365 forte

08-09-2014
marcar artigo

David Crisóstomo

Face ao que se passou (e passará) com os deputados do PSD eleitos pelo círculo eleitoral da Madeira, o LIVRE divulgou um comunicado criticando e denunciando os procedimentos de que estes deputados estão a ser alvo por terem votado contra a proposta de Orçamento de Estado para 2015.

Além de terem sido publicamente ameaçados por parte do presidente da bancada parlamentar do PSD na Assembleia da República (apoiado pelo secretário-geral do PSD), os deputados Hugo Velosa, Guilherme Silva, Francisco Gomes e Correia de Jesus foram ainda alvos de uma queixa ao Conselho de Jurisdição Nacional do PSD (com o propósito de este os sancionar pelos seus sentidos de voto) e de exigências para que se demitissem dos cargos que ocupam (ocupava, no caso do deputado Hugo Velosa) no grupo parlamentar do PSD e na Assembleia da República, sendo o caso mais notório o do deputado Guilherme Silva, actualmente vice-presidente da Assembleia da República.

Ricardo Paes Mamede e Vital Moreira escreveram criticas à posição do LIVRE, assumindo uma discordância sobre a condenação ao chamado regime parlamentar da "disciplina de voto", que o LIVRE apelida (e muito bem, a meu ver) de "anormalidade democrática" - posição que o Ricardo Paes Mamede refere que não devia ter existido e que Vital Moreira classifica como "anarcoparlamentarismo individualista" (enfim, um ex-eurodeputado escrever algo assim; se durante os cinco anos em que esteve num parlamento onde não existe "disciplina de voto" ou coisa parecida, ele se sentiu um "anarcoparlamentar individualista" ou coisa que o valha, isso é lá com ele)

Comecemos portanto pelas partes onde estamos de acordo. Vital Moreira escreve que vivemos num sistema politico-partidário onde a "legitimidade e a subsistência do executivo dependem do Parlamento e da maioria parlamentar, monopartidária ou de coligação, que o sustenta". Correctíssimo. Ricardo Paes Mamede escreve por sua vez que o "regime constitucional em que vivemos tem nos partidos políticos a sua base constitutiva." Sem dúvida. Olhemos então para as bases constitucionais do nosso regime parlamentar. Comecemos por um artigo clássico, o 155º, que começa assim:

"1. Os Deputados exercem livremente o seu mandato, sendo-lhes garantidas condições adequadas ao eficaz exercício das suas funções, designadamente ao indispensável contacto com os cidadãos eleitores e à sua informação regular."

Tradicionalmente, os defensores de um regime de controlo absoluto das votações parlamentares (ou "disciplina de voto"), interpretam ali aquele advérbio "livremente" como eu interpreto os cães de porcelana que a minha tia Clotilde tem no móvel que suporta a televisão na sala de estar: é decorativo, ornamental, preenche o vazio mas não serve para coisa alguma. Eu, como sou esquisito, gosto de pensar que as palavras no nosso texto constitucional estão lá por uma razão concreta, que têm utilidade e significado, que quando lemos que "os deputados exercem livremente o seu mandato" devemos interpretar que os deputados exercem o mandato para o qual foram democraticamente eleitos de forma livre, sem estarem sujeitos a qualquer coacção, sem estarem sujeitos a qualquer repreensão pela forma como o exercem. "Isso és tu que és esquisito", dizem-me. Talvez, mas então os senhores deputados constituintes (cargo que o Vital Moreira ocupou, eleito pelo PCP) também o eram um poucochinho, já que mais à frente, no frequentemente esquecido artigo 157º, podemos ler o seguinte:

"1. Os Deputados não respondem civil, criminal ou disciplinarmente pelos votos e opiniões que emitirem no exercício das suas funções."

