O Verão dos gloriosos malucos das máquinas voadoras

28-07-2015
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Título: 1927 – Aquele Verão

Autor: Bill Bryson

Editora: Bertrand

Páginas: 560

Preço: 19,90€

Em 1927, 25.000 dólares era uma fortuna. Mas o prémio oferecido pelo hoteleiro Raymond Orteig ao primeiro aviador capaz de voar sem escala entre Nova Iorque e Paris (ou entre Paris e Nova Iorque) talvez não fosse indispensável para arregimentar gente e recursos para uma viagem transatlântica – afinal de contas, as proezas aeronáuticas andavam na ordem do dia e os pioneiros da aeronáutica gozavam de uma aura heróica. Por outro lado, os muitos pilotos que o fim da I Guerra Mundial lançara no desemprego arriscavam regularmente a vida em acrobacias gratuitas ou trabalhos arriscados em troca de quantias irrisórias e da descarga de adrenalina.

Toda a gente sabe que o primeiro aviador a fazer Nova Iorque-Paris sem escala foi Charles Lindbergh, mas o que é hoje menos lembrado é que este rapaz natural do Minnesota, alto, bem parecido, despretensioso e completamente desconhecido (era piloto do Serviço Postal americano), parecia ser o concorrente com menos hipóteses entre os muitos candidatos ao prémio Orteig.

Acontece que os seus rivais, gente famosa e com máquinas mais potentes e financiamentos mais generosos, ficaram muito longe de perfazer os 5.800 Km – na verdade, alguns só conseguiram chegar ao fim da pista.

Em Setembro de 1926, René Fonck, o maior ás da aviação Aliada na I Guerra Mundial (75 inimigos derrubados), subira com outros três tripulantes, para um Sikorsky S-35 concebido expressamente para aquele desafio, mas que Fonck impedira que fosse devidamente testado e fizera questão de carregar não só com combustível e equipamento de emergência mas também com “mudas de roupa, presentes para amigos e apoiantes, sem esquecer grandes quantidades de comida, vinhos e champanhe”, onde se incluía um jantar com “tartaruga, perú e pato, para ser degustado à chegada a Paris”. O avião sobrecarregado percorreu a pista sem ter conseguido erguer as rodas do chão, tombou num aterro e explodiu numa bola de fogo alimentada por 11.000 litros de combustível. Miraculosamente, Fonck escapou com vida.

Richard E. Byrd, com um trimotor Fokker baptizado como America, era quem recolhia o favoritismo, mas as desavenças pueris na equipa e as deficiências de design do aparelho levaram a que este tivesse um acidente grave no primeiro voo de teste, a 16 de Abril de 1927 – os tripulantes sobreviveram, mas o avião ficou a necessitar de demoradas reparações.

Noel Davis e Stanton H. Wooster, num Keystone Pathfinder, foram mais sensatos que Fonck: foram aumentando gradualmente a carga de combustível, mas quando, a 26 de Abril, fizeram o último teste, com a carga completa, o avião não foi capaz de elevar-se e despenhou-se no fim da pista, com consequências fatais.

Embora os ventos dominantes desaconselhassem fortemente o voo no sentido Paris-Nova Iorque, foi essa a opção de Charles Nungesser (outro veterano da I Guerra, que abatera 44 inimigos e sofrera tantos acidentes que não tinha um osso inteiro no corpo) e François Coli, aos comandos de um Levasseur. O projecto pautou-se pela improvisação e pela precipitação – a 8 de Maio, à última hora, aflitos perante um avião claramente sobrecarregado, descartaram rações, coletes salva-vidas e o bote insuflável. Mesmo com este aligeiramento, o avião precisou de correr três quilómetros antes de conseguir descolar. Foi visto pela última vez ao cruzar a costa normanda.

