Estado Sentido

09-09-2015
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Durante o meu ritual matinal de leitura diagonal da imprensa deparei-me com um interessante título no DN: “Governo torna estágio de advogados menos exigente”. Ao ler o corpo da notícia apercebi-me do seguinte:

- O estágio vai passar a ter a duração de 1 ano e meio ( em vez de 2 anos);

- Os estagiários estarão sujeitos a apenas a uma avaliação, no final do estágio;

- O mestrado será obrigatório para o acesso à Ordem dos Advogados (OA).

Bem, a licenciatura em Direito tem a duração de 4 anos. São 4 intensos anos de formação jurídica e cívica em que os alunos passam grande parte do tempo a ouvir que a verdadeira formação acontecerá no período de tirocínio. Entretanto, numa universidade pública, as propinas anuais rondarão o valor dos € 1.100,00 anuais, fora o valor semestral dos livros e materiais afins, que será de cerca de € 400,00/ €500,00. Findo o período de licenciatura, o estudante de Direito sabe que o mercado está saturado mas aventura-se e procura estágio. O estágio remunerado parece um sonho para muitos finalistas. Na verdade, o que mais há são escritórios que ou não pagam o valor do trabalho dos estagiários porque entendem que a oportunidade que lhes oferecem é valiosa o suficiente ou só contratam estagiários com a 1ª parte do estágio da OA já concluída. Além disto, há sociedades de advogados que não aceitam estagiários que pretendam frequentar o mestrado, alegadamente por razões ligadas à eficiência daqueles.

Ademais, posso dar-vos conta de um caso concreto que ocorreu comigo: ao contactar um Professor da Universidade Católica para saber das condições de um mestrado que pretendia frequentar, fiquei a saber que não aceitam mestrandos que se encontrem a trabalhar. Para que saibam, o mestrado na Católica custará cerca de € 7.650,00, pelo que infiro que só quem seja abastado ou quem se possa endividar estará em condições de o frequentar. Na minha faculdade de origem (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa – Clássica) o mestrado é sensivelmente mais barato, tem o valor de € 2.200,00. Claro está que muitos dos recém-licenciados optarão pelo ingresso no mercado de trabalho, atentos os gastos na sua formação, principalmente numa conjuntura recessiva como a actual, em que muitos pais olham para a formação dos seus filhos como um investimento em sentido próprio. Para não mencionar, é claro, aqueles que nem sequer vislumbram a possibilidade de fazer ingressar os filhos numa qualquer universidade, por falta de meios.

Sempre fui apologista do aprofundamento de conhecimentos e, em bom rigor, o mestrado funcionará como uma vantagem comparativa no acesso ao mercado de trabalho, o que me parece algo normalíssimo, atento o funcionamento do mercado e a própria concorrência entre os agentes. Naturalmente, este estará ao alcance apenas daqueles que o podem pagar. Mas se forem aprovadas as alterações acima elencadas ao Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), o mestrado vai passar a ser obrigatório para o ingresso na OA.

Os mestrados têm a duração de 2 anos, por via de regra. Caso se torne obrigatório o grau de mestre para o acesso à OA, tudo somado, será de esperar que só 6 anos depois da entrada no ensino superior é que os interessados poderão, por fim, iniciar o tirocínio que os habilitará, 1 ano e ½ depois, a ser advogados. 7 anos e ½ de chulice, percebi bem?

Inquieta-me ainda o seguinte: O mestrado terá de ser em Direito? E se eu decidir, sendo escrupulosa, tirar o mestrado em Economia ou Gestão, de forma a diversificar os meus conhecimentos e enriquecer o meu percurso e curriculum, sem querer ficar à mercê do jogo da oferta e da procura? A OA também vai condicionar estas escolhas? É que o presente aconselhou-me a ser cautelosa e, como sublinhei supra, o Direito está longe de ser um paraíso de empregabilidade e a exigência de fazer o mestrado, ainda por cima em Direito, parece-me inadmissível na medida em que tenho o direito de auto-determinar as minhas escolhas a esse nível.

No fundo, o que isto confirma é o fiasco do processo de Bolonha, uma vez que desconsidera, sem qualquer tipo de pejo, a licenciatura e culminará ainda na “banalização” do mestrado, sendo certo que surgirão uma série de programas miseráveis de mestrado nas 1001 universidades da tanga que pululam por cá.