Ora, isto posso ser eu que faço confusão com as palavras grandalhonas, mas uma violação da chamada "disciplina de voto" supõe, regra geral, sanções "disciplinares", não é? Implica que o deputado-que-acha-que-pode-pensar-pela-sua-cabecinha responda "disciplinarmente" pelos seus votos, correcto? Portanto, tal como no caso do termo "livremente", também "disciplinarmente" deve ser, segundo consta, interpretado à luz da doutrina cão-de-louça: não tem significado, é uma cena gira que lá está mas é como se não lá estivesse. Curiosamente, aquando da redação do Estatuto dos Deputados da Assembleia da República, os (anarquistas) parlamentares decidiram copiar não só o artigo 151º da CRP (o artigo 12º, no estatuto dos deputados), como também o artigo 157º, acrescentado ao texto original deste um "e por causa delas", ficando assim o 10º artigo do estatuto dos deputados:

"Os Deputados não respondem civil, criminal ou disciplinarmente pelos votos e opiniões que emitirem no exercício das suas funções e por causa delas."

Isto é, parece que todos admitimos descontraidamente que um deputado não pode responder disciplinarmente pelo seu voto, excepto no caso da alegada "disciplina de voto", em que todos defendemos que um deputado deve responder disciplinarmente pelo seu voto. Apesar de estatuto dos parlamentares e a Constituição da República Portuguesa explicitarem o contrário. É isto, não é?

Ainda na questão do cabimento constitucional, Vital Moreira sublinha que, acima de tudo, os deputados representam "o respectivo partido". "Consequentemente, são os partidos que vão a votos e são eles que respondem perante o eleitorado nas eleições seguintes. Afirmar que os deputados só devem responder perante os eleitores é uma ficção sem nenhum fundamento." Outra vez, daquelas coisas que escritas por um ex-deputado na Assembleia Constituinte, ex-deputado na Assembleia da República e ex-deputado no Parlamento Europeu, me fazem tremer a espinha. E voltamos à doutrina cachorro de primor (se bem que aqui já é quase a doutrina da letra morta):

Artigo 147º

"A Assembleia da República é a assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses."

Artigo 157º

"2. Os Deputados representam todo o país e não os círculos por que são eleitos."

Sim, caro Vital Moreira, os deputados são eleitos em listas propostas por partidos e todavia não representam partidos. Estou com dificuldade em explicar-lhe este principio básico da democracia parlamentar, que deduzi que soubesse de cor e salteado. Os partidos detêm actualmente o monopólio (se o deviam deter ou não, é outro debate) das candidaturas aos parlamentos nacional e europeu - mas indicam listas com cidadãos que se propõem a representar os interesses, ideais e valores dos cidadãos da República e da União; os partidos servem de veículo para a eleição de pessoas que comungam dos valores desses mesmos partidos, simples. Por alguma razão temos no plenário parlamentar 230 cidadãos eleitos e não 6 funcionários partidários, que serviriam como uma espécie de emissários diplomáticos, votando consoante as ordens da respectiva sede. Permitam-me ser claro: afirmar que os deputados só devem responder perante os partidos não é só uma ficção sem nenhum fundamento - é uma patetice insultuosa. Se o doutor achou que nos últimos 5 anos (já nem recuo mais) andou somente a representar o Partido Socialista no hemiciclo de Estrasburgo, e não os cidadãos europeus, isso preocupa-me seriamente. Com franqueza...

