poesia: jorge velhote

01-07-2011
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A sabedoria é para os barcossob as pontes da noite,a alma, o oiro.Aqui dormiria, à distância singularde um beijo, um lençol de água,um travesseiro de cuidada pedra.Outras coisas da infância, mas devagar, outros corpos a penumbra percorrendo,a poeira da luz espiando os sapatos, a navalha chamuscada.Também eu herdei a perigosa ilusãoda bicicleta, um silênciodanado por mulheres, pelo ardor cristalino do álcool,no limbo mais rasgado do mundo;o segredo tão natural da pinturana profecia azul dos mosaicos,no carvão amargo da noite;certos vestígios pelo tráfico outrora florescente:sedas, frutos, tabaco, pequenos tesouros,caixinhas de laque, sandáliasgastando, dia após dia, a mágoa.Que posso fazer pelas pedras desta praça senãocobri-las de aves, trapos, moedase pela poalha do crepúsculo seduzir os vitrais,os óleos santos, o sândalo, o bolor intenso das paredes?Cambiar a chuva pelos claustros do vento, o vidrode oficiante fogo, comoem Murano a família Barelli?Que poderei comprar para o vaziodeste anoitecer? um pouco do meu sol?daquele mar, um punhado de areia?jorge velhotecolóquio letras nr. 90março 1986fundação calouste gulbenkian1986


A sabedoria é para os barcossob as pontes da noite,a alma, o oiro.Aqui dormiria, à distância singularde um beijo, um lençol de água,um travesseiro de cuidada pedra.Outras coisas da infância, mas devagar, outros corpos a penumbra percorrendo,a poeira da luz espiando os sapatos, a navalha chamuscada.Também eu herdei a perigosa ilusãoda bicicleta, um silênciodanado por mulheres, pelo ardor cristalino do álcool,no limbo mais rasgado do mundo;o segredo tão natural da pinturana profecia azul dos mosaicos,no carvão amargo da noite;certos vestígios pelo tráfico outrora florescente:sedas, frutos, tabaco, pequenos tesouros,caixinhas de laque, sandáliasgastando, dia após dia, a mágoa.Que posso fazer pelas pedras desta praça senãocobri-las de aves, trapos, moedase pela poalha do crepúsculo seduzir os vitrais,os óleos santos, o sândalo, o bolor intenso das paredes?Cambiar a chuva pelos claustros do vento, o vidrode oficiante fogo, comoem Murano a família Barelli?Que poderei comprar para o vaziodeste anoitecer? um pouco do meu sol?daquele mar, um punhado de areia?jorge velhotecolóquio letras nr. 90março 1986fundação calouste gulbenkian1986

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