A Contra-Revolução no Ensino Superior

22-01-2012
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texto de Hugo Ferreira html | pdf A expressão contra-revolução traduz a ideia de retrocesso social, concretizado através da reposição histórica de um determinado modo de organização de vida comunitária, precedente a um período revolucionário e substituído por este. De facto, com a Revolução de 25 de Abril de 1974, deu-se uma transformação radical na sociedade portuguesa, não só com a restituição das liberdades democráticas básicas (liberdade de expressão, liberdade de imprensa, etc), mas sobretudo com o entendimento socialmente prevalecente, segundo o qual uma democracia pressupõe que inerentes àquelas liberdades estejam os direitos sociais, como o direito à educação, à saúde, à protecção no trabalho e na velhice, entre outros. Com efeito, foi esse o caminho trilhado pela Constituição portuguesa de 1976. Só a àrea da saúde poderá, talvez, rivalizar com os avanços alcançados em matéria de educação. Nesta última, por mais longo que pudesse parecer o percurso, a ideia firmada no período revolucionário era a de destruir todas as barreiras existentes no acesso à educação a todas as classes sociais. A educação, dizia-se naquele tempo, “deveria constituir um desígnio nacional”. A qualificação dos cidadãos era interpretada como condição necessária do progresso do país e do consequente aumento da qualidade de vida das populações. É sabido que o sistema capitalista gera, pela sua própria natureza, injustiças sociais gritantes e nesse sentido, metido que foi o socialismo “na gaveta”, importava criar um sistema de acção social escolar que permitisse atenuar aquelas injustiças no acesso ao ensino. Assim aconteceu durante algum tempo. A contra-revolução na educação expressa precisamente a desistência da elite dirigente, leia-se PS, PSD e CDS, em corrigir aquelas injustiças sociais, em particular no Ensino Superior, com a introdução das propinas na década de 90 do século passado, com a implementação do processo de Bolonha e do novo Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior (RJIES) já durante a primeira década do novo milénio. Daí até à promoção dos empréstimos bancários a estudantes, entenda-se ao seu endividamento precoce, e ao Decreto-Lei 70/2010, foi apenas uma questão de tempo. Mais do que desistir daquele desígnio, os sucessivos governos empenharam-se gradualmente em promover a cultura da injustiça no acesso à educação. Reflectir, ainda que de forma sumária, sobre cada uma das “contra-reformas” introduzidas no Ensino Superior e a “passadeira vermelha” estendida pelo movimento estudantil, em quase todas elas, é o que me proponho a fazer. Centrar-me-ei essencialmente sobre o período que decorre entre 2003 com a lei que estabeleceu a diferenciação entre propina máxima e mínima, até ao dia 12 de Março de 2011, data da manifestação das “Gerações à Rasca”. Por ser estudante da Universidade de Coimbra (UC) e por não ter realizado um trabalho intensivo de investigação, compreender-se-á que o centro da análise passe, a maioria das vezes, pela experiência que tenho do movimento estudantil de Coimbra. Da propina máxima/mínima às invasões do Senado da Universidade Coimbra Quando foi feito o anúncio de que no Ensino Superior Público se iriam pagar propinas, os responsáveis governativos esforçaram-se por explicar que a propina teria um valor reduzido e simbólico, servindo apenas “para contribuir um pouco para as despesas com educação”. O objectivo era claro: conter a revolta estudantil. Com efeito, no ano lectivo de 1992/1993 a propina estava fixada em cerca de 1200 escudos (6,5 euros) , tendo passado no ano lectivo seguinte para o valor de 150 mil escudos (750 euros). Sucederam-se as manifestações de contestação contra esta subida, de que são exemplo as “bastonadas” dadas pela polícia aos estudantes em protesto em frente da Assembleia da República em 1994. Foi contudo durante o período que coincide com o fim do Governo de Cavaco Silva e a entrada em funções dos executivos de António Guterres (1995-2002) –dois anos após com a Lei 113/97 de 16 de Setembro indexadas ao salário mínimo nacional- e Durão Barroso (2002-2005) que se deu a subida mais acentuada no valor das propinas. A este factor não será alheio o desfalecimento gradual do movimento estudantil português durante aquele período... Em 2003, sob a égide do governo de Direita (PSD/CDS), o ministro da Ciência e Ensino Superior, Pedro Lynce, anuncia um conjunto de proposta de revisão da Lei de Bases do Sistema de Educativo (LBSE) e do financiamento do ensino, que concretizam a diferenciação entre propina máxima (770 euros) e propina mínima (463 euros), consagrando uma subida de 30% do valor das propinas. A resposta dos estudantes não demorou, tendo sido convocada uma greve geral na UC para dia 14 de Maio e aprovada em Encontro Nacional de Dirigentes Académicos (ENDA) uma greve geral do Ensino Superior para dia 22 do mesmo mês. Em Coimbra, os estudantes eleitos para o Senado Universitário promovem a ausência de quórum, remetendo o valor da propina para o mínimo estabelecido por lei. Em 2004, temendo a fixação da propina no seu valor mais elevado, os estudantes invadem o senado por duas vezes. Durante a segunda invasão, a 20 de Outubro desse ano, o Reitor Seabra Santos, quebrando um princípio que vinha desde a Revolução de Abril, convoca as autoridades policiais para o espaço universitário, reprimindo severamente os estudantes ali presentes. Alguns são inclusivamente detidos. Os estudantes cortam relações com o Reitor e só 3 anos e meio depois se dá o seu reatamento. RJIES e Bolonha "é tudo uma vergonha" A lógica de elitização do Ensino Superior, por via da exclusão por motivos económicos dos estudantes mais carenciados, teve no RJIES e na implementação do Processo de Bolonha dois dos principais capítulos. Para se perceber bem o que primeiro representava e o modo como foi imposto, atente-se no texto de uma petição pública promovida pelo movimento “Parar a Lei”: “A recente proposta do governo de um novo RJIES, constitui uma profunda alteração da concepção do sistema de ensino, quer da sua estrutura e modo de funcionamento, quer da sua natureza e função na sociedade em que vivemos.

Pela sua importância, uma tal proposta deverá necessariamente obrigar à participação de todos os que constituem a comunidade académica: funcionários, estudantes, investigadores e professores.