Adiante. "Pelo contrário, considero que constitui uma anormalidade no nosso regime democrático, nos termos em que ele actualmente existe, bem como uma subversão dos princípios constitucionais, que um deputado eleito por um partido vote sem respeitar o programa eleitoral pelo qual aceitou ser eleito" escreve o Ricardo Paes Mamede. Não considerando "uma anomalia no nosso regime democrático" a existência de deputados que votam de forma contrária ao que defenderam em campanha eleitoral (bom, existe no nosso regime e existe em qualquer outro regime democrático), estou de resto plenamente de acordo. Daí não entender a posição dele nesta questão, ainda para mais quando escreve que se "tivesse votado num partido com base num programa específico, não gostaria de ver os deputados eleitos a votar contra esse programa por "uma questão consciência individual" num momento tão decisivo como é a aprovação de um Orçamento de Estado". Ora, a votação a que o comunicado do LIVRE se refere foi a da proposta de Orçamento de Estado para 2015, que prossegue as exactíssimas mesmas políticas dos orçamentos anteriores. E aqui está o que eu não compreendo: Ricardo, tu achas que a proposta de Orçamento de Estado para 2015 está em consonância com o programa eleitoral do PSD com o qual os deputados foram a votos em 2011? O programa que argumentava que "no domínio social, as nossas propostas visam a realização de um objectivo central: preservar o Estado Social, que tem sido objecto nos últimos anos de um ataque e um desmantelamento de enormes proporções"? O programa que dizia que os eleitos pelo PSD comprometiam-se a pugnar por "um aumento da receita fiscal, sem alteração da carga fiscal"? Que alegava que "na actual conjuntura, é impensável optar por caminhos que diminuam ainda mais os níveis de protecção social dos mais desfavorecidos"? Achas que os deputados da bancada do PSD que votaram a favor é que cumpriram o seu compromisso eleitoral? É que eu não vejo a coisa dessa maneira. Sei bem por que razões os deputados do PSD eleitos pelo círculo eleitoral da Madeira decidiram votar contra este diploma - as mesmas que levaram o também eleito pelo círculo da Madeira Rui Barreto, do CDS-PP, a votar contra: ia, na opinião deles, contra os interesses da população da região autónoma que os elegeu - mas isso não entra neste caso em conflito com o programa eleitoral com que foram eleitos. Pelo contrário, defende-o. Aliás, dos que me recordo, os votos que recentemente violaram as alegadas "disciplinas de voto" têm quase sempre sido no sentido da defesa do compromisso eleitoral: seja no caso dos deputados do PSD e do CDS-PP eleitos pela Madeira nesta proposta de Orçamento de Estado (e no caso do deputado Rui Barreto, nas propostas de Orçamento de Estado para 2013 e para 2014), como na proposta de Lei das Finanças Regionais, onde ainda tiveram o apoio dos deputados do PSD eleitos pelo círculos dos Açores (Mota Amaral, Lídia Bulcão e Joaquim Ponte); ou no da deputada Isabel Moreira, eleita pelo PS, nas votações na generalidade da proposta de Código do Trabalho e final global da proposta de Orçamento de Estado para 2012; ou nas dos deputados Pedro Delgado Alves e Rui Duarte, na votação do Tratado sobre a Estabilidade, Coordenação e Governação na União Económica e Monetária (o chamado "Tratado Orçamental"); ou no do deputado Ribeiro e Castro do CDS-PP e dos deputados socialistas Renato Sampaio, Paulo Campos, Sérgio Sousa Pinto, André Figueiredo, Isabel Santos, Carlos Enes, Rui Duarte, Pedro Delgado Alves e Isabel Moreira, na votação final global da proposta de Código de Trabalho. Em algum destes casos é possível dizer-se que estes deputados votaram sem respeitar o programa eleitoral pelo qual aceitaram ser eleitos? Os outros deputados que em muitos destes casos votaram de forma diferente destes aqui enunciados é que se calhar o fizeram por uma "questão de consciência individual", por não se sentirem confortáveis com a ideia de "desobedecer" à indicação do partido. Especulo eu.

Mas, para o caso geral, parece que há o problema da interpretação do programa eleitoral. Segundo o Ricardo Paes Mamede: "em caso de dúvida sobre a interpretação a dar a esse programa perante casos concretos, cabe às estruturas formais dos partidos esclarecê-lo colectivamente, de acordo com as regras que vigoram em cada partido." Porquê? Por que razão (ou com que legitimidade) uma direção partidária, frequentemente composta de cidadãos que não foram eleitos para o parlamento em questão, poderá ter o poder absoluto de interpretação de um programa eleitoral subscrito por outros cidadãos que com ele foram a votos e tendo ele por base para exercem o seu mandato? Porque há-de ser isto regra? Porque simplesmente não deixamos os deputados interpretarem-no como entenderem e deixamos a população por eles representada fazer o julgamento sobre essa interpretação? Porque insistimos em dar um poder aos partidos que não tem qualquer cabimento legal, retirando-o dos representantes eleitos da população portuguesa? Ou melhor: porque insistimos em desresponsabilizar os deputados?