Entretanto, ocorreu-me o seguinte: Aquando da saída da Troika, o Governo emitiu um acervo de intenções que denominou, para inglês ver, The Road to Growth. Consta desse documento, mais propriamente da página 29, o seguinte:

Acesso às profissões

O Governo empreendeu um conjunto de ações para desregulamentar as profissões e eliminar restrições excessivas impostas pelas associações públicas profissionais. Embora tenham um papel importante na garantia da qualidade do serviço e dos padrões éticos, estas associações podem também gerar restrições excessivas. O novo regime jurídico das associações públicas profissionais, aprovado em 2013, estabelece requisitos e regras mais razoáveis aplicáveis a 18 profissões de relevo de interesse económico (como médicos, advogados e engenheiros). Destacam-se períodos de estágio mais curtos e a realização de menos exames de aferição, entre outras alterações introduzidas para reduzir as restrições ao acesso a estas profissões. Embora o diploma que consagra estas alterações já esteja em vigor, nos próximos meses, o Governo terá ainda que proceder à harmonização dos estatutos das associações com as disposições do novo regime. Foram já tomadas medidas nesse sentido, incluindo a elaboração de propostas-de lei de alteração dos estatutos e a abertura de negociações bilaterais com as associações profissionais. Prevê-se que este processo fique concluído até ao final de 2014.

Parece brincadeira, não é? Diria que dão com a mão estatutária, diminuindo em 6 meses o estágio e eliminando 2 exames, muito menos do que retiram com a mão substantiva, uma vez que passam a exigir o mestrado para o estágio em vez da licenciatura.

Ora bem, menos exigente? Para quem?

Só nos exigem um mestrado. São só mais dois anos a malhar, só porque sim. Mais dois anos de propinas, livros e despesas afins, relatórios, teses, e avaliações em várias disciplinas. O estágio fica reduzido em 6 míseros meses mas os emolumentos, que rondam os € 700,00 será que serão reduzidos também?

Mudam-se as vestes, mas o problema subsiste. No fundo, continuamos todos a alimentar as rendas dos masters of puppets.

O odor bafiento do Marinho e Pinto & Companhia já havia tornado os ares da OA irrespiráveis mas se isto continua assim eu juro que haverá sangue.

Durante o meu ritual matinal de leitura diagonal da imprensa deparei-me com um interessante título no DN: “Governo torna estágio de advogados menos exigente”. Ao ler o corpo da notícia apercebi-me do seguinte:

- O estágio vai passar a ter a duração de 1 ano e meio ( em vez de 2 anos);

- Os estagiários estarão sujeitos a apenas a uma avaliação, no final do estágio;

- O mestrado será obrigatório para o acesso à Ordem dos Advogados (OA).

Bem, a licenciatura em Direito tem a duração de 4 anos. São 4 intensos anos de formação jurídica e cívica em que os alunos passam grande parte do tempo a ouvir que a verdadeira formação acontecerá no período de tirocínio. Entretanto, numa universidade pública, as propinas anuais rondarão o valor dos € 1.100,00 anuais, fora o valor semestral dos livros e materiais afins, que será de cerca de € 400,00/ €500,00. Findo o período de licenciatura, o estudante de Direito sabe que o mercado está saturado mas aventura-se e procura estágio. O estágio remunerado parece um sonho para muitos finalistas. Na verdade, o que mais há são escritórios que ou não pagam o valor do trabalho dos estagiários porque entendem que a oportunidade que lhes oferecem é valiosa o suficiente ou só contratam estagiários com a 1ª parte do estágio da OA já concluída. Além disto, há sociedades de advogados que não aceitam estagiários que pretendam frequentar o mestrado, alegadamente por razões ligadas à eficiência daqueles.

Ademais, posso dar-vos conta de um caso concreto que ocorreu comigo: ao contactar um Professor da Universidade Católica para saber das condições de um mestrado que pretendia frequentar, fiquei a saber que não aceitam mestrandos que se encontrem a trabalhar. Para que saibam, o mestrado na Católica custará cerca de € 7.650,00, pelo que infiro que só quem seja abastado ou quem se possa endividar estará em condições de o frequentar. Na minha faculdade de origem (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa – Clássica) o mestrado é sensivelmente mais barato, tem o valor de € 2.200,00. Claro está que muitos dos recém-licenciados optarão pelo ingresso no mercado de trabalho, atentos os gastos na sua formação, principalmente numa conjuntura recessiva como a actual, em que muitos pais olham para a formação dos seus filhos como um investimento em sentido próprio. Para não mencionar, é claro, aqueles que nem sequer vislumbram a possibilidade de fazer ingressar os filhos numa qualquer universidade, por falta de meios.