Em face do calendário adoptado pelo governo, que implica a discussão e aprovação do presente diploma legal no próximo dia 28 de Junho na AR, tal expectativa será completamente gorada. É inadmissível que o essencial da discussão tenha lugar durante o período de exames que antecede as férias de Verão, comprometendo de um modo decisivo a participação exigente e rigorosa de uma boa parte do corpo docente e da quase totalidade dos estudantes. 2. A gravidade do que está em jogo não se esgota na questão metodológica comportando, para além desta, um fundado receio de que a nova proposta de RJIES possa pôr em causa a autonomia das instituições de Ensino Superior, desvirtuando aspectos fundamentais da natureza plural do seu funcionamento.

A colegialidade inerente à governação das universidades é substituída por um Conselho Geral, diminuindo drasticamente a representação e participação de estudantes e acabando na prática com a representação de funcionários não docentes. O CG terá no mínimo 30\% de personalidades de reconhecido mérito externas à instituição, de entre as quais se elege o presidente deste órgão de gestão.

Caberá ao CG definir as linhas estratégicas de orientação e gestão das universidades, incluindo competências de natureza científica, pedagógica e académica, como seja a abertura dum concurso público para nomeação do Reitor, que substitui o actual sufrágio pelos três corpos que compõem a universidade. 3. A possibilidade de transformação de Instituições de Ensino Superior Público em Fundações Públicas de direito privado, administradas por um Conselho de Curadores externos à instituição e nomeados pelo governo, remete fortemente para um quadro de governamentalização e empresarialização das universidades.

Qual a verdadeira margem de manobra, em instituições de direito privado, para prosseguir linhas estratégicas de orientação em função de critérios que não sejam eminentemente economicistas? Que espaço para áreas não tecnológicas como as ligadas às ciências puras ou às ciências sociais?

O Ensino Superior não pode ser tutelado pelos princípios de funcionamento do mercado.

