Quando o açúcar se mistura com o toucinho: Pudim Abade de Priscos

08-11-2013
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A figura do Abade de Priscos está a ser recuperada - até a forma que ele usou para o célebre pudim é hoje vista com emoção. O padre que era chamado para cozinhar para a família real quando esta ia a Braga, deixou um aviso: "O pudim é facílimo de fazer, difícil de acertar".

O abade tinha mão para a culinária. E tinha outra coisa essencial: tinha língua, ou seja, paladar apurado para provar os cozinhados. Não havia nenhum segredo - nem sequer na maleta que, diz-se, transportava consigo sempre que ia cozinhar. Seriam utensílios, ou talvez temperos, ervas da sua horta de Priscos. O resto era "a mão". E é isso que continua a ser determinante hoje para fazer um bom Pudim Abade de Priscos, um dos 21 finalistas do concurso das maravilhas da gastronomia portuguesa.

José Dias junta o indicador e o polegar para exemplificar o que está a dizer: "Uma pitada! O que é que entendemos por uma pitada? Depende muito da mão de cada um." Estamos sentados à mesa no seu Restaurante Bem-Me-Quer, em Braga, enquanto esperamos por Agostinho Peixoto, que acaba de entrar pela porta colocando ao pescoço o escapulário da Confraria Gastronómica do Abade.

É o princípio de uma intensa tarde gastronómica inspirada por essa figura do Abade de Priscos, que descobrimos agora numa fotografia. Não é exactamente o estereótipo do abade gordinho e careca. É uma figura elegante, de cabelos brancos, rosto sereno. Manoel Joaquim Rebelo nasceu em 1834 e morreu em 1889, e conquistou fama de excelente cozinheiro, quando foi abade na localidade de Priscos, junto a Braga. Era tão conhecido que o chamavam sempre que era preciso cozinhar por ocasião de visitas da família real, ministros ou bispos.

E desses tempos contam-se muitas histórias, como esta que o crítico gastronómico e autor José Quitério registou: o abade ter-se-á dedicado a triturar um feixe de palha para obter um polme muito fino que usou depois em recheios e molhos numa refeição confeccionada para D. Luís. "No final, D. Luís, agradado, mandou chamar o padre Machado Rebelo, felicitou-o e quis saber de que eram feitos determinados pratos de sabor delicioso.

- Era de palha, Real Senhor! - Palha? Então dá palha ao rei!? O abade baixou a cabeça e com um sorriso malicioso esclareceu: - Perdoai, Real Senhor! Mas... Todos comem palha: a questão é saber prepará-la e... pôr-lha diante."

Ousadia não lhe faltava, portanto. Mas vinha-lhe certamente da confiança de se saber um cozinheiro admirado por todos. Para além do pudim, era famoso por pratos como o consomé de perdiz à Abade de Priscos, pela cabidela, pelos bifes, por vários pratos de bacalhau, pelo doce de abóbora, os bolinhos de côco ou o doce de marmelo. Nesses tempos de enorme influência francesa na cozinha, os menus dos banquetes preparados pelo abade para a família real eram, naturalmente, escritos em francês - e lá estão os filets de boeuf à l'Abbé de Priscos para entrada ou o consommé de perdrix à l'Abbé de Priscos.

"Anti-segredos"

Mas foi o pudim que aqui nos trouxe, e é melhor começarmos a falar dele. Ah, não, parece que ainda não. É que José Dias traz-nos agora, só para abrir o apetite, um prato de tripas com mão de vaca, acompanhado por um espumante Casa Senhorial do Reguengo. A seguir virá um bacalhau à Bem-Me-Quer, com batata e cebola, as lascas do bacalhau a deslizarem, separando-se ao toque do garfo, desta vez com um vinho verde Quinta de Azevedo.