Por fim, há um ponto onde tanto o Ricardo Paes Mamede como Vital Moreira argumentam praticamente da mesma forma, naquele da votação onde nunca pode não haver o que se consensualiza como "disciplina de voto", a da proposta de Orçamento de Estado. Vital Moreira escreve que o "voto livre num orçamento é um contrassenso", pois a "disciplina parlamentar é uma condição elementar da estabilidade governativa e da própria governabilidade". Ricardo Paes Mamede descreve que "se há situação em que faz muito pouco sentido haver liberdade de voto é na votação do Orçamento de Estado – o qual define os aspectos estruturantes da intervenção do Estado na economia e na sociedade". E aqui, confesso, a minha refutação é bastante singela: precisamente por ser uma votação tão importante e determinante, com tanta capacidade de influência na vida diária dos cidadãos, é que os deputados eleitos não podem ser condicionados no momento do voto. A proposta de Orçamento de Estado é uma matéria de facto importantíssima - e exactamente por isso que eu, enquanto cidadão, exijo que os deputados do meu parlamento, os meus representantes eleitos, se responsabilizem plenamente por essa decisão e votem da forma que melhor pensem poder contribuir para o bem-estar do país. Tenho muita dificuldade em aceitar que este poder lhes possa ser retirado e que se possam dar ao luxo de desresponsabilizarem-se por estas votações alegando uma qualquer "disciplina".

Em jeito de conclusão, Vital Moreira questiona: "se o Livre vier a fazer parte de uma coligação governamental, como é que vai conciliar este anarcoparlamentarismo individualista com a necessidade de assegurar aos parceiros de coligação uma votação coesa nas questões políticas essenciais, nomeadamente no orçamento?". Olhe, não sei como o LIVRE fará, nem se alguma coisa fará, mas o que mais me preocupa é raciocínio subjacente à sua pergunta - o Vital Moreira acha que o PS não pode confiar nos seus deputados para tomarem as melhores decisões para o país? É que o LIVRE ainda faz primárias abertas para escolher os seus candidatos para deputados, mas os outros partidos escolhem os seus a dedo, por convite. E nem assim o Vital Moreira acha que o partido pode confiar nos deputados que tem nas suas listas, pode garantir "uma votação coesa nas questões políticas essenciais"? Mas que atestado de incompetência é este? É que eu, talvez inocentemente, confio nos deputados do meu partido. Ou confio que tomarão sempre a decisão que acharem que mais beneficia a nossa sociedade. Daí tê-los elegido, daí ter votado no PS. Não os desresponsabilizo de voto algum e muito menos acho que sem uma "disciplina de voto" instalariam o pandemónio na Assembleia da República. Não sei como fará o LIVRE, mas espero (ou deduzo) que utilize apenas um principio básico da democracia parlamentar: confie nos seus deputados, confie que eles tomarão sempre a decisão que eles acharem que melhor representa os princípios pelos quais foram eleitos.

O Ricardo Paes Mamede por sua vez finaliza o seu post com uma critica: "O que a direcção de cada partido deve mesmo evitar fazer é tecer considerações sobre o modo como os outros partidos decidiram, democraticamente, organizar-se". Como noutras citações acima, tendo a concordar. Excepto neste caso, quando está em causa uma clara subversão de princípios da democracia parlamentar, quando está em causa a violação de artigos constitucionais. Aí espero que qualquer partido não se contenha e denuncie o sucedido, denuncie e defenda o cumprimento da lei.

E, tendo tudo isto em conta, o LIVRE fez somente o que lhe competia.