Pelo contrário, deve um serviço público fundamental para o desenvolvimento do país, integrado na administração autónoma do Estado, e regido pelo Direito Público 4. Por estas razões, os signatários apelam à Assembleia da República pelo alargamento do prazo de consulta e discussão da posposta do governo do novo RJIES, até início do ano 2008. ” O conteúdo da petição fala por si. Os Senados Universitários assumiram-se como um órgão consultivo e o Conselho Geral (CG) assumiu o papel principal como órgão de governo das universidades. A tudo isto acresce a obrigatoriedade de o CG ser integrado por elementos externos à universidade, a tal “abertura à sociedade civíl” que se pautou, na verdade, pela entrada de empresas na gestão das Universidades e a consequente, subordinação dos interesses destas a critérios economicistas, baseados no lucro. O novo regime consagrou igualmente a possibilidade de passar as universidades a fundações públicas de direito privado, o que já se verificou designadamente nas Universidades do Porto e Aveiro. Por sua vez, o processo de Bolonha, isto é, “a unificação dos sistemas universitários europeus com vista a criar uma área europeia de educação superior” (Boaventura de Sousa Santos), resulta da assinatura da declaração de Bolonha em Junho de 1999 por 29 ministros da Educação, incluindo o ministro português e pretendia, dizia-se, “facilitar a mobilidade e o emprego dos estudantes da Europa”. Na verdade, esta contra-reforma, como a caracteriza Boaventura de Sousa Santos, consubstanciou-se numa alteração profunda e radical dos ciclos de estudos das múltiplas licenciaturas. Destacam-se entre outras coisas: a redução temporal das licenciaturas; e a divisão entre mestrados científicos e mestrados de fileira; a intenção em apostar na formação ao longo da vida; o ensino de proximidade A implementação do Processo de Bolonha tem sido, pelo menos no que diz respeito à Universidade de Coimbra, um desastre. O encurtamento das licenciaturas conduziu à redução do nível de qualificação dos estudantes, o que seria (supostamente) resolvido com os segundos ciclos (mestrados) que desempenhariam doravante um papel de “tapa buracos” da licenciatura, mas com uma diferença fundamental... O valor das propinas do segundo ciclo é em média 1500 euros mais caro do que o valor das propinas do primeiro ciclo. Por outro lado, a tão apregoada internacionalização tem sido sucessivamente negada na prática, pelo facto de as Universidades de países como Portugal “não serem tão competitivas como, por exemplo as britânicas ou alemãs”... A aposta na formação ao longo da vida torna-se impossível com o nível de precarização dos recém-licenciados, na medida em que estes, para além das dificuldades em pagar mestrados ou pós-graduações, se encontram sujeitos a um ritmo de trabalho de uma intensidade incompatível com o estudo universitário. Por fim, aposta no ensino de proximidade, alicerçado na redução do número de estudantes por turma, na avaliação contínua, etc, torna-se inexequível em face dos sucessivos cortes no financiamento do Ensino Superior, impedindo a contratação de mais professores ou a renovação das infra-estruturas das Universidades (mais salas de aulas, por exemplo). Concluindo este ponto, julgo que será importante reflectir sobre as razões que estão na origem da incapacidade dos dirigentes associativos e de activistas de esquerda em criarem um movimento forte anti-Bolonha e anti-RJIES, tamanha foi e continua a ser a sua importância para a vida dos estudantes... Do meu ponto de vista, a razão primordial para tal insucesso está na ausência de uma verdadeira alternativa àquelas contra-reformas. O discurso que invariavelmente está “contra”, mas não garante uma escolha alternativa, conduz sempre à indiferença de quem nos ouve... O Decreto-Lei 70/2010, os empréstimos e alguma luta de rua pelo meio A promoção da cultura da injustiça no acesso à educação que dei conta na introdução deste texto, atinge o seu clímax com os cortes brutais na Acção Social Escolar durante o Governo de José Sócrates e Mariano Gago. Isto significa que depois de ter aumentado o nível de despesas dos estudantes do Ensino Superior, em resultado do aumento do valor das propinas (actualmente fixadas nos 1000E, quando o salário médio é de cerca de 800E...) e das contra-reformas de Bolonha e RJIES, o Governo em resposta, reduziu o nível de apoio aos estudantes mais carenciados. Com efeito, Portugal é o país da zona Euro em que as famílias mais desembolsam para pagar o Ensino Superior, tendo-se registado um aumento de 7,5% para 30% do contributo directo das famílias para pagar os custos com a educação académica. A desresponsabilização do estado nesta matéria teve em 2007 mais um capítulo a assinalar. Nesse ano, o governo português criou um sistema de empréstimos para estudantes do ensino superior que visa “auxiliar, endividando”, fundamentalmente, os estudantes que não tendo bolsa de estudo, não têm rendimentos suficientes para prosseguir os seus estudos. Segundo notícias recentemente publicadas “esta linha de crédito a estudantes já disponibilizou 150 milhões de euros a quase 13 mil alunos do ensino superior.”. O sistema de empréstimos é apenas mais uma via de promoção da precariedade, se não vejamos, ainda antes de obter qualquer tipo de rendimentos o estudante já está endividado. A esta situação acresce que, obtendo um emprego (a avaliar pelo presente panorama, um emprego precário), parte do seu salário estará desde logo “penhorado” e destinado a pagar a sua dívida. Foi para combater este e outros problemas que a 4 de Novembro de 2009, os estudantes de Coimbra, reunidos em Assembleia Magna, convocaram uma manifestação nacional de estudantes do ensino superior, rompendo com o passado recente, marcado pela predominância de acções simbólicas ou acções de rua de âmbito regional, em detrimento de mobilizações nacionais. O protesto contou com a presença de mais de 4 mil estudantes, quase todos eles de Coimbra, mas mais que o valor dos números interessa ressalvar o seguinte: pela primeira vez desde 2005, uma manifestação nacional teve lugar, quebrando a lógica da “política de gabinete” promovida pela maioria dos dirigentes associativos. Naquele dia 17 de Novembro de 2009, voltou a falar-se da luta dos estudantes do ensino superior. E deste protesto resultaram algumas respostas. Em Janeiro de 2010 o Governo celebrou com as Reitorias um “contrato de confiança”, através do qual se comprometia a aumentar o financiamento das instituições do Ensino Superior para valores semelhantes aos de... 2005! Em resposta a esta situação, conjugada com o acentuar da crise económica e social, é convocada uma nova manifestação nacional de estudantes para o dia 24 de Março de 2010, dia do estudante. Esta acção de rua acaba por representar um retrocesso para o movimento estudantil, porquanto contou com um número significativamente inferior (cerca de 600 estudantes) à de 17 de Novembro de 2009. Acontece que em Maio é anunciado o Decreto-Lei 70/2010, diploma inserido no segundo pacote de austeridade (PEC 2). Este diploma, aprovado pelo Governo e ratificado pelo PSD, regula as condições de acesso e atribuição de prestações sociais do Estado, entre elas as Bolsas de Estudo. As grandes e mais prejudiciais novidades deste Decreto prendem-se, fundamentalmente, com as alterações à forma de cálculo dos rendimentos dos agregados familiares, que retirarão a bolsa de estudo a mais de 25 mil estudantes. De entre outras coisas, altera-se o valor atribuído aos membros dos agregados familiares, que deixam de valer uma unidade para o efeito do cálculo, para passarem a valer 0,7 ou 0,5, conforme sejam adultos ou menores respectivamente. Por outro lado, o valor indexante aos apoios sociais (IAS) passa de 475E, correspondente ao valor do salário mínimo nacional, para 419E. Além disto, diz-nos o 70/2010 que o valor pago pelas famílias na renda da sua casa, ou no empréstimo para sua aquisição, são um valor a considerar para efeito de cálculo da bolsa. O objectivo é simples: aumentar artificialmente os rendimentos dos agregados familiares, para que assim se possa cortar no número e no valor das bolsas. Mas há neste Decreto uma manifestação de opressão de classe que não nos pode passar indiferente: PS e PSD dizem-nos agora que o princípio do sigilo bancário só deve ser quebrado para controlo das prestações sociais, permitindo ao Estado aceder às contas bancárias de todos os seus candidatos. O princípio sagrado da burguesia cai por terra, na versão oficial, para poupar 200 milhões de euros, através do combate à fraude. Princípio que se mantém firme e hirto quando se trata de combater as grandes fraudes fiscais, avaliadas em 30 mil milhões de euros, equivalentes a 12 anos de Orçamento do Estado para o Ensino superior. Desde cedo se aperceberam os activistas de esquerda da gravidade deste diploma legal, ao contrário da grande maioria dos dirigentes associativos que perderam demasiado tempo com a crítica pública, ao invés de acções concretas. Com a entrada em vigor do Decreto-Lei 70/2010, a publicação do novo Regulamento de atribuição de bolsas e o atraso na publicação das normas técnicas, a situação tornou-se insustentável. Assim sendo, a 30 de Setembro de 2010, a Assembleia Magna de Coimbra convoca mais uma vez para o dia 17 de Novembro, uma manifestação nacional. É verdade que grande parte dos manifestantes era de Coimbra, o que espelha a grande desmobilização de outras academias de estudantes, mas o certo é que os mais de 7 mil estudantes presentes foram capazes de pressionar os deputados da Assembleia da República a aprovar em Dezembro (na generalidade) a saída das bolsas de estudo do âmbito de aplicação do Decreto-Lei 70/2010. Uma vitória parcial, sem dúvida. Mas é destas pequenas vitórias que se pode ir alimentando o movimento estudantil, pelo menos por enquanto. 