Tudo, claro, para nos preparar para o pudim. Agostinho Peixoto está precisamente a dizer que a Confraria do Abade é "anti-segredos" e que o pudim não tem segredos. Tanto é assim que todos os restaurantes e pastelarias de Braga, e muitos particulares, sabem fazer o doce, e concorrem alegremente no concurso anual do melhor Pudim Abade de Priscos. A parte difícil, pensamos nós, cabe ao júri. Como se diferencia entre 30 pudins destes?

Em primeiro lugar, avalia-se a cor, "que deve ser um alaranjado-acastanhado" ou um "castanho que mescle com o laranja", sendo fundamental que a parte de cima não esteja queimada. Depois, a textura, que "tem que ser limpa, uniforme, dentro e fora", ou seja, corta-se uma fatia do pudim, e este não pode aparecer esburacado. Não podemos também esquecer o cheiro. "Não pode ter cheiro de pudim flan", avisa.

E, por fim, o sabor: deve ter "um travo aveludado" e "tem que se desfazer na boca". Não devemos ter de mastigar um pudim como este. Peixoto procura as palavras certas. "Deve desaparecer na boca deixando o travo do ovo e um ligeiro travo da gordura do toucinho. O vinho do Porto tem de lá estar, mas não pode suplantar o resto." No fundo, já lá dizia o abade, "o pudim é facílimo de fazer, difícil de acertar".

Para acompanhar, José Dias traz-nos duas alternativas, um vinho do Porto, e um Moscatel Roxo de Setúbal. Acredita, contudo, que o Abade de Priscos talvez acompanhasse o seu pudim com um vinho de missa, muito doce.

Mais recomendações? "Quanto ao toucinho, o abade utilizaria o [porco] bísaro", admite Agostinho. "Mas não é a gordura do porco, é o toucinho, tem que ter um pouco de entremeada, e tem que estar muito bem salgado." Há momentos da receita que são cruciais, acrescenta José Silva. "O primeiro é o da execução da calda, que tem que ser lenta, até atingir o ponto de fio." O bater das gemas também é importante - "de preferência com colher e sempre para o mesmo lado". A cozedura em banho-maria é a altura em que podemos estragar tudo: "Se se abre a tampa de forma a deixar entrar água ou humidade da condensação, é o pior que pode acontecer."

Aliás, sobre formas, haveria todo um tratado a escrever. Agostinho Peixoto abre o computador para mostrar a fotografia da forma original, em latão, usada pelo abade. Parece um pequeno castelo, com ameias que acabam em bicos. Esta forma, que pertence hoje a uma família da região, foi mostrada num encontro dos confrades e, garante Agostinho Peixoto, provocou grande emoção. Hoje as formas já não são exactamente assim, mas mantêm uma base à volta dos bicos para não assentarem no fundo da panela durante o banho-maria.

Um dos objectivos da confraria - cujo traje inclui uma capa negra e um chapéu de aba larga típico dos abades - é "a democratização do pudim". A ideia é difundi-lo o mais possível, e nas escolas de hotelaria e turismo os chefes já o ensinam, o que "assegura a continuação da existência do pudim nas próximas décadas". Estão também a trabalhar com os jovens - em Setembro será criada a Confraria Gastronómica dos Abadinhos, para quem tem entre oito e 14 anos, "a idade crítica do palato, em que se ganha a criança ou se a perde irremediavelmente". A idade em que, como dizia o abade ao rei, se aprende a distinguir a boa da má palha, quando ela nos aparece à frente. E assim os confrades esperam poder passar o testemunho - neste caso, a colher - às novas gerações.

Receita

Misturam-se 500 g de açúcar em meio litro de água, e junta-se casca raspada de um limão qb, um pau de canela e 50 gr de toucinho fresco (uma fatia de toucinho não excessivamente gorduroso). Leva-se ao lume e, quando estiver em ponto de espadana, passa-se a calda por um passador de rede, vazando para uma tijela onde já se encontram 15 gemas de ovo e o vinho do Porto (um cálice), ligeiramente batidos. Com o açúcar em caramelo barra-se a forma onde se vai levar a cozer, em banho-maria, em forno muito quente. Tem-se o cuidado de só se desenformar quando estiver morno, para não acontecer que o pudim se desmanche.

