratempos ou fracassos, tende a cerrar fileiras e a extremar posições e políticas. Faz sentido, no abstracto, este tipo de reacção instintiva e quase automática (em teoria, uma atitude de não desistir à primeira contrariedade mas sim persistir na tese dominante, para que a mesma tenha alguma probabilidade sucesso, poderá fazer sentido; mas, no concreto, só faz sentido insistir se de facto houver razão objectiva que o justifique).

Este processo continua até que:

– Sucesso: o desafio é ultrapassado, i.e., a tese dominante estava correcta;

– Insucesso: a tese dominante estava errada, a facção mais forte perde apoios e entra em colapso, a tese alternativa mais convincente ganha ascendência. Os seus defensores tornam-se na facção mais forte e passam a impor políticas, repetindo o processo anterior.

Na actual situação portuguesa, a tese dominante é: resposta à crise baseada em “estratégia de austeridade”.

É uma tese que não é meramente uma opinião – é subscrita, defendida e posta em prática pelos decisores políticos nacionais, das instituições de governo da UE e do FMI, isto é por quem manda no país, na UE e no FMI. A facção dominante adopta políticas que são consistentes e que apoiam essa percepção da realidade.

Esses decisores políticos podem mobilizar muitos recursos económicos do país, da zona euro (e do resto do mundo). Ao fazê-lo, alteram a realidade, pelo menos temporariamente.

No caso português, o financiamento do sector oficial (UE, BCE, FMI) ao país era, em Abril de 2014, de cerca de 155,4 mil milhões de euros, representando 40,6% da sua dívida externa bruta, tendo esse financiamento do sector oficial aumentado cerca de 132 mil milhões de euros desde o final de 2009 quando ascendia a 23 mil milhões de euros. Acresce a este valor um subsídio ao país (sobretudo ao governo e à banca) na forma de taxas de juro mais baixas, que deverá representar perto de 2% do PIB (~3,4 mil milhões de euros), por ano.

Este financiamento do sector oficial alterou a realidade portuguesa nos últimos 3 anos: permitiu ao Estado refinanciar a sua dívida pública, evitando a entrada em incumprimento e também a reestruturação de dívida; mas, impôs ao País uma política de austeridade que, se não fosse o financiamento concedido, teria sido insustentável e incapaz de evitar o incumprimento da dívida pública (“a bancarrota”).

Portanto, quando os defensores da austeridade dizem que têm razão, não podemos esquecer que as suas palavras não são meras palavras. São palavras suportadas por mais de centena e meia de milhares de milhões de razões (euros).

Os defensores da austeridade acreditam que têm razão. Portanto, de certo modo, acreditam na sua própria propaganda. E alguns deles, em posições chave do Governo nacional e europeu, estão dispostos a gastar dinheiros públicos numa escala sem precedentes para suportar a sua percepção da realidade. Uma percepção muito dispendiosa, por conseguinte.

As palavras dos críticos da austeridade são, em contraste, palavras sem tal financiamento.

Mas, se olharmos aos dinheiros públicos já comprometidos e ao estado em que se encontram a economia e a sociedade portuguesas não terão os críticos da austeridade mais fundamento para argumentar que têm razão?

[1] Coluna em parte baseada em artigo em co-autoria com o Prof. Viriato Soromenho Marques “Portugal: 40 Years of Democracy and Integration in the EU”, Heinrich Böll Foundation, e em intervenção do autor na conferência do BE “Portugal e a Região depois da troika“, a 5 de Julho de 2014, no Funchal.

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