O dia em que Marcelo mergulhou vestido à Maria Cachucha

30-09-2015
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Marcelo tinha o problema de ser desconhecido, o Tejo tinha o problema de ser um esgoto a céu aberto. Juntaram-se - o político e o rio - num dos episódios mais insólitos da história das campanhas eleitorais portuguesas. A menos de um mês das legislativas, revisitamos as nossas memórias políticas. Este é o 13º capítulo

Houve um tempo, há muitos, muitos anos, em que Marcelo Rebelo de Sousa não era conhecido em todas as casas do país, nem era visita da família aos domingos à noite, à hora do jantar. Este episódio passa-se nesse tempo. O protagonista é quem bem sabemos - enérgico, astuto, divertido, imprevisível -, mas quando muitos ainda não sabiam quem ele era.

Esse era o problema de Marcelo por esses dias, no verão de 1989. A falta de notoriedade era o maior obstáculo que o ex-diretor e fundador do Expresso, ex-ministro dos Assuntos Parlamentares, ex-presidente da distrital de Lisboa do PSD e eterno agitador do partido tinha pela frente no empreendimento em que então se tinha metido: a candidatura à presidência da Câmara Municipal de Lisboa. “Uma coisa maluca”, confessaria o próprio, anos mais tarde, mas que se lhe atravessou na vida sem o professor de Direito estar à espera: António Pinto Leite, então presidente da distrital de Lisboa, cúmplice de Marcelo na Nova Esperança (uma espécie de aldeia gaulesa liberal e cosmopolita dentro do PSD), precisava desesperadamente de um candidato que não tinha. Até que convenceu o amigo. Os problemas vieram depois: Cavaco não apreciou a ideia (mas isso resolveu-se), faltava dinheiro (arranjaram) e o candidato era um ilustre desconhecido, sobretudo em comparação com o principal adversário, nem mais nem menos do que Jorge Sampaio, que era, então, o líder do Partido Socialista.

“Bolas, Marcelo, saiu-nos um touro de 600 quilos para a praça!...”, desabafou Pinto Leite ao saber da candidatura de Sampaio, conforme relata o jornalista Vítor Matos na biografia do professor (“Marcelo Rebelo de Sousa”, ed. Esfera dos Livros, 2012). Era preciso dar a conhecer a aposta social-democrata, que tinha nome mais do que feito nas intrigas de políticos e jornalístas, mas poucos reconheciam na rua. Se a candidatura foi “uma coisa maluca”, a campanha ainda mais maluca foi. Até se atirou ao Tejo.

clara azevedo

Asa delta no Cristo Rei e ideias assim

A primeira ideia para aumentar a notoriedade de Marcelo junto do povo era de estalo: o candidato subia ao Cristo Rei e atirava-se para um voo de asa delta. Seria sucesso garantido, mas nada garantia que o candidato vivesse para desfrutar da notoriedade que assim conseguisse. Ainda houve piadas sobre Marcelo desafiar Sampaio para um jogo de ténis ou um combate de boxe, mas o staff acabou por assentar no plano B: um mergulho no Tejo.

Convém pôr as coisas em perspetiva: o Rio Tejo em 1989 era coisa pouco recomendável, escura e porca, onde flutuavam dejetos de toda a espécie. Um esgoto a céu aberto, com ameaças bem visíveis e outras, invisíveis mas fáceis de adivinhar. Apesar de saber a porcaria para onde se ia atirar de cabeça, Marcelo não desanimou - ainda pensou em tomar vacinas para se precaver de coisas mais graves do que o risco de fazer má figura, mas não dava tempo… Nem isso o demoveu.

O grande momento foi marcado para 31 de agosto. Marcelo embarcou num cacilheiro, rodeado de dezenas de jornalistas quase tão entusiasmados como o mediático mergulhador. Como bom comentador de todo o tipo de fenómenos, comentou por antecipação a sua própria performance: “Vou nadar à vontade porque tenho a certeza de que em terra tudo correrá bem. Isso dá-me outra leveza de ânimo e a melhor descontração para as braçadas que tenho de dar até à margem”, disse aos jornalistas antes de se transferir do cacilheiro para uma lancha da Marinha, o Bonança, pois não tinha autorização para mergulhar do barco da Transtejo.

Conseguir, de todo, uma autorização para mergulhar no rio já tinha sido uma façanha, pois o regulamento do Porto de Lisboa, datado de 1919, proibía terminantemente banhos no Tejo. Superadas as burocracias, que tinham consumido tempo e energia ao staff de campanha, Marcelo deu o seu show. “Nunca vou ao fundo”, garantiu numa conferência de imprensa no meio do rio em que falou dos projetos que tinha para a frente-Tejo, e de si próprio. “Como maratonista que sou, não é que boie sistematicamente, mas desenvencilho-me com a minha capacidade de natação e consigo ultrapassar os obstáculos”, garantiu.