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A figura do Abade de Priscos está a ser recuperada - até a forma que ele usou para o célebre pudim é hoje vista com emoção. O padre que era chamado para cozinhar para a família real quando esta ia a Braga, deixou um aviso: "O pudim é facílimo de fazer, difícil de acertar".

O abade tinha mão para a culinária. E tinha outra coisa essencial: tinha língua, ou seja, paladar apurado para provar os cozinhados. Não havia nenhum segredo - nem sequer na maleta que, diz-se, transportava consigo sempre que ia cozinhar. Seriam utensílios, ou talvez temperos, ervas da sua horta de Priscos. O resto era "a mão". E é isso que continua a ser determinante hoje para fazer um bom Pudim Abade de Priscos, um dos 21 finalistas do concurso das maravilhas da gastronomia portuguesa.

José Dias junta o indicador e o polegar para exemplificar o que está a dizer: "Uma pitada! O que é que entendemos por uma pitada? Depende muito da mão de cada um." Estamos sentados à mesa no seu Restaurante Bem-Me-Quer, em Braga, enquanto esperamos por Agostinho Peixoto, que acaba de entrar pela porta colocando ao pescoço o escapulário da Confraria Gastronómica do Abade.

É o princípio de uma intensa tarde gastronómica inspirada por essa figura do Abade de Priscos, que descobrimos agora numa fotografia. Não é exactamente o estereótipo do abade gordinho e careca. É uma figura elegante, de cabelos brancos, rosto sereno. Manoel Joaquim Rebelo nasceu em 1834 e morreu em 1889, e conquistou fama de excelente cozinheiro, quando foi abade na localidade de Priscos, junto a Braga. Era tão conhecido que o chamavam sempre que era preciso cozinhar por ocasião de visitas da família real, ministros ou bispos.

E desses tempos contam-se muitas histórias, como esta que o crítico gastronómico e autor José Quitério registou: o abade ter-se-á dedicado a triturar um feixe de palha para obter um polme muito fino que usou depois em recheios e molhos numa refeição confeccionada para D. Luís. "No final, D. Luís, agradado, mandou chamar o padre Machado Rebelo, felicitou-o e quis saber de que eram feitos determinados pratos de sabor delicioso.

- Era de palha, Real Senhor! - Palha? Então dá palha ao rei!? O abade baixou a cabeça e com um sorriso malicioso esclareceu: - Perdoai, Real Senhor! Mas... Todos comem palha: a questão é saber prepará-la e... pôr-lha diante."

Ousadia não lhe faltava, portanto. Mas vinha-lhe certamente da confiança de se saber um cozinheiro admirado por todos. Para além do pudim, era famoso por pratos como o consomé de perdiz à Abade de Priscos, pela cabidela, pelos bifes, por vários pratos de bacalhau, pelo doce de abóbora, os bolinhos de côco ou o doce de marmelo. Nesses tempos de enorme influência francesa na cozinha, os menus dos banquetes preparados pelo abade para a família real eram, naturalmente, escritos em francês - e lá estão os filets de boeuf à l'Abbé de Priscos para entrada ou o consommé de perdrix à l'Abbé de Priscos.

"Anti-segredos"

Mas foi o pudim que aqui nos trouxe, e é melhor começarmos a falar dele. Ah, não, parece que ainda não. É que José Dias traz-nos agora, só para abrir o apetite, um prato de tripas com mão de vaca, acompanhado por um espumante Casa Senhorial do Reguengo. A seguir virá um bacalhau à Bem-Me-Quer, com batata e cebola, as lascas do bacalhau a deslizarem, separando-se ao toque do garfo, desta vez com um vinho verde Quinta de Azevedo.

Tudo, claro, para nos preparar para o pudim. Agostinho Peixoto está precisamente a dizer que a Confraria do Abade é "anti-segredos" e que o pudim não tem segredos. Tanto é assim que todos os restaurantes e pastelarias de Braga, e muitos particulares, sabem fazer o doce, e concorrem alegremente no concurso anual do melhor Pudim Abade de Priscos. A parte difícil, pensamos nós, cabe ao júri. Como se diferencia entre 30 pudins destes?