David Crisóstomo

Face ao que se passou (e passará) com os deputados do PSD eleitos pelo círculo eleitoral da Madeira, o LIVRE divulgou um comunicado criticando e denunciando os procedimentos de que estes deputados estão a ser alvo por terem votado contra a proposta de Orçamento de Estado para 2015.

Além de terem sido publicamente ameaçados por parte do presidente da bancada parlamentar do PSD na Assembleia da República (apoiado pelo secretário-geral do PSD), os deputados Hugo Velosa, Guilherme Silva, Francisco Gomes e Correia de Jesus foram ainda alvos de uma queixa ao Conselho de Jurisdição Nacional do PSD (com o propósito de este os sancionar pelos seus sentidos de voto) e de exigências para que se demitissem dos cargos que ocupam (ocupava, no caso do deputado Hugo Velosa) no grupo parlamentar do PSD e na Assembleia da República, sendo o caso mais notório o do deputado Guilherme Silva, actualmente vice-presidente da Assembleia da República.

Ricardo Paes Mamede e Vital Moreira escreveram criticas à posição do LIVRE, assumindo uma discordância sobre a condenação ao chamado regime parlamentar da "disciplina de voto", que o LIVRE apelida (e muito bem, a meu ver) de "anormalidade democrática" - posição que o Ricardo Paes Mamede refere que não devia ter existido e que Vital Moreira classifica como "anarcoparlamentarismo individualista" (enfim, um ex-eurodeputado escrever algo assim; se durante os cinco anos em que esteve num parlamento onde não existe "disciplina de voto" ou coisa parecida, ele se sentiu um "anarcoparlamentar individualista" ou coisa que o valha, isso é lá com ele)

Comecemos portanto pelas partes onde estamos de acordo. Vital Moreira escreve que vivemos num sistema politico-partidário onde a "legitimidade e a subsistência do executivo dependem do Parlamento e da maioria parlamentar, monopartidária ou de coligação, que o sustenta". Correctíssimo. Ricardo Paes Mamede escreve por sua vez que o "regime constitucional em que vivemos tem nos partidos políticos a sua base constitutiva." Sem dúvida. Olhemos então para as bases constitucionais do nosso regime parlamentar. Comecemos por um artigo clássico, o 155º, que começa assim:

"1. Os Deputados exercem livremente o seu mandato, sendo-lhes garantidas condições adequadas ao eficaz exercício das suas funções, designadamente ao indispensável contacto com os cidadãos eleitores e à sua informação regular."

Tradicionalmente, os defensores de um regime de controlo absoluto das votações parlamentares (ou "disciplina de voto"), interpretam ali aquele advérbio "livremente" como eu interpreto os cães de porcelana que a minha tia Clotilde tem no móvel que suporta a televisão na sala de estar: é decorativo, ornamental, preenche o vazio mas não serve para coisa alguma. Eu, como sou esquisito, gosto de pensar que as palavras no nosso texto constitucional estão lá por uma razão concreta, que têm utilidade e significado, que quando lemos que "os deputados exercem livremente o seu mandato" devemos interpretar que os deputados exercem o mandato para o qual foram democraticamente eleitos de forma livre, sem estarem sujeitos a qualquer coacção, sem estarem sujeitos a qualquer repreensão pela forma como o exercem. "Isso és tu que és esquisito", dizem-me. Talvez, mas então os senhores deputados constituintes (cargo que o Vital Moreira ocupou, eleito pelo PCP) também o eram um poucochinho, já que mais à frente, no frequentemente esquecido artigo 157º, podemos ler o seguinte:

"1. Os Deputados não respondem civil, criminal ou disciplinarmente pelos votos e opiniões que emitirem no exercício das suas funções."