Acabou por triunfar o mais sensato e precavido dos candidatos, Lindbergh, que, sozinho no Spirit of St. Louis, cobriu os 5.800 Km em 33 horas e meia e aterrou, a 21 de Maio de 1927, no aeroporto de Le Bourget, em Paris, perante uma multidão em êxtase.

Semanas depois, os dois principais rivais de Lindbergh – Byrd, no America, e Chamberlin, no Miss Columbia – acabaram por também conseguir chegar à Europa, embora tal tenha envolvido quezílias mesquinhas, peripécias rocambolescas e puras tolices, pouco consentâneas com a aura gloriosa e cavalheiresca associada a este tipo de feitos.

O que mais impressiona nos relatos destes voos pioneiros é o aparente desprezo pela vida patente na leviandade e amadorismo com que eram preparados. Mas talvez este pouco valor atribuído à vida não decorresse apenas de um espírito temerário próprio dos entusiastas da aviação – é que, naqueles tempos, mesmo entre os que levavam vidas pacatas e protegidas, nas classes privilegiadas dos países desenvolvidos, a existência estava sujeita a perigos e imprevistos que hoje nos parecerão impensáveis e aterradores.

Um exemplo dessa precariedade está patente num evento ocorrido três anos antes do Verão de 1927: os filhos de Calvin Coolidge, presidente dos EUA, John, de 18 anos, e Calvin Jr., de 16, foram jogar ténis no court da Casa Branca. Calvin Jr. calçou sapatos de ténis sem peúgas e ficou com uma bolha num dedo do pé, que infectou, causando uma septicemia – apesar dos melhores cuidados que a medicina de então podia dispensar, três dias depois estava morto. Era assim o mundo antes da invenção dos antibióticos.

É a esse mundo que Bill Bryson, que tem copiosa bibliografia na área da divulgação histórica e científica, cobrindo as mais diversas épocas e tempos, nos transporta, com irrepreensível eficácia e refinada ironia, com Aquele Verão. A focagem em eventos ocorridos nos EUA no Verão de 1927 poderá parecer uma escolha bizarra, mas é plenamente conseguida: as peripécias dos pioneiros da aviação enlaçam-se harmoniosamente com os feitos da equipa de baseball dos New York Yankees e do seu batedor-maravilha, Babe Ruth, as Grandes Cheias do Mississipi, o combate de boxe entre Jack Dempsey e Gene Tunney, a estreia de The Jazz Singer (que, não tendo sido exactamente o primeiro filme falado mudou a história do cinema), o apogeu da breve carreira de Al Capone, ou a execução dos anarquistas Sacco e Vanzetti (que incluiu também a do homicida açoriano Celestino Medeiros, que chegou a declarar-se culpado do crime pelo qual Sacco e Vanzetti eram acusados).

Em 500 páginas sucedem-se eventos trágicos e cómicos, figuras que ficaram na história e gente anónima, actos de extraordinária generosidade e indescritível crueldade, empresários de visão e simples tolos, decisões que mudaram o curso da história e gesticulações vãs.

Ao focar-se na política americana de então, Aquele Verão contribui para desmontar uma das ideias feitas mais repetidos dos nossos tempos: o de que os estadistas de hoje são pigmeus por comparação com os grandes vultos do passado. É verdade que muitos líderes políticos de hoje são figuras medíocres, mas quando os subscritores e difusores desta tese nomeiam os “grandes vultos do passado” limitam-se a repetir sempre os mesmos três ou quatro nomes – Churchill, De Gaulle, Roosevelt, Delors – e esquecem que estes coexistiram com milhares de nulidades.

Em 1927, o presidente dos EUA era Calvin Coolidge (1923-29), um homem inteligente e honesto mas de uma reserva e timidez patológicas, cuja presidência se caracterizou por uma “inactividade doentia” e um obstinado alheamento em relação a assuntos de Estado – foi com indiferença que assistiu ao desmesurado inchaço da bolha especulativa, cujo estoiro iria mergulhar o país na Grande Depressão.