Em primeiro lugar, avalia-se a cor, "que deve ser um alaranjado-acastanhado" ou um "castanho que mescle com o laranja", sendo fundamental que a parte de cima não esteja queimada. Depois, a textura, que "tem que ser limpa, uniforme, dentro e fora", ou seja, corta-se uma fatia do pudim, e este não pode aparecer esburacado. Não podemos também esquecer o cheiro. "Não pode ter cheiro de pudim flan", avisa.

E, por fim, o sabor: deve ter "um travo aveludado" e "tem que se desfazer na boca". Não devemos ter de mastigar um pudim como este. Peixoto procura as palavras certas. "Deve desaparecer na boca deixando o travo do ovo e um ligeiro travo da gordura do toucinho. O vinho do Porto tem de lá estar, mas não pode suplantar o resto." No fundo, já lá dizia o abade, "o pudim é facílimo de fazer, difícil de acertar".

Para acompanhar, José Dias traz-nos duas alternativas, um vinho do Porto, e um Moscatel Roxo de Setúbal. Acredita, contudo, que o Abade de Priscos talvez acompanhasse o seu pudim com um vinho de missa, muito doce.

Mais recomendações? "Quanto ao toucinho, o abade utilizaria o [porco] bísaro", admite Agostinho. "Mas não é a gordura do porco, é o toucinho, tem que ter um pouco de entremeada, e tem que estar muito bem salgado." Há momentos da receita que são cruciais, acrescenta José Silva. "O primeiro é o da execução da calda, que tem que ser lenta, até atingir o ponto de fio." O bater das gemas também é importante - "de preferência com colher e sempre para o mesmo lado". A cozedura em banho-maria é a altura em que podemos estragar tudo: "Se se abre a tampa de forma a deixar entrar água ou humidade da condensação, é o pior que pode acontecer."

Aliás, sobre formas, haveria todo um tratado a escrever. Agostinho Peixoto abre o computador para mostrar a fotografia da forma original, em latão, usada pelo abade. Parece um pequeno castelo, com ameias que acabam em bicos. Esta forma, que pertence hoje a uma família da região, foi mostrada num encontro dos confrades e, garante Agostinho Peixoto, provocou grande emoção. Hoje as formas já não são exactamente assim, mas mantêm uma base à volta dos bicos para não assentarem no fundo da panela durante o banho-maria.

Um dos objectivos da confraria - cujo traje inclui uma capa negra e um chapéu de aba larga típico dos abades - é "a democratização do pudim". A ideia é difundi-lo o mais possível, e nas escolas de hotelaria e turismo os chefes já o ensinam, o que "assegura a continuação da existência do pudim nas próximas décadas". Estão também a trabalhar com os jovens - em Setembro será criada a Confraria Gastronómica dos Abadinhos, para quem tem entre oito e 14 anos, "a idade crítica do palato, em que se ganha a criança ou se a perde irremediavelmente". A idade em que, como dizia o abade ao rei, se aprende a distinguir a boa da má palha, quando ela nos aparece à frente. E assim os confrades esperam poder passar o testemunho - neste caso, a colher - às novas gerações.

Receita

Misturam-se 500 g de açúcar em meio litro de água, e junta-se casca raspada de um limão qb, um pau de canela e 50 gr de toucinho fresco (uma fatia de toucinho não excessivamente gorduroso). Leva-se ao lume e, quando estiver em ponto de espadana, passa-se a calda por um passador de rede, vazando para uma tijela onde já se encontram 15 gemas de ovo e o vinho do Porto (um cálice), ligeiramente batidos. Com o açúcar em caramelo barra-se a forma onde se vai levar a cozer, em banho-maria, em forno muito quente. Tem-se o cuidado de só se desenformar quando estiver morno, para não acontecer que o pudim se desmanche.

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