12 de Março de 2011 - O poder tem de estar na rua Daquele dia 12 de Março, impressionante não são apenas os números (mais de 300 mil pessoas por todo o país), mas sobretudo o sentimento generalizado de que, de facto, o habitat natural do poder é a rua. Estive presente na manifestação do Porto. Sei que em Lisboa estiveram mais de 200 mil pessoas e talvez esse número não impressione sobremaneira os presentes, seja porque ali se concentram grande parte dos manifestantes de outros pontos do país, seja porque outras manifestações se realizaram com números semelhantes àqueles. Digno de registo, porém, é o facto de apesar dos 200 mil presentes em Lisboa, outros 100 mil terem saído à rua, em mais de 8 cidades do país, o que constituiu uma novidade assinalável. No Porto foram mais de 80 mil e o que lá se passou, eu nunca tinha vivido. Primeira nota: impedir que o dia 12 de Março se transforme apenas numa memória inofensiva, sem seguimento no futuro e que perca, por isso, o poder transformador que assustou as elites dirigentes. Não queremos ser mais uns “vencidos da vida”. A organização do Porto (não sei se foi assim noutras zonas do país), disponibilizou um microfone para todos os que quisessem dar a seu testemunho o fizessem. Ouvi gente de todas as idades e com as mais diversas experiências: estudantes do ensino secundário e superior, recém-licenciados, trabalhadores precários e não-precários, reformados, desempregados. Das mais de 300 intervenções que ouvi, bem como dos comentários que ia absorvendo durante a marcha, a todas era comum um sentimento: a indignação, suportada na injustiça da precariedade como inevitabilidade do presente e do futuro, dos salários, das reformas e bolsas de estudos baixos/as (agora, PEC atrás de PEC, cada vez mais curtos/as). Mas se houve palavra repetida por muitos, foi a palavra solidariedade, o que evidencia que aquele sentimento de indignação é também partilhado por muitos daqueles que não estão (ainda) no estado de desespero dos desemprecários. Segunda nota: politizar essa indignação e saber direccioná-la contra os agentes políticos e económicos responsáveis por esta crise, sem que isto queira dizer o controlo e a asfixia do movimento. Se não foi o primeiro, foi com toda a certeza o mais estrondoso protesto que juntou trabalhadores, reformados, estudantes e outras camadas da população, depois do 25 de Abril. Para quem dedica grande parte do seu activismo no Ensino Superior e se bate diariamente por essa unidade necessária, o dia 12 de Março constituiu uma vitória política importante. Os estudantes são hoje os primeiros precários. Precários pagando 1000€ de propinas, quando o salário médio nacional não chega a 800€. Precários vivendo praticamente 6 meses sem receber a sua bolsa de estudo, devido aos atrasos na análise dos seus processos. Precários porque depois de a receberem, pouco mais do que a subsistência lhes sobra. Precários pois, depois do curso terminado sabem que 9 em cada 10 novos empregos criados, são trabalho precário. Na verdade, a luta por mais e melhor acção social, bem como a luta contra as propinas, sendo embora reivindicações estudantis, não se distanciam em quase nada da luta por melhores salários, contra a precariedade ou contra a exploração da força de trabalho. Mas mais importante é perceber que essa unidade, essa articulação de forças, é hoje imperiosa para conseguir qualquer vitória social. Terceira nota: sem essa unidade, não será possível reverter a relação de forças vigente e isso significa, consciente ou inconscientemente, abdicar da vitória contra a burguesia. Esta manifestação, não só o dia 12, mas o antes e depois, mostra também que algo pode estar a mudar no grau de consciencialização das massas, na sua pré-disposição para a luta e transformação social. Descer a rua de Sta. Catarina (veio-me ali à memória as imagens daquele sem número de pessoas que desciam as ruas de Lisboa, rumo ao Largo do Carmo, em 1974), gritanto palavras de ordem há muito esquecidas, como “O povo unido jamais será vencido!”, ou cantado a “Grândola Vila Morena”, simbolizam em boa medida esse espírito. Mas o que impressionava mesmo, era o rosto convicto com que os manifestantes de 2011 percorriam as ruas do país, sabendo que agora já “não podem, nem querem voltar para trás”. Não quer isto dizer que a Revolução “esteja ao fim da esquina”, ou que para isso baste “ficar sentado no sofá à espera do dia triunfal”. Nos próximos tempos, todos assistiremos a uma campanha massiva de propaganda capitalista, não de descrédito do protesto (essa foi a estratégia inicial), mas de instrumentalização desta luta, através do elogio cínico, quanto à forma da sua organização, mas sobretudo fazendo alusão às “grandes vitórias” que alcançou. No dia em que o Governo caiu, não faltaram comentadores convertidos, a assinalar como ponto-chave dessa queda o protesto das “Gerações à Rasca”. Esses elogios são, sem dúvida, merecidos. É verdade que para o sucesso deste protesto, contribuíram não só o sentimento de indignação generalizado, mas também a forma espontânea e autónoma como foi convocado e organizado. É igualmente verdade que as vitórias (como será a queda deste Governo) são necessárias para reforçar o movimento, motivando-o e moralizando-o. No entanto, decisivo é que depois da queda do Governo, o manifesto das “Gerações à Rasca” possa ser cumprido e que as aspirações daquele sem número de manifestantes sejam atendidas. Quarta nota: para vitória das “Gerações à Rasca”, é condição necessária a derrota da grande maioria política e económica, corporizada por PS, PSD, CDS, que impõem esta a cultura da precariedade, do desemprego e da miséria como modo de vida. Não menos importante, é que as forças anticapitalistas tenham a capacidade para interpretar os sinais dados por este protesto. Combater as tentações de apropriação ou hegemonização do movimento e saber aprender com esta nova forma de marcação e organização de luta. E agora, "que fazer"? Vão longe os tempos em que a luta estudantil assumia pendor ofensivo e tinha ínsito no seu discurso a mudança radical de sistema económico e/ou regime político. O processo reivindicativo da época histórica que me esforcei por relatar com algum rigor neste texto, para além de simbolizar o refluxo do movimento estudantil, revela que a luta nas universidades tem carácter defensivo na actualidade. De derrota em derrota, o discurso predominante tem sido o da resistência às sucessivas contra-reformas. Já o disse a propósito do processo de Bolonha e do RJIES, mas não é de mais repeti-lo. Na origem destas derrotas está a completa ausência de alternativas consistentes e mobilizadoras, quer no plano das reformas na Educação, quer mesmo em relação à mudança sistémica. Não quer isto dizer que não existam pontos específicos dos programas antisistémicos que não tenham o seu valor. O que na realidade faz falta é um programa global alternativo que possa rivalizar teórica, científica e socialmente com as contra-reformas hoje em vigor. No que concerne ao movimento estudantil propriamente dito, muito do seu fracasso passa pela sua incapacidade na inovação do seu discurso, organização e actividade. A completa subordinação da maioria das Associações de Estudantes e dos seus dirigentes à agenda governativa, ou melhor a sua dependência em face daquela agenda, não tem encontrado nos colectivos à esquerda a resposta necessária. Este colectivos encontram-se hoje ainda muito ligados ao discurso e métodos clássicos, ou seja, um discurso de denúncia, panfletário, mas que já não é capaz de aglutinar as forças necessárias para poder vencer. Talvez a descida ao fundo do poço se tenha dado por meados de 2008. De lá para cá alguma coisa mudou indubitavelmente. Os ataques radicais à Acção Social Escolar e o extremar da crise social, potenciaram um nível de indignação colectiva, com expressão no dia 12 de Março de 2011, surpreendentes. Por outro lado, as revoltas estudantis europeias e no mágrebe, de finais de 2010 e início de 2011 respectivamente, comprovam o espírito de mudança que se sente. Dizer se estas revoltas têm continuidade e força suficiente para impor transformações radicais na vida das populações, é coisa que só o futuro dirá. De qualquer forma, certo e sabido é que condição inerente a essas transformações é a existência e construção daquelas alternativas consistentes. Esse é o nosso trabalho. Hugo Ferreira é estudante da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