Mas Coolidge, entretido a pescar trutas enquanto o mundo se encaminhava para o desastre, até fazia boa figura ao lado do seu antecessor, Warren G. Harding (1921-23), de quem Bryson diz que “a única qualidade evidente que [lhe] permitia aspirar a um alto cargo governativo era o seu porte elegante […] Sob quase todos os outros pontos de vista – inteligência, carácter, espírito empreendedor – estava abaixo de medíocre”. Harding tinha sido uma desastrosa escolha de compromisso, entre um leque de candidatos do Partido Republicano, já de si “de segunda categoria”, e Coolidge ficara como vice-presidente, no que terá sido um dos tickets mais indigentes da história das eleições presidenciais americanas.

A administração Harding foi um festim de desleixo, incompetência, gestão danosa e corrupção e quando tudo isto ameaçava desabar sobre o presidente, este, com grande sentido de oportunidade, finou-se com uma hemorragia cerebral (ou um ataque cardíaco) e o sorumbático e inerte Coolidge tomou-lhe o lugar (“nunca vi ninguém dormir tanto como ele”, diria o mordomo da Casa Branca).

Suceder-lhe-ia, em 1929, Herbert Hoover, que viu as bolsas ruírem poucos meses depois de tomar posse e foi impotente para travar a Grande Depressão, tendo ficado com a fama de ter sido um dos piores presidentes dos EUA (embora um dos assessores de Franklin Roosevelt tenha reconhecido que “praticamente todo o New Deal foi extrapolado dos programas que Hoover desencadeou”). O lamento sobre a Idade do Ouro dos Homens de Estado não contabiliza, porém, as nulidades e os desafortunados e faz de conta que o passado se fez exclusivamente de Washingtons, Jeffersons e Lincolns.

Foram os rostos de Washington, Jefferson e Lincoln, que começaram, no Verão de 1927, a ser esculpidos em dimensões ciclópicas no Monte Rushmore (juntamente com o de Theodore Roosevelt, mais por ser amigo do mentor do projecto do que por mérito). Se o ambicioso projecto do monumento do Monte Rushmore parecia ter poucas hipóteses de ser levado a bom termo, a verdade é que se tornou num dos símbolos da nação americana.

O mesmo não pode dizer-se de outro projecto megalómano encetado nesse mesmo Verão, com a concessão, pelo Estado de Pará, de um terreno de 10.000 km² à Ford Motor Company: Henry Ford, cuja excentricidade e obstinação começavam a levar a melhor sobre o seu génio empresarial, decidira criar uma cidade industrial autónoma no meio da selva amazónica. A Fordlândia, concebida segundo regras rígidas, detalhadas e completamente desajustadas da realidade, deveria fornecer borracha para todas as fábricas Ford espalhadas pelo mundo, mas saldou-se num rotundo fiasco.

Talvez não por acaso, o Verão de 1927 foi também a altura escolhida pelo cada vez mais caprichoso Henry Ford para cessar, intempestivamente, a produção do popular Model T e deixar as fábricas paradas durante meses, enquanto se desenvolvia o seu sucessor, o Model A.

Tudo isto (e muito mais) está em Aquele Verão e o mais surpreendente é que o livro não se lê como um anuário ou uma colecção de factos desgarrados mas como uma narrativa arrebatadora feita de múltiplas linhas que se cruzam e afastam e revoluteiam umas em torno das outras. Poderá perguntar-se se o que se passou nos EUA no Verão de 1927 foi assim tão excepcional, se foi um ponto de viragem na história, se foi mesmo determinante para conduzir o rumo da história até ao nosso presente. Haverá certamente outros anos noutros países que foram igualmente decisivos, mas não é isso que importa, é o génio de Bryson para manter a narrativa em fluxo ininterrupto e para nos chamar a atenção para eventos e figuras que desconhecíamos ou tínhamos esquecido e para nos fazer ver as ligações entre eventos e figuras aparentemente sem relação entre si e sem relação com o mundo dos nossos dias.

