Tatuagem

09-04-2015
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Perdeu o pai no ano passado,

num inexplicável acidente de trabalho.

A morte jamais dá explicações.

Não foi ao funeral porque entretanto

as suas pernas ficaram pesadas de mágoa

e as suas lágrimas tiveram o assombroso

impulso de sulfatarem-lhe o sangue.

Hoje foi o dia mais triste de toda a minha vida,

confessou ao melhor amigo.

Durante algumas semanas, soterrado,

esteve sob a severa jurisdição do desalento:

foi-lhe interdito dormir por várias vezes,

manhãs teve que o coagiram a ficar na cama.

Trocou a net pelos olhos fincados no tecto,

as disciplinas da escola por um curso intensivo de silêncio,

a equipa de futebol pelo pugilismo caseiro:

socos na secretária, no luto, nos livros, nos dias;

socos na amargura, na cama, nas paredes.

Estragosos os socos, mãos a sangrar,

quando dava com a mãe em choramingos velados.

Numa mnemónica febril, delirante, sinistra,

punha-se por vezes a soletrar para o desalento o nome do pai.

Começou a beber às escondidas da mãe,

a beber tristuras com alto teor de fundura, poção

que o deixava cambaleante de inclinações tumulares,

num estado de embriaguez macabra.

Perdeu o telemóvel, a chave de casa, deixou morrer o hamster.

Raro o jantar em que não

dizia à mãe que a vida é injusta, a morte absurda,

Deus um crápula, que ela não merecia aquilo.

Este foi o mês mais triste de toda a minha vida,

confessou ao melhor amigo.

Pintou o quarto com uma escuridão muito escura, pessimista.

Emagreceu. As notas baixaram. Chumbou o ano. Adoeceu.

Um único ordenado não chegava para pagar

um apartamento com dois quartos.

Mudaram de casa, de rua, de precipícios.

O martírio seguiu-lhes o encalço.

O destino anda sempre descalço. – Mãe, hoje fiz uma tatuagem,

fiz uma tatuagem no peito da minha dor.

Mas vê, está ainda a sangrar.

___ dinismoura

Perdeu o pai no ano passado,

num inexplicável acidente de trabalho.

A morte jamais dá explicações.

Não foi ao funeral porque entretanto

as suas pernas ficaram pesadas de mágoa

e as suas lágrimas tiveram o assombroso

impulso de sulfatarem-lhe o sangue.

Hoje foi o dia mais triste de toda a minha vida,

confessou ao melhor amigo.

Durante algumas semanas, soterrado,

esteve sob a severa jurisdição do desalento:

foi-lhe interdito dormir por várias vezes,

manhãs teve que o coagiram a ficar na cama.

Trocou a net pelos olhos fincados no tecto,

as disciplinas da escola por um curso intensivo de silêncio,

a equipa de futebol pelo pugilismo caseiro:

socos na secretária, no luto, nos livros, nos dias;

socos na amargura, na cama, nas paredes.

Estragosos os socos, mãos a sangrar,

quando dava com a mãe em choramingos velados.

Numa mnemónica febril, delirante, sinistra,

punha-se por vezes a soletrar para o desalento o nome do pai.

Começou a beber às escondidas da mãe,

a beber tristuras com alto teor de fundura, poção

que o deixava cambaleante de inclinações tumulares,

num estado de embriaguez macabra.

Perdeu o telemóvel, a chave de casa, deixou morrer o hamster.

Raro o jantar em que não

dizia à mãe que a vida é injusta, a morte absurda,

Deus um crápula, que ela não merecia aquilo.

Este foi o mês mais triste de toda a minha vida,

confessou ao melhor amigo.

Pintou o quarto com uma escuridão muito escura, pessimista.

Emagreceu. As notas baixaram. Chumbou o ano. Adoeceu.

Um único ordenado não chegava para pagar

um apartamento com dois quartos.

Mudaram de casa, de rua, de precipícios.

O martírio seguiu-lhes o encalço.

O destino anda sempre descalço. – Mãe, hoje fiz uma tatuagem,

fiz uma tatuagem no peito da minha dor.

Mas vê, está ainda a sangrar.

___ dinismoura

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