texto de Hugo Ferreira html | pdf A expressão contra-revolução traduz a ideia de retrocesso social, concretizado através da reposição histórica de um determinado modo de organização de vida comunitária, precedente a um período revolucionário e substituído por este. De facto, com a Revolução de 25 de Abril de 1974, deu-se uma transformação radical na sociedade portuguesa, não só com a restituição das liberdades democráticas básicas (liberdade de expressão, liberdade de imprensa, etc), mas sobretudo com o entendimento socialmente prevalecente, segundo o qual uma democracia pressupõe que inerentes àquelas liberdades estejam os direitos sociais, como o direito à educação, à saúde, à protecção no trabalho e na velhice, entre outros. Com efeito, foi esse o caminho trilhado pela Constituição portuguesa de 1976. Só a àrea da saúde poderá, talvez, rivalizar com os avanços alcançados em matéria de educação. Nesta última, por mais longo que pudesse parecer o percurso, a ideia firmada no período revolucionário era a de destruir todas as barreiras existentes no acesso à educação a todas as classes sociais. A educação, dizia-se naquele tempo, “deveria constituir um desígnio nacional”. A qualificação dos cidadãos era interpretada como condição necessária do progresso do país e do consequente aumento da qualidade de vida das populações. É sabido que o sistema capitalista gera, pela sua própria natureza, injustiças sociais gritantes e nesse sentido, metido que foi o socialismo “na gaveta”, importava criar um sistema de acção social escolar que permitisse atenuar aquelas injustiças no acesso ao ensino. Assim aconteceu durante algum tempo. A contra-revolução na educação expressa precisamente a desistência da elite dirigente, leia-se PS, PSD e CDS, em corrigir aquelas injustiças sociais, em particular no Ensino Superior, com a introdução das propinas na década de 90 do século passado, com a implementação do processo de Bolonha e do novo Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior (RJIES) já durante a primeira década do novo milénio. Daí até à promoção dos empréstimos bancários a estudantes, entenda-se ao seu endividamento precoce, e ao Decreto-Lei 70/2010, foi apenas uma questão de tempo. Mais do que desistir daquele desígnio, os sucessivos governos empenharam-se gradualmente em promover a cultura da injustiça no acesso à educação. Reflectir, ainda que de forma sumária, sobre cada uma das “contra-reformas” introduzidas no Ensino Superior e a “passadeira vermelha” estendida pelo movimento estudantil, em quase todas elas, é o que me proponho a fazer. Centrar-me-ei essencialmente sobre o período que decorre entre 2003 com a lei que estabeleceu a diferenciação entre propina máxima e mínima, até ao dia 12 de Março de 2011, data da manifestação das “Gerações à Rasca”. Por ser estudante da Universidade de Coimbra (UC) e por não ter realizado um trabalho intensivo de investigação, compreender-se-á que o centro da análise passe, a maioria das vezes, pela experiência que tenho do movimento estudantil de Coimbra. Da propina máxima/mínima às invasões do Senado da Universidade Coimbra Quando foi feito o anúncio de que no Ensino Superior Público se iriam pagar propinas, os responsáveis governativos esforçaram-se por explicar que a propina teria um valor reduzido e simbólico, servindo apenas “para contribuir um pouco para as despesas com educação”. O objectivo era claro: conter a revolta estudantil. Com efeito, no ano lectivo de 1992/1993 a propina estava fixada em cerca de 1200 escudos (6,5 euros) , tendo passado no ano lectivo seguinte para o valor de 150 mil escudos (750 euros). Sucederam-se as manifestações de contestação contra esta subida, de que são exemplo as “bastonadas” dadas pela polícia aos estudantes em protesto em frente da Assembleia da República em 1994. Foi contudo durante o período que coincide com o fim do Governo de Cavaco Silva e a entrada em funções dos executivos de António Guterres (1995-2002) –dois anos após com a Lei 113/97 de 16 de Setembro indexadas ao salário mínimo nacional- e Durão Barroso (2002-2005) que se deu a subida mais acentuada no valor das propinas. A este factor não será alheio o desfalecimento gradual do movimento estudantil português durante aquele período... Em 2003, sob a égide do governo de Direita (PSD/CDS), o ministro da Ciência e Ensino Superior, Pedro Lynce, anuncia um conjunto de proposta de revisão da Lei de Bases do Sistema de Educativo (LBSE) e do financiamento do ensino, que concretizam a diferenciação entre propina máxima (770 euros) e propina mínima (463 euros), consagrando uma subida de 30% do valor das propinas. A resposta dos estudantes não demorou, tendo sido convocada uma greve geral na UC para dia 14 de Maio e aprovada em Encontro Nacional de Dirigentes Académicos (ENDA) uma greve geral do Ensino Superior para dia 22 do mesmo mês. Em Coimbra, os estudantes eleitos para o Senado Universitário promovem a ausência de quórum, remetendo o valor da propina para o mínimo estabelecido por lei. Em 2004, temendo a fixação da propina no seu valor mais elevado, os estudantes invadem o senado por duas vezes. Durante a segunda invasão, a 20 de Outubro desse ano, o Reitor Seabra Santos, quebrando um princípio que vinha desde a Revolução de Abril, convoca as autoridades policiais para o espaço universitário, reprimindo severamente os estudantes ali presentes. Alguns são inclusivamente detidos. Os estudantes cortam relações com o Reitor e só 3 anos e meio depois se dá o seu reatamento. RJIES e Bolonha "é tudo uma vergonha" A lógica de elitização do Ensino Superior, por via da exclusão por motivos económicos dos estudantes mais carenciados, teve no RJIES e na implementação do Processo de Bolonha dois dos principais capítulos. Para se perceber bem o que primeiro representava e o modo como foi imposto, atente-se no texto de uma petição pública promovida pelo movimento “Parar a Lei”: “A recente proposta do governo de um novo RJIES, constitui uma profunda alteração da concepção do sistema de ensino, quer da sua estrutura e modo de funcionamento, quer da sua natureza e função na sociedade em que vivemos.