Louis Menand, na The New Yorker de 30 de Março de 2015, numa crítica a outro livro centrado num (hipotético) ano-charneira – 1995: The Year the Future Began, de W. Joseph Campbell – escreve: “Há muitas formas de aglomerar eventos passados, de somar parcelas de tempo escoado e conferir-lhes um significado colectivo. […] Mas as histórias que proporcionam leitura mais prazenteira são os livros […] que tentam fazer o curso da história depender de um único fenómeno ou de um único ano. […] Nem todos os pontos serão pontos de viragem. Mas não é essa a argumentação destes livros. Eles procuram conferir a […] a eventos ocorridos numa certa data a capacidade de explicar o que se passou antes e depois desse momento. Até podemos duvidar da premissa, mas o efeito real e útil dos títulos melodramáticos é chamar a nossa atenção para algo que, de outro modo, teríamos ignorado.”

A eufórica recepção a Lindbergh em Paris e Nova Iorque foi seguida por uma intensíssima digressão aérea pelos EUA que se prolongou entre Julho e Outubro de 1927 e em que o aviador, sempre aos comandos do Spirit of St Louis, cobriu 22.350 milhas e 82 cidades, onde foi aclamado por um total de 30 milhões de pessoas – um quarto da população dos EUA. O voo transatlântico e a digressão americana de Lindbergh mudaram, indubitavelmente, a forma como a nação americana encarava as viagens aéreas e o potencial da aviação.

Mas, enquanto Lindbergh tomava banhos de multidão, a 7 de Setembro, num discreto laboratório de São Francisco, o hoje olvidado Philo T. Farnsworth, então com 21 anos, punha em prática uma ideia visionária que o assaltara quando tinha 15 anos e empurrava um arado atrás do cavalo pela quinta do pai: o seu “dissecador de imagem” transmitiu, de uma divisão para outra, uma imagem que consistia numa simples linha. Pode parecer irrisório, mas foi assim que nasceu a televisão.

Título: 1927 – Aquele Verão

Autor: Bill Bryson

Editora: Bertrand

Páginas: 560

Preço: 19,90€

Em 1927, 25.000 dólares era uma fortuna. Mas o prémio oferecido pelo hoteleiro Raymond Orteig ao primeiro aviador capaz de voar sem escala entre Nova Iorque e Paris (ou entre Paris e Nova Iorque) talvez não fosse indispensável para arregimentar gente e recursos para uma viagem transatlântica – afinal de contas, as proezas aeronáuticas andavam na ordem do dia e os pioneiros da aeronáutica gozavam de uma aura heróica. Por outro lado, os muitos pilotos que o fim da I Guerra Mundial lançara no desemprego arriscavam regularmente a vida em acrobacias gratuitas ou trabalhos arriscados em troca de quantias irrisórias e da descarga de adrenalina.

Toda a gente sabe que o primeiro aviador a fazer Nova Iorque-Paris sem escala foi Charles Lindbergh, mas o que é hoje menos lembrado é que este rapaz natural do Minnesota, alto, bem parecido, despretensioso e completamente desconhecido (era piloto do Serviço Postal americano), parecia ser o concorrente com menos hipóteses entre os muitos candidatos ao prémio Orteig.

Acontece que os seus rivais, gente famosa e com máquinas mais potentes e financiamentos mais generosos, ficaram muito longe de perfazer os 5.800 Km – na verdade, alguns só conseguiram chegar ao fim da pista.

Em Setembro de 1926, René Fonck, o maior ás da aviação Aliada na I Guerra Mundial (75 inimigos derrubados), subira com outros três tripulantes, para um Sikorsky S-35 concebido expressamente para aquele desafio, mas que Fonck impedira que fosse devidamente testado e fizera questão de carregar não só com combustível e equipamento de emergência mas também com “mudas de roupa, presentes para amigos e apoiantes, sem esquecer grandes quantidades de comida, vinhos e champanhe”, onde se incluía um jantar com “tartaruga, perú e pato, para ser degustado à chegada a Paris”. O avião sobrecarregado percorreu a pista sem ter conseguido erguer as rodas do chão, tombou num aterro e explodiu numa bola de fogo alimentada por 11.000 litros de combustível. Miraculosamente, Fonck escapou com vida.