Ora, isto posso ser eu que faço confusão com as palavras grandalhonas, mas uma violação da chamada "disciplina de voto" supõe, regra geral, sanções "disciplinares", não é? Implica que o deputado-que-acha-que-pode-pensar-pela-sua-cabecinha responda "disciplinarmente" pelos seus votos, correcto? Portanto, tal como no caso do termo "livremente", também "disciplinarmente" deve ser, segundo consta, interpretado à luz da doutrina cão-de-louça: não tem significado, é uma cena gira que lá está mas é como se não lá estivesse. Curiosamente, aquando da redação do Estatuto dos Deputados da Assembleia da República, os (anarquistas) parlamentares decidiram copiar não só o artigo 151º da CRP (o artigo 12º, no estatuto dos deputados), como também o artigo 157º, acrescentado ao texto original deste um "e por causa delas", ficando assim o 10º artigo do estatuto dos deputados:

"Os Deputados não respondem civil, criminal ou disciplinarmente pelos votos e opiniões que emitirem no exercício das suas funções e por causa delas."

Isto é, parece que todos admitimos descontraidamente que um deputado não pode responder disciplinarmente pelo seu voto, excepto no caso da alegada "disciplina de voto", em que todos defendemos que um deputado deve responder disciplinarmente pelo seu voto. Apesar de estatuto dos parlamentares e a Constituição da República Portuguesa explicitarem o contrário. É isto, não é?

Ainda na questão do cabimento constitucional, Vital Moreira sublinha que, acima de tudo, os deputados representam "o respectivo partido". "Consequentemente, são os partidos que vão a votos e são eles que respondem perante o eleitorado nas eleições seguintes. Afirmar que os deputados só devem responder perante os eleitores é uma ficção sem nenhum fundamento." Outra vez, daquelas coisas que escritas por um ex-deputado na Assembleia Constituinte, ex-deputado na Assembleia da República e ex-deputado no Parlamento Europeu, me fazem tremer a espinha. E voltamos à doutrina cachorro de primor (se bem que aqui já é quase a doutrina da letra morta):

Artigo 147º

"A Assembleia da República é a assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses."

Artigo 157º

"2. Os Deputados representam todo o país e não os círculos por que são eleitos."

Sim, caro Vital Moreira, os deputados são eleitos em listas propostas por partidos e todavia não representam partidos. Estou com dificuldade em explicar-lhe este principio básico da democracia parlamentar, que deduzi que soubesse de cor e salteado. Os partidos detêm actualmente o monopólio (se o deviam deter ou não, é outro debate) das candidaturas aos parlamentos nacional e europeu - mas indicam listas com cidadãos que se propõem a representar os interesses, ideais e valores dos cidadãos da República e da União; os partidos servem de veículo para a eleição de pessoas que comungam dos valores desses mesmos partidos, simples. Por alguma razão temos no plenário parlamentar 230 cidadãos eleitos e não 6 funcionários partidários, que serviriam como uma espécie de emissários diplomáticos, votando consoante as ordens da respectiva sede. Permitam-me ser claro: afirmar que os deputados só devem responder perante os partidos não é só uma ficção sem nenhum fundamento - é uma patetice insultuosa. Se o doutor achou que nos últimos 5 anos (já nem recuo mais) andou somente a representar o Partido Socialista no hemiciclo de Estrasburgo, e não os cidadãos europeus, isso preocupa-me seriamente. Com franqueza...