Sempre fui apologista do aprofundamento de conhecimentos e, em bom rigor, o mestrado funcionará como uma vantagem comparativa no acesso ao mercado de trabalho, o que me parece algo normalíssimo, atento o funcionamento do mercado e a própria concorrência entre os agentes. Naturalmente, este estará ao alcance apenas daqueles que o podem pagar. Mas se forem aprovadas as alterações acima elencadas ao Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), o mestrado vai passar a ser obrigatório para o ingresso na OA.

Os mestrados têm a duração de 2 anos, por via de regra. Caso se torne obrigatório o grau de mestre para o acesso à OA, tudo somado, será de esperar que só 6 anos depois da entrada no ensino superior é que os interessados poderão, por fim, iniciar o tirocínio que os habilitará, 1 ano e ½ depois, a ser advogados. 7 anos e ½ de chulice, percebi bem?

Inquieta-me ainda o seguinte: O mestrado terá de ser em Direito? E se eu decidir, sendo escrupulosa, tirar o mestrado em Economia ou Gestão, de forma a diversificar os meus conhecimentos e enriquecer o meu percurso e curriculum, sem querer ficar à mercê do jogo da oferta e da procura? A OA também vai condicionar estas escolhas? É que o presente aconselhou-me a ser cautelosa e, como sublinhei supra, o Direito está longe de ser um paraíso de empregabilidade e a exigência de fazer o mestrado, ainda por cima em Direito, parece-me inadmissível na medida em que tenho o direito de auto-determinar as minhas escolhas a esse nível.

No fundo, o que isto confirma é o fiasco do processo de Bolonha, uma vez que desconsidera, sem qualquer tipo de pejo, a licenciatura e culminará ainda na “banalização” do mestrado, sendo certo que surgirão uma série de programas miseráveis de mestrado nas 1001 universidades da tanga que pululam por cá.

Entretanto, ocorreu-me o seguinte: Aquando da saída da Troika, o Governo emitiu um acervo de intenções que denominou, para inglês ver, The Road to Growth. Consta desse documento, mais propriamente da página 29, o seguinte:

Acesso às profissões

O Governo empreendeu um conjunto de ações para desregulamentar as profissões e eliminar restrições excessivas impostas pelas associações públicas profissionais. Embora tenham um papel importante na garantia da qualidade do serviço e dos padrões éticos, estas associações podem também gerar restrições excessivas. O novo regime jurídico das associações públicas profissionais, aprovado em 2013, estabelece requisitos e regras mais razoáveis aplicáveis a 18 profissões de relevo de interesse económico (como médicos, advogados e engenheiros). Destacam-se períodos de estágio mais curtos e a realização de menos exames de aferição, entre outras alterações introduzidas para reduzir as restrições ao acesso a estas profissões. Embora o diploma que consagra estas alterações já esteja em vigor, nos próximos meses, o Governo terá ainda que proceder à harmonização dos estatutos das associações com as disposições do novo regime. Foram já tomadas medidas nesse sentido, incluindo a elaboração de propostas-de lei de alteração dos estatutos e a abertura de negociações bilaterais com as associações profissionais. Prevê-se que este processo fique concluído até ao final de 2014.

Parece brincadeira, não é? Diria que dão com a mão estatutária, diminuindo em 6 meses o estágio e eliminando 2 exames, muito menos do que retiram com a mão substantiva, uma vez que passam a exigir o mestrado para o estágio em vez da licenciatura.

Ora bem, menos exigente? Para quem?

Só nos exigem um mestrado. São só mais dois anos a malhar, só porque sim. Mais dois anos de propinas, livros e despesas afins, relatórios, teses, e avaliações em várias disciplinas. O estágio fica reduzido em 6 míseros meses mas os emolumentos, que rondam os € 700,00 será que serão reduzidos também?

Mudam-se as vestes, mas o problema subsiste. No fundo, continuamos todos a alimentar as rendas dos masters of puppets.

O odor bafiento do Marinho e Pinto & Companhia já havia tornado os ares da OA irrespiráveis mas se isto continua assim eu juro que haverá sangue.

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