Richard E. Byrd, com um trimotor Fokker baptizado como America, era quem recolhia o favoritismo, mas as desavenças pueris na equipa e as deficiências de design do aparelho levaram a que este tivesse um acidente grave no primeiro voo de teste, a 16 de Abril de 1927 – os tripulantes sobreviveram, mas o avião ficou a necessitar de demoradas reparações.

Noel Davis e Stanton H. Wooster, num Keystone Pathfinder, foram mais sensatos que Fonck: foram aumentando gradualmente a carga de combustível, mas quando, a 26 de Abril, fizeram o último teste, com a carga completa, o avião não foi capaz de elevar-se e despenhou-se no fim da pista, com consequências fatais.

Embora os ventos dominantes desaconselhassem fortemente o voo no sentido Paris-Nova Iorque, foi essa a opção de Charles Nungesser (outro veterano da I Guerra, que abatera 44 inimigos e sofrera tantos acidentes que não tinha um osso inteiro no corpo) e François Coli, aos comandos de um Levasseur. O projecto pautou-se pela improvisação e pela precipitação – a 8 de Maio, à última hora, aflitos perante um avião claramente sobrecarregado, descartaram rações, coletes salva-vidas e o bote insuflável. Mesmo com este aligeiramento, o avião precisou de correr três quilómetros antes de conseguir descolar. Foi visto pela última vez ao cruzar a costa normanda.

Acabou por triunfar o mais sensato e precavido dos candidatos, Lindbergh, que, sozinho no Spirit of St. Louis, cobriu os 5.800 Km em 33 horas e meia e aterrou, a 21 de Maio de 1927, no aeroporto de Le Bourget, em Paris, perante uma multidão em êxtase.

Semanas depois, os dois principais rivais de Lindbergh – Byrd, no America, e Chamberlin, no Miss Columbia – acabaram por também conseguir chegar à Europa, embora tal tenha envolvido quezílias mesquinhas, peripécias rocambolescas e puras tolices, pouco consentâneas com a aura gloriosa e cavalheiresca associada a este tipo de feitos.

O que mais impressiona nos relatos destes voos pioneiros é o aparente desprezo pela vida patente na leviandade e amadorismo com que eram preparados. Mas talvez este pouco valor atribuído à vida não decorresse apenas de um espírito temerário próprio dos entusiastas da aviação – é que, naqueles tempos, mesmo entre os que levavam vidas pacatas e protegidas, nas classes privilegiadas dos países desenvolvidos, a existência estava sujeita a perigos e imprevistos que hoje nos parecerão impensáveis e aterradores.

Um exemplo dessa precariedade está patente num evento ocorrido três anos antes do Verão de 1927: os filhos de Calvin Coolidge, presidente dos EUA, John, de 18 anos, e Calvin Jr., de 16, foram jogar ténis no court da Casa Branca. Calvin Jr. calçou sapatos de ténis sem peúgas e ficou com uma bolha num dedo do pé, que infectou, causando uma septicemia – apesar dos melhores cuidados que a medicina de então podia dispensar, três dias depois estava morto. Era assim o mundo antes da invenção dos antibióticos.