Pela sua importância, uma tal proposta deverá necessariamente obrigar à participação de todos os que constituem a comunidade académica: funcionários, estudantes, investigadores e professores.

Em face do calendário adoptado pelo governo, que implica a discussão e aprovação do presente diploma legal no próximo dia 28 de Junho na AR, tal expectativa será completamente gorada. É inadmissível que o essencial da discussão tenha lugar durante o período de exames que antecede as férias de Verão, comprometendo de um modo decisivo a participação exigente e rigorosa de uma boa parte do corpo docente e da quase totalidade dos estudantes. 2. A gravidade do que está em jogo não se esgota na questão metodológica comportando, para além desta, um fundado receio de que a nova proposta de RJIES possa pôr em causa a autonomia das instituições de Ensino Superior, desvirtuando aspectos fundamentais da natureza plural do seu funcionamento.

A colegialidade inerente à governação das universidades é substituída por um Conselho Geral, diminuindo drasticamente a representação e participação de estudantes e acabando na prática com a representação de funcionários não docentes. O CG terá no mínimo 30\% de personalidades de reconhecido mérito externas à instituição, de entre as quais se elege o presidente deste órgão de gestão.

Caberá ao CG definir as linhas estratégicas de orientação e gestão das universidades, incluindo competências de natureza científica, pedagógica e académica, como seja a abertura dum concurso público para nomeação do Reitor, que substitui o actual sufrágio pelos três corpos que compõem a universidade. 3. A possibilidade de transformação de Instituições de Ensino Superior Público em Fundações Públicas de direito privado, administradas por um Conselho de Curadores externos à instituição e nomeados pelo governo, remete fortemente para um quadro de governamentalização e empresarialização das universidades.

Qual a verdadeira margem de manobra, em instituições de direito privado, para prosseguir linhas estratégicas de orientação em função de critérios que não sejam eminentemente economicistas? Que espaço para áreas não tecnológicas como as ligadas às ciências puras ou às ciências sociais?

O Ensino Superior não pode ser tutelado pelos princípios de funcionamento do mercado.