Adiante. "Pelo contrário, considero que constitui uma anormalidade no nosso regime democrático, nos termos em que ele actualmente existe, bem como uma subversão dos princípios constitucionais, que um deputado eleito por um partido vote sem respeitar o programa eleitoral pelo qual aceitou ser eleito" escreve o Ricardo Paes Mamede. Não considerando "uma anomalia no nosso regime democrático" a existência de deputados que votam de forma contrária ao que defenderam em campanha eleitoral (bom, existe no nosso regime e existe em qualquer outro regime democrático), estou de resto plenamente de acordo. Daí não entender a posição dele nesta questão, ainda para mais quando escreve que se "tivesse votado num partido com base num programa específico, não gostaria de ver os deputados eleitos a votar contra esse programa por "uma questão consciência individual" num momento tão decisivo como é a aprovação de um Orçamento de Estado". Ora, a votação a que o comunicado do LIVRE se refere foi a da proposta de Orçamento de Estado para 2015, que prossegue as exactíssimas mesmas políticas dos orçamentos anteriores. E aqui está o que eu não compreendo: Ricardo, tu achas que a proposta de Orçamento de Estado para 2015 está em consonância com o programa eleitoral do PSD com o qual os deputados foram a votos em 2011? O programa que argumentava que "no domínio social, as nossas propostas visam a realização de um objectivo central: preservar o Estado Social, que tem sido objecto nos últimos anos de um ataque e um desmantelamento de enormes proporções"? O programa que dizia que os eleitos pelo PSD comprometiam-se a pugnar por "um aumento da receita fiscal, sem alteração da carga fiscal"? Que alegava que "na actual conjuntura, é impensável optar por caminhos que diminuam ainda mais os níveis de protecção social dos mais desfavorecidos"? Achas que os deputados da bancada do PSD que votaram a favor é que cumpriram o seu compromisso eleitoral? É que eu não vejo a coisa dessa maneira. Sei bem por que razões os deputados do PSD eleitos pelo círculo eleitoral da Madeira decidiram votar contra este diploma - as mesmas que levaram o também eleito pelo círculo da Madeira Rui Barreto, do CDS-PP, a votar contra: ia, na opinião deles, contra os interesses da população da região autónoma que os elegeu - mas isso não entra neste caso em conflito com o programa eleitoral com que foram eleitos. Pelo contrário, defende-o. Aliás, dos que me recordo, os votos que recentemente violaram as alegadas "disciplinas de voto" têm quase sempre sido no sentido da defesa do compromisso eleitoral: seja no caso dos deputados do PSD e do CDS-PP eleitos pela Madeira nesta proposta de Orçamento de Estado (e no caso do deputado Rui Barreto, nas propostas de Orçamento de Estado para 2013 e para 2014), como na proposta de Lei das Finanças Regionais, onde ainda tiveram o apoio dos deputados do PSD eleitos pelo círculos dos Açores (Mota Amaral, Lídia Bulcão e Joaquim Ponte); ou no da deputada Isabel Moreira, eleita pelo PS, nas votações na generalidade da proposta de Código do Trabalho e final global da proposta de Orçamento de Estado para 2012; ou nas dos deputados Pedro Delgado Alves e Rui Duarte, na votação do Tratado sobre a Estabilidade, Coordenação e Governação na União Económica e Monetária (o chamado "Tratado Orçamental"); ou no do deputado Ribeiro e Castro do CDS-PP e dos deputados socialistas Renato Sampaio, Paulo Campos, Sérgio Sousa Pinto, André Figueiredo, Isabel Santos, Carlos Enes, Rui Duarte, Pedro Delgado Alves e Isabel Moreira, na votação final global da proposta de Código de Trabalho. Em algum destes casos é possível dizer-se que estes deputados votaram sem respeitar o programa eleitoral pelo qual aceitaram ser eleitos? Os outros deputados que em muitos destes casos votaram de forma diferente destes aqui enunciados é que se calhar o fizeram por uma "questão de consciência individual", por não se sentirem confortáveis com a ideia de "desobedecer" à indicação do partido. Especulo eu.

Mas, para o caso geral, parece que há o problema da interpretação do programa eleitoral. Segundo o Ricardo Paes Mamede: "em caso de dúvida sobre a interpretação a dar a esse programa perante casos concretos, cabe às estruturas formais dos partidos esclarecê-lo colectivamente, de acordo com as regras que vigoram em cada partido." Porquê? Por que razão (ou com que legitimidade) uma direção partidária, frequentemente composta de cidadãos que não foram eleitos para o parlamento em questão, poderá ter o poder absoluto de interpretação de um programa eleitoral subscrito por outros cidadãos que com ele foram a votos e tendo ele por base para exercem o seu mandato? Porque há-de ser isto regra? Porque simplesmente não deixamos os deputados interpretarem-no como entenderem e deixamos a população por eles representada fazer o julgamento sobre essa interpretação? Porque insistimos em dar um poder aos partidos que não tem qualquer cabimento legal, retirando-o dos representantes eleitos da população portuguesa? Ou melhor: porque insistimos em desresponsabilizar os deputados?