É a esse mundo que Bill Bryson, que tem copiosa bibliografia na área da divulgação histórica e científica, cobrindo as mais diversas épocas e tempos, nos transporta, com irrepreensível eficácia e refinada ironia, com Aquele Verão. A focagem em eventos ocorridos nos EUA no Verão de 1927 poderá parecer uma escolha bizarra, mas é plenamente conseguida: as peripécias dos pioneiros da aviação enlaçam-se harmoniosamente com os feitos da equipa de baseball dos New York Yankees e do seu batedor-maravilha, Babe Ruth, as Grandes Cheias do Mississipi, o combate de boxe entre Jack Dempsey e Gene Tunney, a estreia de The Jazz Singer (que, não tendo sido exactamente o primeiro filme falado mudou a história do cinema), o apogeu da breve carreira de Al Capone, ou a execução dos anarquistas Sacco e Vanzetti (que incluiu também a do homicida açoriano Celestino Medeiros, que chegou a declarar-se culpado do crime pelo qual Sacco e Vanzetti eram acusados).

Em 500 páginas sucedem-se eventos trágicos e cómicos, figuras que ficaram na história e gente anónima, actos de extraordinária generosidade e indescritível crueldade, empresários de visão e simples tolos, decisões que mudaram o curso da história e gesticulações vãs.

Ao focar-se na política americana de então, Aquele Verão contribui para desmontar uma das ideias feitas mais repetidos dos nossos tempos: o de que os estadistas de hoje são pigmeus por comparação com os grandes vultos do passado. É verdade que muitos líderes políticos de hoje são figuras medíocres, mas quando os subscritores e difusores desta tese nomeiam os “grandes vultos do passado” limitam-se a repetir sempre os mesmos três ou quatro nomes – Churchill, De Gaulle, Roosevelt, Delors – e esquecem que estes coexistiram com milhares de nulidades.

Em 1927, o presidente dos EUA era Calvin Coolidge (1923-29), um homem inteligente e honesto mas de uma reserva e timidez patológicas, cuja presidência se caracterizou por uma “inactividade doentia” e um obstinado alheamento em relação a assuntos de Estado – foi com indiferença que assistiu ao desmesurado inchaço da bolha especulativa, cujo estoiro iria mergulhar o país na Grande Depressão.

Mas Coolidge, entretido a pescar trutas enquanto o mundo se encaminhava para o desastre, até fazia boa figura ao lado do seu antecessor, Warren G. Harding (1921-23), de quem Bryson diz que “a única qualidade evidente que [lhe] permitia aspirar a um alto cargo governativo era o seu porte elegante […] Sob quase todos os outros pontos de vista – inteligência, carácter, espírito empreendedor – estava abaixo de medíocre”. Harding tinha sido uma desastrosa escolha de compromisso, entre um leque de candidatos do Partido Republicano, já de si “de segunda categoria”, e Coolidge ficara como vice-presidente, no que terá sido um dos tickets mais indigentes da história das eleições presidenciais americanas.

A administração Harding foi um festim de desleixo, incompetência, gestão danosa e corrupção e quando tudo isto ameaçava desabar sobre o presidente, este, com grande sentido de oportunidade, finou-se com uma hemorragia cerebral (ou um ataque cardíaco) e o sorumbático e inerte Coolidge tomou-lhe o lugar (“nunca vi ninguém dormir tanto como ele”, diria o mordomo da Casa Branca).

Suceder-lhe-ia, em 1929, Herbert Hoover, que viu as bolsas ruírem poucos meses depois de tomar posse e foi impotente para travar a Grande Depressão, tendo ficado com a fama de ter sido um dos piores presidentes dos EUA (embora um dos assessores de Franklin Roosevelt tenha reconhecido que “praticamente todo o New Deal foi extrapolado dos programas que Hoover desencadeou”). O lamento sobre a Idade do Ouro dos Homens de Estado não contabiliza, porém, as nulidades e os desafortunados e faz de conta que o passado se fez exclusivamente de Washingtons, Jeffersons e Lincolns.

Foram os rostos de Washington, Jefferson e Lincoln, que começaram, no Verão de 1927, a ser esculpidos em dimensões ciclópicas no Monte Rushmore (juntamente com o de Theodore Roosevelt, mais por ser amigo do mentor do projecto do que por mérito). Se o ambicioso projecto do monumento do Monte Rushmore parecia ter poucas hipóteses de ser levado a bom termo, a verdade é que se tornou num dos símbolos da nação americana.