Pelo contrário, deve um serviço público fundamental para o desenvolvimento do país, integrado na administração autónoma do Estado, e regido pelo Direito Público 4. Por estas razões, os signatários apelam à Assembleia da República pelo alargamento do prazo de consulta e discussão da posposta do governo do novo RJIES, até início do ano 2008. ” O conteúdo da petição fala por si. Os Senados Universitários assumiram-se como um órgão consultivo e o Conselho Geral (CG) assumiu o papel principal como órgão de governo das universidades. A tudo isto acresce a obrigatoriedade de o CG ser integrado por elementos externos à universidade, a tal “abertura à sociedade civíl” que se pautou, na verdade, pela entrada de empresas na gestão das Universidades e a consequente, subordinação dos interesses destas a critérios economicistas, baseados no lucro. O novo regime consagrou igualmente a possibilidade de passar as universidades a fundações públicas de direito privado, o que já se verificou designadamente nas Universidades do Porto e Aveiro. Por sua vez, o processo de Bolonha, isto é, “a unificação dos sistemas universitários europeus com vista a criar uma área europeia de educação superior” (Boaventura de Sousa Santos), resulta da assinatura da declaração de Bolonha em Junho de 1999 por 29 ministros da Educação, incluindo o ministro português e pretendia, dizia-se, “facilitar a mobilidade e o emprego dos estudantes da Europa”. Na verdade, esta contra-reforma, como a caracteriza Boaventura de Sousa Santos, consubstanciou-se numa alteração profunda e radical dos ciclos de estudos das múltiplas licenciaturas. Destacam-se entre outras coisas: a redução temporal das licenciaturas; e a divisão entre mestrados científicos e mestrados de fileira; a intenção em apostar na formação ao longo da vida; o ensino de proximidade A implementação do Processo de Bolonha tem sido, pelo menos no que diz respeito à Universidade de Coimbra, um desastre. O encurtamento das licenciaturas conduziu à redução do nível de qualificação dos estudantes, o que seria (supostamente) resolvido com os segundos ciclos (mestrados) que desempenhariam doravante um papel de “tapa buracos” da licenciatura, mas com uma diferença fundamental... O valor das propinas do segundo ciclo é em média 1500 euros mais caro do que o valor das propinas do primeiro ciclo. Por outro lado, a tão apregoada internacionalização tem sido sucessivamente negada na prática, pelo facto de as Universidades de países como Portugal “não serem tão competitivas como, por exemplo as britânicas ou alemãs”... A aposta na formação ao longo da vida torna-se impossível com o nível de precarização dos recém-licenciados, na medida em que estes, para além das dificuldades em pagar mestrados ou pós-graduações, se encontram sujeitos a um ritmo de trabalho de uma intensidade incompatível com o estudo universitário. Por fim, aposta no ensino de proximidade, alicerçado na redução do número de estudantes por turma, na avaliação contínua, etc, torna-se inexequível em face dos sucessivos cortes no financiamento do Ensino Superior, impedindo a contratação de mais professores ou a renovação das infra-estruturas das Universidades (mais salas de aulas, por exemplo). Concluindo este ponto, julgo que será importante reflectir sobre as razões que estão na origem da incapacidade dos dirigentes associativos e de activistas de esquerda em criarem um movimento forte anti-Bolonha e anti-RJIES, tamanha foi e continua a ser a sua importância para a vida dos estudantes... Do meu ponto de vista, a razão primordial para tal insucesso está na ausência de uma verdadeira alternativa àquelas contra-reformas. O discurso que invariavelmente está “contra”, mas não garante uma escolha alternativa, conduz sempre à indiferença de quem nos ouve... O Decreto-Lei 70/2010, os empréstimos e alguma luta de rua pelo meio A promoção da cultura da injustiça no acesso à educação que dei conta na introdução deste texto, atinge o seu clímax com os cortes brutais na Acção Social Escolar durante o Governo de José Sócrates e Mariano Gago. Isto significa que depois de ter aumentado o nível de despesas dos estudantes do Ensino Superior, em resultado do aumento do valor das propinas (actualmente fixadas nos 1000E, quando o salário médio é de cerca de 800E...) e das contra-reformas de Bolonha e RJIES, o Governo em resposta, reduziu o nível de apoio aos estudantes mais carenciados. Com efeito, Portugal é o país da zona Euro em que as famílias mais desembolsam para pagar o Ensino Superior, tendo-se registado um aumento de 7,5% para 30% do contributo directo das famílias para pagar os custos com a educação académica. A desresponsabilização do estado nesta matéria teve em 2007 mais um capítulo a assinalar. Nesse ano, o governo português criou um sistema de empréstimos para estudantes do ensino superior que visa “auxiliar, endividando”, fundamentalmente, os estudantes que não tendo bolsa de estudo, não têm rendimentos suficientes para prosseguir os seus estudos. Segundo notícias recentemente publicadas “esta linha de crédito a estudantes já disponibilizou 150 milhões de euros a quase 13 mil alunos do ensino superior.”. O sistema de empréstimos é apenas mais uma via de promoção da precariedade, se não vejamos, ainda antes de obter qualquer tipo de rendimentos o estudante já está endividado. A esta situação acresce que, obtendo um emprego (a avaliar pelo presente panorama, um emprego precário), parte do seu salário estará desde logo “penhorado” e destinado a pagar a sua dívida. Foi para combater este e outros problemas que a 4 de Novembro de 2009, os estudantes de Coimbra, reunidos em Assembleia Magna, convocaram uma manifestação nacional de estudantes do ensino superior, rompendo com o passado recente, marcado pela predominância de acções simbólicas ou acções de rua de âmbito regional, em detrimento de mobilizações nacionais. O protesto contou com a presença de mais de 4 mil estudantes, quase todos eles de Coimbra, mas mais que o valor dos números interessa ressalvar o seguinte: pela primeira vez desde 2005, uma manifestação nacional teve lugar, quebrando a lógica da “política de gabinete” promovida pela maioria dos dirigentes associativos. Naquele dia 17 de Novembro de 2009, voltou a falar-se da luta dos estudantes do ensino superior. E deste protesto resultaram algumas respostas. Em Janeiro de 2010 o Governo celebrou com as Reitorias um “contrato de confiança”, através do qual se comprometia a aumentar o financiamento das instituições do Ensino Superior para valores semelhantes aos de... 2005! Em resposta a esta situação, conjugada com o acentuar da crise económica e social, é convocada uma nova manifestação nacional de estudantes para o dia 24 de Março de 2010, dia do estudante. Esta acção de rua acaba por representar um retrocesso para o movimento estudantil, porquanto contou com um número significativamente inferior (cerca de 600 estudantes) à de 17 de Novembro de 2009. Acontece que em Maio é anunciado o Decreto-Lei 70/2010, diploma inserido no segundo pacote de austeridade (PEC 2). Este diploma, aprovado pelo Governo e ratificado pelo PSD, regula as condições de acesso e atribuição de prestações sociais do Estado, entre elas as Bolsas de Estudo. As grandes e mais prejudiciais novidades deste Decreto prendem-se, fundamentalmente, com as alterações à forma de cálculo dos rendimentos dos agregados familiares, que retirarão a bolsa de estudo a mais de 25 mil estudantes. De entre outras coisas, altera-se o valor atribuído aos membros dos agregados familiares, que deixam de valer uma unidade para o efeito do cálculo, para passarem a valer 0,7 ou 0,5, conforme sejam adultos ou menores respectivamente. Por outro lado, o valor indexante aos apoios sociais (IAS) passa de 475E, correspondente ao valor do salário mínimo nacional, para 419E. Além disto, diz-nos o 70/2010 que o valor pago pelas famílias na renda da sua casa, ou no empréstimo para sua aquisição, são um valor a considerar para efeito de cálculo da bolsa. O objectivo é simples: aumentar artificialmente os rendimentos dos agregados familiares, para que assim se possa cortar no número e no valor das bolsas. Mas há neste Decreto uma manifestação de opressão de classe que não nos pode passar indiferente: PS e PSD dizem-nos agora que o princípio do sigilo bancário só deve ser quebrado para controlo das prestações sociais, permitindo ao Estado aceder às contas bancárias de todos os seus candidatos. O princípio sagrado da burguesia cai por terra, na versão oficial, para poupar 200 milhões de euros, através do combate à fraude. Princípio que se mantém firme e hirto quando se trata de combater as grandes fraudes fiscais, avaliadas em 30 mil milhões de euros, equivalentes a 12 anos de Orçamento do Estado para o Ensino superior. Desde cedo se aperceberam os activistas de esquerda da gravidade deste diploma legal, ao contrário da grande maioria dos dirigentes associativos que perderam demasiado tempo com a crítica pública, ao invés de acções concretas. Com a entrada em vigor do Decreto-Lei 70/2010, a publicação do novo Regulamento de atribuição de bolsas e o atraso na publicação das normas técnicas, a situação tornou-se insustentável. Assim sendo, a 30 de Setembro de 2010, a Assembleia Magna de Coimbra convoca mais uma vez para o dia 17 de Novembro, uma manifestação nacional. É verdade que grande parte dos manifestantes era de Coimbra, o que espelha a grande desmobilização de outras academias de estudantes, mas o certo é que os mais de 7 mil estudantes presentes foram capazes de pressionar os deputados da Assembleia da República a aprovar em Dezembro (na generalidade) a saída das bolsas de estudo do âmbito de aplicação do Decreto-Lei 70/2010. Uma vitória parcial, sem dúvida. Mas é destas pequenas vitórias que se pode ir alimentando o movimento estudantil, pelo menos por enquanto. 