Mesmo antes de saltar para a água, os grandes objetivos da ação estavam cumpridos: conseguir atenção mediática e passar uma impressão de juventude, descontração e genica. Dessa forma, Marcelo dava-se a conhecer aos lisboetas com uma imagem bem diferente da de Sampaio, mas também da do primeiro-ministro. “Para sisudo já nos basta o Cavaco”, dizia um dos seus apoiantes, citado nessa semana numa reportagem d’O Independente.

Akido e exercícios respiratórios

Paulo Portas, o impulsionador do jornal que mais dores de cabeça dava ao cavaquismo, não escondia o seu entusiasmo com a candidatura de Marcelo (tudo isto se passa, recorde-se, bem antes da vichisoyse). Segundo Portas, a hipótese do professor ganhar Lisboa abria espaço a uma alternativa forte a Cavaco dentro do PSD. O seu jornal, por outro lado, não escondia o divertimento com a aventura fluvial de Rebelo de Sousa. “Vivia-se um ambiente misto de euforia e de peregrinação”, contava o semanário. “A militante social-democrata Virgínia Estorninho não escondia a sua excitação: ‘Será que ele vai vestir um fato de banho modernaço?’. Quando, enfim, Marcelo saiu [do camarote onde mudara de roupa], ouviram-se alguns assobios. Vestia bermudas verdes e brancas, t-shirt branca e sapatilhas de borracha. Estorninho não conseguiu disfarçar o desapontamento: ‘Afinal é um fato do tempo da Maria Cachucha!”

O candidato fez os últimos exercícios de aquecimento (já tinha feito aikido antes do embarque) e splash!, atirou-se à água. Por azar, apesar do aturado estudo das marés, teve de lutar contra elas: mergulhou quando a maré devia estar a mudar, mas a corrente estava mais forte do que o esperado, o que obrigou Marcelo a um esforço suplementar para não ser puxado para o Bugio. Valeu-lhe estar em boa forma.

Quando, por fim, chegou a terra, ofegante, de calções descaídos e já sem sapatilhas, cantou vitória. “Mostrei que sou um homem liberto de complexos. Faço política com alegria…” Foi, de facto, uma campanha alegre - incluíu até um dia do candidato ao volante de um taxi. Triste foi o resultado.

Marcelo tinha o problema de ser desconhecido, o Tejo tinha o problema de ser um esgoto a céu aberto. Juntaram-se - o político e o rio - num dos episódios mais insólitos da história das campanhas eleitorais portuguesas. A menos de um mês das legislativas, revisitamos as nossas memórias políticas. Este é o 13º capítulo

Houve um tempo, há muitos, muitos anos, em que Marcelo Rebelo de Sousa não era conhecido em todas as casas do país, nem era visita da família aos domingos à noite, à hora do jantar. Este episódio passa-se nesse tempo. O protagonista é quem bem sabemos - enérgico, astuto, divertido, imprevisível -, mas quando muitos ainda não sabiam quem ele era.

Esse era o problema de Marcelo por esses dias, no verão de 1989. A falta de notoriedade era o maior obstáculo que o ex-diretor e fundador do Expresso, ex-ministro dos Assuntos Parlamentares, ex-presidente da distrital de Lisboa do PSD e eterno agitador do partido tinha pela frente no empreendimento em que então se tinha metido: a candidatura à presidência da Câmara Municipal de Lisboa. “Uma coisa maluca”, confessaria o próprio, anos mais tarde, mas que se lhe atravessou na vida sem o professor de Direito estar à espera: António Pinto Leite, então presidente da distrital de Lisboa, cúmplice de Marcelo na Nova Esperança (uma espécie de aldeia gaulesa liberal e cosmopolita dentro do PSD), precisava desesperadamente de um candidato que não tinha. Até que convenceu o amigo. Os problemas vieram depois: Cavaco não apreciou a ideia (mas isso resolveu-se), faltava dinheiro (arranjaram) e o candidato era um ilustre desconhecido, sobretudo em comparação com o principal adversário, nem mais nem menos do que Jorge Sampaio, que era, então, o líder do Partido Socialista.