Por fim, há um ponto onde tanto o Ricardo Paes Mamede como Vital Moreira argumentam praticamente da mesma forma, naquele da votação onde nunca pode não haver o que se consensualiza como "disciplina de voto", a da proposta de Orçamento de Estado. Vital Moreira escreve que o "voto livre num orçamento é um contrassenso", pois a "disciplina parlamentar é uma condição elementar da estabilidade governativa e da própria governabilidade". Ricardo Paes Mamede descreve que "se há situação em que faz muito pouco sentido haver liberdade de voto é na votação do Orçamento de Estado – o qual define os aspectos estruturantes da intervenção do Estado na economia e na sociedade". E aqui, confesso, a minha refutação é bastante singela: precisamente por ser uma votação tão importante e determinante, com tanta capacidade de influência na vida diária dos cidadãos, é que os deputados eleitos não podem ser condicionados no momento do voto. A proposta de Orçamento de Estado é uma matéria de facto importantíssima - e exactamente por isso que eu, enquanto cidadão, exijo que os deputados do meu parlamento, os meus representantes eleitos, se responsabilizem plenamente por essa decisão e votem da forma que melhor pensem poder contribuir para o bem-estar do país. Tenho muita dificuldade em aceitar que este poder lhes possa ser retirado e que se possam dar ao luxo de desresponsabilizarem-se por estas votações alegando uma qualquer "disciplina".

Em jeito de conclusão, Vital Moreira questiona: "se o Livre vier a fazer parte de uma coligação governamental, como é que vai conciliar este anarcoparlamentarismo individualista com a necessidade de assegurar aos parceiros de coligação uma votação coesa nas questões políticas essenciais, nomeadamente no orçamento?". Olhe, não sei como o LIVRE fará, nem se alguma coisa fará, mas o que mais me preocupa é raciocínio subjacente à sua pergunta - o Vital Moreira acha que o PS não pode confiar nos seus deputados para tomarem as melhores decisões para o país? É que o LIVRE ainda faz primárias abertas para escolher os seus candidatos para deputados, mas os outros partidos escolhem os seus a dedo, por convite. E nem assim o Vital Moreira acha que o partido pode confiar nos deputados que tem nas suas listas, pode garantir "uma votação coesa nas questões políticas essenciais"? Mas que atestado de incompetência é este? É que eu, talvez inocentemente, confio nos deputados do meu partido. Ou confio que tomarão sempre a decisão que acharem que mais beneficia a nossa sociedade. Daí tê-los elegido, daí ter votado no PS. Não os desresponsabilizo de voto algum e muito menos acho que sem uma "disciplina de voto" instalariam o pandemónio na Assembleia da República. Não sei como fará o LIVRE, mas espero (ou deduzo) que utilize apenas um principio básico da democracia parlamentar: confie nos seus deputados, confie que eles tomarão sempre a decisão que eles acharem que melhor representa os princípios pelos quais foram eleitos.

O Ricardo Paes Mamede por sua vez finaliza o seu post com uma critica: "O que a direcção de cada partido deve mesmo evitar fazer é tecer considerações sobre o modo como os outros partidos decidiram, democraticamente, organizar-se". Como noutras citações acima, tendo a concordar. Excepto neste caso, quando está em causa uma clara subversão de princípios da democracia parlamentar, quando está em causa a violação de artigos constitucionais. Aí espero que qualquer partido não se contenha e denuncie o sucedido, denuncie e defenda o cumprimento da lei.

E, tendo tudo isto em conta, o LIVRE fez somente o que lhe competia.

marcar artigo