Querida Alice

15-08-2015
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Hoje faço anos. Quase não me lembrava. Acordo de madrugada cheio de frio, esquecendo que estou no verão. Mas agora a velhice é fria, deixa-me gelo cravado dentro da epiderme. E como já não te deitas a meu lado para me aqueceres, os lençóis escorrem sal dos olhos. Então acordei, quando o sol parecia ainda pequenino entre as persianas e o frio se estendia na dimensão da casa. Acendi a luz do candeeiro e olhei o relógio. Cedo para fazer nada. Cedo para qualquer coisa, neste tardio desespero de quem tem todas as horas a desfazerem-se. Fiquei deitado a olhar o escuro. Sabes Alice, desde que partiste fico muitas vezes olhando o escuro. Nunca me apercebera de que a escuridão se podia ver. Até tem sombras de coisas antigas marcadas em movimentos. E depois lembrei-me que era dia de pagar ao António a ultima prestação do empréstimo que nos fez quando foste operada. E recordei que tinhas dito que seria no dia dos meus anos. Hoje. Às vezes esqueço-me da idade. Só me lembro da dor que me atrofia, deste andar lento, desta vontade de me deitar nestes lençóis e deixar-me ficar. Acho que ninguém se vai lembrar do meu aniversário. Também não me afeta, ou se afeta já finjo a indiferença que é o melhor que se faz quando a alma começa a suspirar. Os oitenta anos são pesados Alice. Sempre me disseste que se calhar não os viverias. E não. Deixaste-me aqui sozinho. A casa ganha pó e ontem descobri, quando coloquei os teus óculos, que havia duas teias de aranha enormes na esquina da porta da entrada. Vejo melhor com eles. Penso que já nem preciso de ir ao médico. Aquilo chateia-me estar ali sentado ao pé de outros velhos, mordendo os pés com os olhos cansados, pendurados no fim da vida. Também já estou surdo, vejo os lábios deles mexendo, respondo com a cabeça e desvio-me. Não me apetece falar com ninguém. Sabes que nunca fui de socializar. A solidão espeta-me isso a todo o instante. Agora estou velho para recuperar.

Alice hoje faço anos. É o primeiro ano sem ti. Claro que não vai haver bolo. Ainda não sei cozinhar. Como mal. Arrasto as mãos nos tachos, queimo-me, invento mistelas. Tenho saudades da tua comida. Dos cheiros que destapavas, do teu cheiro de mulher simples, lavada em alfazema. Talvez invente uma ida à casa do Rodrigues que anda doente. Talvez lhe diga que faço anos. Ou não. Depende da cor que os lábios dele tiverem. Vou agora pagar ao António. Levo os teus óculos Alice. Já limpei parte do pó e as teias enrolaram-se na vassoura. A casa está mais ou menos. Eu também estou mais ou menos. Não me dói muito as pernas. Só me dói a vida. Dói-me tanto Alice.

Do teu marido que te ama

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Hoje faço anos. Quase não me lembrava. Acordo de madrugada cheio de frio, esquecendo que estou no verão. Mas agora a velhice é fria, deixa-me gelo cravado dentro da epiderme. E como já não te deitas a meu lado para me aqueceres, os lençóis escorrem sal dos olhos. Então acordei, quando o sol parecia ainda pequenino entre as persianas e o frio se estendia na dimensão da casa. Acendi a luz do candeeiro e olhei o relógio. Cedo para fazer nada. Cedo para qualquer coisa, neste tardio desespero de quem tem todas as horas a desfazerem-se. Fiquei deitado a olhar o escuro. Sabes Alice, desde que partiste fico muitas vezes olhando o escuro. Nunca me apercebera de que a escuridão se podia ver. Até tem sombras de coisas antigas marcadas em movimentos. E depois lembrei-me que era dia de pagar ao António a ultima prestação do empréstimo que nos fez quando foste operada. E recordei que tinhas dito que seria no dia dos meus anos. Hoje. Às vezes esqueço-me da idade. Só me lembro da dor que me atrofia, deste andar lento, desta vontade de me deitar nestes lençóis e deixar-me ficar. Acho que ninguém se vai lembrar do meu aniversário. Também não me afeta, ou se afeta já finjo a indiferença que é o melhor que se faz quando a alma começa a suspirar. Os oitenta anos são pesados Alice. Sempre me disseste que se calhar não os viverias. E não. Deixaste-me aqui sozinho. A casa ganha pó e ontem descobri, quando coloquei os teus óculos, que havia duas teias de aranha enormes na esquina da porta da entrada. Vejo melhor com eles. Penso que já nem preciso de ir ao médico. Aquilo chateia-me estar ali sentado ao pé de outros velhos, mordendo os pés com os olhos cansados, pendurados no fim da vida. Também já estou surdo, vejo os lábios deles mexendo, respondo com a cabeça e desvio-me. Não me apetece falar com ninguém. Sabes que nunca fui de socializar. A solidão espeta-me isso a todo o instante. Agora estou velho para recuperar.

Alice hoje faço anos. É o primeiro ano sem ti. Claro que não vai haver bolo. Ainda não sei cozinhar. Como mal. Arrasto as mãos nos tachos, queimo-me, invento mistelas. Tenho saudades da tua comida. Dos cheiros que destapavas, do teu cheiro de mulher simples, lavada em alfazema. Talvez invente uma ida à casa do Rodrigues que anda doente. Talvez lhe diga que faço anos. Ou não. Depende da cor que os lábios dele tiverem. Vou agora pagar ao António. Levo os teus óculos Alice. Já limpei parte do pó e as teias enrolaram-se na vassoura. A casa está mais ou menos. Eu também estou mais ou menos. Não me dói muito as pernas. Só me dói a vida. Dói-me tanto Alice.

Do teu marido que te ama

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