“Bolas, Marcelo, saiu-nos um touro de 600 quilos para a praça!...”, desabafou Pinto Leite ao saber da candidatura de Sampaio, conforme relata o jornalista Vítor Matos na biografia do professor (“Marcelo Rebelo de Sousa”, ed. Esfera dos Livros, 2012). Era preciso dar a conhecer a aposta social-democrata, que tinha nome mais do que feito nas intrigas de políticos e jornalístas, mas poucos reconheciam na rua. Se a candidatura foi “uma coisa maluca”, a campanha ainda mais maluca foi. Até se atirou ao Tejo.

clara azevedo

Asa delta no Cristo Rei e ideias assim

A primeira ideia para aumentar a notoriedade de Marcelo junto do povo era de estalo: o candidato subia ao Cristo Rei e atirava-se para um voo de asa delta. Seria sucesso garantido, mas nada garantia que o candidato vivesse para desfrutar da notoriedade que assim conseguisse. Ainda houve piadas sobre Marcelo desafiar Sampaio para um jogo de ténis ou um combate de boxe, mas o staff acabou por assentar no plano B: um mergulho no Tejo.

Convém pôr as coisas em perspetiva: o Rio Tejo em 1989 era coisa pouco recomendável, escura e porca, onde flutuavam dejetos de toda a espécie. Um esgoto a céu aberto, com ameaças bem visíveis e outras, invisíveis mas fáceis de adivinhar. Apesar de saber a porcaria para onde se ia atirar de cabeça, Marcelo não desanimou - ainda pensou em tomar vacinas para se precaver de coisas mais graves do que o risco de fazer má figura, mas não dava tempo… Nem isso o demoveu.

O grande momento foi marcado para 31 de agosto. Marcelo embarcou num cacilheiro, rodeado de dezenas de jornalistas quase tão entusiasmados como o mediático mergulhador. Como bom comentador de todo o tipo de fenómenos, comentou por antecipação a sua própria performance: “Vou nadar à vontade porque tenho a certeza de que em terra tudo correrá bem. Isso dá-me outra leveza de ânimo e a melhor descontração para as braçadas que tenho de dar até à margem”, disse aos jornalistas antes de se transferir do cacilheiro para uma lancha da Marinha, o Bonança, pois não tinha autorização para mergulhar do barco da Transtejo.

Conseguir, de todo, uma autorização para mergulhar no rio já tinha sido uma façanha, pois o regulamento do Porto de Lisboa, datado de 1919, proibía terminantemente banhos no Tejo. Superadas as burocracias, que tinham consumido tempo e energia ao staff de campanha, Marcelo deu o seu show. “Nunca vou ao fundo”, garantiu numa conferência de imprensa no meio do rio em que falou dos projetos que tinha para a frente-Tejo, e de si próprio. “Como maratonista que sou, não é que boie sistematicamente, mas desenvencilho-me com a minha capacidade de natação e consigo ultrapassar os obstáculos”, garantiu.

Mesmo antes de saltar para a água, os grandes objetivos da ação estavam cumpridos: conseguir atenção mediática e passar uma impressão de juventude, descontração e genica. Dessa forma, Marcelo dava-se a conhecer aos lisboetas com uma imagem bem diferente da de Sampaio, mas também da do primeiro-ministro. “Para sisudo já nos basta o Cavaco”, dizia um dos seus apoiantes, citado nessa semana numa reportagem d’O Independente.

Akido e exercícios respiratórios

Paulo Portas, o impulsionador do jornal que mais dores de cabeça dava ao cavaquismo, não escondia o seu entusiasmo com a candidatura de Marcelo (tudo isto se passa, recorde-se, bem antes da vichisoyse). Segundo Portas, a hipótese do professor ganhar Lisboa abria espaço a uma alternativa forte a Cavaco dentro do PSD. O seu jornal, por outro lado, não escondia o divertimento com a aventura fluvial de Rebelo de Sousa. “Vivia-se um ambiente misto de euforia e de peregrinação”, contava o semanário. “A militante social-democrata Virgínia Estorninho não escondia a sua excitação: ‘Será que ele vai vestir um fato de banho modernaço?’. Quando, enfim, Marcelo saiu [do camarote onde mudara de roupa], ouviram-se alguns assobios. Vestia bermudas verdes e brancas, t-shirt branca e sapatilhas de borracha. Estorninho não conseguiu disfarçar o desapontamento: ‘Afinal é um fato do tempo da Maria Cachucha!”

O candidato fez os últimos exercícios de aquecimento (já tinha feito aikido antes do embarque) e splash!, atirou-se à água. Por azar, apesar do aturado estudo das marés, teve de lutar contra elas: mergulhou quando a maré devia estar a mudar, mas a corrente estava mais forte do que o esperado, o que obrigou Marcelo a um esforço suplementar para não ser puxado para o Bugio. Valeu-lhe estar em boa forma.

Quando, por fim, chegou a terra, ofegante, de calções descaídos e já sem sapatilhas, cantou vitória. “Mostrei que sou um homem liberto de complexos. Faço política com alegria…” Foi, de facto, uma campanha alegre - incluíu até um dia do candidato ao volante de um taxi. Triste foi o resultado.

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