O mesmo não pode dizer-se de outro projecto megalómano encetado nesse mesmo Verão, com a concessão, pelo Estado de Pará, de um terreno de 10.000 km² à Ford Motor Company: Henry Ford, cuja excentricidade e obstinação começavam a levar a melhor sobre o seu génio empresarial, decidira criar uma cidade industrial autónoma no meio da selva amazónica. A Fordlândia, concebida segundo regras rígidas, detalhadas e completamente desajustadas da realidade, deveria fornecer borracha para todas as fábricas Ford espalhadas pelo mundo, mas saldou-se num rotundo fiasco.

Talvez não por acaso, o Verão de 1927 foi também a altura escolhida pelo cada vez mais caprichoso Henry Ford para cessar, intempestivamente, a produção do popular Model T e deixar as fábricas paradas durante meses, enquanto se desenvolvia o seu sucessor, o Model A.

Tudo isto (e muito mais) está em Aquele Verão e o mais surpreendente é que o livro não se lê como um anuário ou uma colecção de factos desgarrados mas como uma narrativa arrebatadora feita de múltiplas linhas que se cruzam e afastam e revoluteiam umas em torno das outras. Poderá perguntar-se se o que se passou nos EUA no Verão de 1927 foi assim tão excepcional, se foi um ponto de viragem na história, se foi mesmo determinante para conduzir o rumo da história até ao nosso presente. Haverá certamente outros anos noutros países que foram igualmente decisivos, mas não é isso que importa, é o génio de Bryson para manter a narrativa em fluxo ininterrupto e para nos chamar a atenção para eventos e figuras que desconhecíamos ou tínhamos esquecido e para nos fazer ver as ligações entre eventos e figuras aparentemente sem relação entre si e sem relação com o mundo dos nossos dias.

Louis Menand, na The New Yorker de 30 de Março de 2015, numa crítica a outro livro centrado num (hipotético) ano-charneira – 1995: The Year the Future Began, de W. Joseph Campbell – escreve: “Há muitas formas de aglomerar eventos passados, de somar parcelas de tempo escoado e conferir-lhes um significado colectivo. […] Mas as histórias que proporcionam leitura mais prazenteira são os livros […] que tentam fazer o curso da história depender de um único fenómeno ou de um único ano. […] Nem todos os pontos serão pontos de viragem. Mas não é essa a argumentação destes livros. Eles procuram conferir a […] a eventos ocorridos numa certa data a capacidade de explicar o que se passou antes e depois desse momento. Até podemos duvidar da premissa, mas o efeito real e útil dos títulos melodramáticos é chamar a nossa atenção para algo que, de outro modo, teríamos ignorado.”

A eufórica recepção a Lindbergh em Paris e Nova Iorque foi seguida por uma intensíssima digressão aérea pelos EUA que se prolongou entre Julho e Outubro de 1927 e em que o aviador, sempre aos comandos do Spirit of St Louis, cobriu 22.350 milhas e 82 cidades, onde foi aclamado por um total de 30 milhões de pessoas – um quarto da população dos EUA. O voo transatlântico e a digressão americana de Lindbergh mudaram, indubitavelmente, a forma como a nação americana encarava as viagens aéreas e o potencial da aviação.

Mas, enquanto Lindbergh tomava banhos de multidão, a 7 de Setembro, num discreto laboratório de São Francisco, o hoje olvidado Philo T. Farnsworth, então com 21 anos, punha em prática uma ideia visionária que o assaltara quando tinha 15 anos e empurrava um arado atrás do cavalo pela quinta do pai: o seu “dissecador de imagem” transmitiu, de uma divisão para outra, uma imagem que consistia numa simples linha. Pode parecer irrisório, mas foi assim que nasceu a televisão.

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