12 de Março de 2011 - O poder tem de estar na rua Daquele dia 12 de Março, impressionante não são apenas os números (mais de 300 mil pessoas por todo o país), mas sobretudo o sentimento generalizado de que, de facto, o habitat natural do poder é a rua. Estive presente na manifestação do Porto. Sei que em Lisboa estiveram mais de 200 mil pessoas e talvez esse número não impressione sobremaneira os presentes, seja porque ali se concentram grande parte dos manifestantes de outros pontos do país, seja porque outras manifestações se realizaram com números semelhantes àqueles. Digno de registo, porém, é o facto de apesar dos 200 mil presentes em Lisboa, outros 100 mil terem saído à rua, em mais de 8 cidades do país, o que constituiu uma novidade assinalável. No Porto foram mais de 80 mil e o que lá se passou, eu nunca tinha vivido. Primeira nota: impedir que o dia 12 de Março se transforme apenas numa memória inofensiva, sem seguimento no futuro e que perca, por isso, o poder transformador que assustou as elites dirigentes. Não queremos ser mais uns “vencidos da vida”. A organização do Porto (não sei se foi assim noutras zonas do país), disponibilizou um microfone para todos os que quisessem dar a seu testemunho o fizessem. Ouvi gente de todas as idades e com as mais diversas experiências: estudantes do ensino secundário e superior, recém-licenciados, trabalhadores precários e não-precários, reformados, desempregados. Das mais de 300 intervenções que ouvi, bem como dos comentários que ia absorvendo durante a marcha, a todas era comum um sentimento: a indignação, suportada na injustiça da precariedade como inevitabilidade do presente e do futuro, dos salários, das reformas e bolsas de estudos baixos/as (agora, PEC atrás de PEC, cada vez mais curtos/as). Mas se houve palavra repetida por muitos, foi a palavra solidariedade, o que evidencia que aquele sentimento de indignação é também partilhado por muitos daqueles que não estão (ainda) no estado de desespero dos desemprecários. Segunda nota: politizar essa indignação e saber direccioná-la contra os agentes políticos e económicos responsáveis por esta crise, sem que isto queira dizer o controlo e a asfixia do movimento. Se não foi o primeiro, foi com toda a certeza o mais estrondoso protesto que juntou trabalhadores, reformados, estudantes e outras camadas da população, depois do 25 de Abril. Para quem dedica grande parte do seu activismo no Ensino Superior e se bate diariamente por essa unidade necessária, o dia 12 de Março constituiu uma vitória política importante. Os estudantes são hoje os primeiros precários. Precários pagando 1000€ de propinas, quando o salário médio nacional não chega a 800€. Precários vivendo praticamente 6 meses sem receber a sua bolsa de estudo, devido aos atrasos na análise dos seus processos. Precários porque depois de a receberem, pouco mais do que a subsistência lhes sobra. Precários pois, depois do curso terminado sabem que 9 em cada 10 novos empregos criados, são trabalho precário. Na verdade, a luta por mais e melhor acção social, bem como a luta contra as propinas, sendo embora reivindicações estudantis, não se distanciam em quase nada da luta por melhores salários, contra a precariedade ou contra a exploração da força de trabalho. Mas mais importante é perceber que essa unidade, essa articulação de forças, é hoje imperiosa para conseguir qualquer vitória social. Terceira nota: sem essa unidade, não será possível reverter a relação de forças vigente e isso significa, consciente ou inconscientemente, abdicar da vitória contra a burguesia. Esta manifestação, não só o dia 12, mas o antes e depois, mostra também que algo pode estar a mudar no grau de consciencialização das massas, na sua pré-disposição para a luta e transformação social. Descer a rua de Sta. Catarina (veio-me ali à memória as imagens daquele sem número de pessoas que desciam as ruas de Lisboa, rumo ao Largo do Carmo, em 1974), gritanto palavras de ordem há muito esquecidas, como “O povo unido jamais será vencido!”, ou cantado a “Grândola Vila Morena”, simbolizam em boa medida esse espírito. Mas o que impressionava mesmo, era o rosto convicto com que os manifestantes de 2011 percorriam as ruas do país, sabendo que agora já “não podem, nem querem voltar para trás”. Não quer isto dizer que a Revolução “esteja ao fim da esquina”, ou que para isso baste “ficar sentado no sofá à espera do dia triunfal”. Nos próximos tempos, todos assistiremos a uma campanha massiva de propaganda capitalista, não de descrédito do protesto (essa foi a estratégia inicial), mas de instrumentalização desta luta, através do elogio cínico, quanto à forma da sua organização, mas sobretudo fazendo alusão às “grandes vitórias” que alcançou. No dia em que o Governo caiu, não faltaram comentadores convertidos, a assinalar como ponto-chave dessa queda o protesto das “Gerações à Rasca”. Esses elogios são, sem dúvida, merecidos. É verdade que para o sucesso deste protesto, contribuíram não só o sentimento de indignação generalizado, mas também a forma espontânea e autónoma como foi convocado e organizado. É igualmente verdade que as vitórias (como será a queda deste Governo) são necessárias para reforçar o movimento, motivando-o e moralizando-o. No entanto, decisivo é que depois da queda do Governo, o manifesto das “Gerações à Rasca” possa ser cumprido e que as aspirações daquele sem número de manifestantes sejam atendidas. Quarta nota: para vitória das “Gerações à Rasca”, é condição necessária a derrota da grande maioria política e económica, corporizada por PS, PSD, CDS, que impõem esta a cultura da precariedade, do desemprego e da miséria como modo de vida. Não menos importante, é que as forças anticapitalistas tenham a capacidade para interpretar os sinais dados por este protesto. Combater as tentações de apropriação ou hegemonização do movimento e saber aprender com esta nova forma de marcação e organização de luta. E agora, "que fazer"? Vão longe os tempos em que a luta estudantil assumia pendor ofensivo e tinha ínsito no seu discurso a mudança radical de sistema económico e/ou regime político. O processo reivindicativo da época histórica que me esforcei por relatar com algum rigor neste texto, para além de simbolizar o refluxo do movimento estudantil, revela que a luta nas universidades tem carácter defensivo na actualidade. De derrota em derrota, o discurso predominante tem sido o da resistência às sucessivas contra-reformas. Já o disse a propósito do processo de Bolonha e do RJIES, mas não é de mais repeti-lo. Na origem destas derrotas está a completa ausência de alternativas consistentes e mobilizadoras, quer no plano das reformas na Educação, quer mesmo em relação à mudança sistémica. Não quer isto dizer que não existam pontos específicos dos programas antisistémicos que não tenham o seu valor. O que na realidade faz falta é um programa global alternativo que possa rivalizar teórica, científica e socialmente com as contra-reformas hoje em vigor. No que concerne ao movimento estudantil propriamente dito, muito do seu fracasso passa pela sua incapacidade na inovação do seu discurso, organização e actividade. A completa subordinação da maioria das Associações de Estudantes e dos seus dirigentes à agenda governativa, ou melhor a sua dependência em face daquela agenda, não tem encontrado nos colectivos à esquerda a resposta necessária. Este colectivos encontram-se hoje ainda muito ligados ao discurso e métodos clássicos, ou seja, um discurso de denúncia, panfletário, mas que já não é capaz de aglutinar as forças necessárias para poder vencer. Talvez a descida ao fundo do poço se tenha dado por meados de 2008. De lá para cá alguma coisa mudou indubitavelmente. Os ataques radicais à Acção Social Escolar e o extremar da crise social, potenciaram um nível de indignação colectiva, com expressão no dia 12 de Março de 2011, surpreendentes. Por outro lado, as revoltas estudantis europeias e no mágrebe, de finais de 2010 e início de 2011 respectivamente, comprovam o espírito de mudança que se sente. Dizer se estas revoltas têm continuidade e força suficiente para impor transformações radicais na vida das populações, é coisa que só o futuro dirá. De qualquer forma, certo e sabido é que condição inerente a essas transformações é a existência e construção daquelas alternativas consistentes. Esse é o nosso trabalho. Hugo Ferreira é estudante da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

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