A invenção da noite
Inventamos a noite porque não há noite bastante
que nos adormeça,
nem teia que nos enrede na absoluta lucidez
do último minuto.
Como queríamos lá estar, bem presos
nos fios de seda,
imóveis
resignados
carne-exposta,
a esperar o fim
do tiquetaquear estridente do relógio
e a culpar o sorriso diabólico da aranha.
É quando a noite se estende e nós voltamos a
inventá-la
que desafiamos o tempo.
Montamos os vários palcos do duelo
Que tal um toque vintage na decoração, madame?
arquitectamos as teias onde seremos as presas e,
pelo sim pelo não,
anestesiamo-nos ainda com um pouco mais de noite.
Por favor, mais dois dry martini, um para mim e outro para a senhora. Como é mesmo o seu nome?
Então somos só nós e ele.
A densa escuridão injecta-se nas veias como um sedativo,
e já poucos conseguem ver o movimento dos vultos.
Mais dois destes! Como que raio é que disseste
que te chamavas?
Ouve-se apenas: contidos gritos humanos,
o ranger de ponteiros
e um som agudo
de lâminas e guindastes.
Amanhecemos retalhados –
nós e o tempo –
entre o escuro das paredes nocturnas e
a claridade das janelas. Corpos mutilados e horas paradas.
Mas as horas logo voltam à vida
dos relógios que afinal nunca pararam
de contar;
só nós, consumida a noite,
ficamos desfeitos no palco
a refazer a topografia dos membros e do corpo
próprio.
Ainda hoje,
à mesma hora,
voltaremos a cortar os pulsos
porque a noite não nos adormecerá.
Boa noite… Não se quer sentar e oferecer-me uma bebida?
Helena Carvalho, in, a luz da noite, blogue da autora.
A invenção da noite
Inventamos a noite porque não há noite bastante
que nos adormeça,
nem teia que nos enrede na absoluta lucidez
do último minuto.
Como queríamos lá estar, bem presos
nos fios de seda,
imóveis
resignados
carne-exposta,
a esperar o fim
do tiquetaquear estridente do relógio
e a culpar o sorriso diabólico da aranha.
É quando a noite se estende e nós voltamos a
inventá-la
que desafiamos o tempo.
Montamos os vários palcos do duelo
Que tal um toque vintage na decoração, madame?
arquitectamos as teias onde seremos as presas e,
pelo sim pelo não,
anestesiamo-nos ainda com um pouco mais de noite.
Por favor, mais dois dry martini, um para mim e outro para a senhora. Como é mesmo o seu nome?
Então somos só nós e ele.
A densa escuridão injecta-se nas veias como um sedativo,
e já poucos conseguem ver o movimento dos vultos.
Mais dois destes! Como que raio é que disseste
que te chamavas?
Ouve-se apenas: contidos gritos humanos,
o ranger de ponteiros
e um som agudo
de lâminas e guindastes.
Amanhecemos retalhados –
nós e o tempo –
entre o escuro das paredes nocturnas e
a claridade das janelas. Corpos mutilados e horas paradas.
Mas as horas logo voltam à vida
dos relógios que afinal nunca pararam
de contar;
só nós, consumida a noite,
ficamos desfeitos no palco
a refazer a topografia dos membros e do corpo
próprio.
Ainda hoje,
à mesma hora,
voltaremos a cortar os pulsos
porque a noite não nos adormecerá.
Boa noite… Não se quer sentar e oferecer-me uma bebida?
Helena Carvalho, in, a luz da noite, blogue da autora.