Do Homo socraticus ao Homo low cost

22-03-2012
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Em matéria de direitos invioláveis, duas ordens jurídicas diferentes coabitam. É insustentável

Tenho o privilégio de morar a duas estações de metro do trabalho. Por isso, até sinto pouco os efeitos de uma greve. A verdade é que já foi há algum tempo que decidi trocar o percurso entre as estações do Rato e de Picoas por um passeio diário de 20 minutos, ir e vir. Um euro e vinte e cinco, a viagem de metro deixou de ser rentável. Até de carro sai mais barato. Transformei a crise numa oportunidade: poupo na carteira e ganho na saúde. Mas podia estar a sentir-me mais confortável com isso.

Todos sabemos que estamos a viver uma mudança de paradigma. Inspiram-me ideias como a do economista francês Serge Latouche, entrevistado esta semana no PÚBLICO, para quem que o "decrescimento sereno" é a saída para uma sociedade obcecada com o crescimento a todo o custo - uma proposta é redutora, como é costume nas boas provocações. Não sei se isto é uma utopia tola. Não sou economista, sou apenas alguém que vai a pé de casa para o trabalho. O problema é que, neste momento, estamos a "decrescer" à força e não com serenidade. Isso é desconfortável.

Os portugueses estão em trânsito entre o Homo socraticus e o Homo passus. Há quem diga que é uma transição rumo à virtude. O Homo socraticus era despesista, preguiçoso e irresponsável. O Homo passus quer-se contido, trabalhador e probo. Mas os dois têm mais em comum do que se pensa. Um gastava o dinheiro que não tinha e o outro poupa o dinheiro que não tem. Ambos convergem na mesma direcção. Do Homo socraticus ao Homo passus, caminhamos a passos largos rumo ao Homo low cost. A crise é isso. Alguém vislumbra a virtude?

Quer falemos de crescimento ou de "decrescimento" é importante saber quem é que cresce e quem é que encolhe. Os economistas gostam das percentagens, que relativizam as coisas, mas são absolutistas quanto aos rótulos. Estamos todos a ficar mais pobres (até os ricos). Mas nem toda a gente empobrece da mesma maneira.

O problema não é só económico. É mesmo muito pouco económico. O que se passa hoje é que a austeridade obrigou o Estado a "rasgar contratos", para usar uma expressão na moda, no que toca aos direitos adquiridos dos cidadãos. Subsídios, salários, pensões, alterações fiscais, tudo corre para o grande rio que um dia há-de pagar a dívida. Como explicar (ou aceitar) que, ao mesmo tempo que estes sacrifícios acontecem, haja tantas grandes empresas que se abstenham de abdicar dos seus direitos adquiridos nos seus acordos com o Estado? E que seja tão complicado ao Estado renegociar, já não digo rasgar, contratos no sector da energia ou nas parcerias público-privadas (PPP) quando ao mesmo tempo mexe nos direitos dos cidadãos sem pedir licença?

Escusemo-nos a demagogias. Será politicamente incorrecto dizê-lo, mas o discurso irredutível em torno dos "direitos adquiridos" é falacioso. As sociedades mudam, as condições de vida mudam. A demografia mudou, a globalização existe. É perigosa a cegueira que insiste em defender o statu quo como se o mundo fosse estático. Isto é uma coisa. Outra é admitir que estes direitos possam ser mexidos e, ao mesmo tempo, permitir que contratos e acordos blindados, quase sempre negociados em desfavor do Estado, sejam vistos como inalienáveis e invioláveis.

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A duplicidade que se instala a partir daqui é politicamente insustentável. A sociedade passou a estar dividida em duas ao nível dos direitos. Os direitos adquiridos são violáveis; os privilégios adquiridos, não. Duas ordens jurídicas diferentes passaram a coabitar, como se tivéssemos regressado a uma sociedade de ordens, onde a lei do mais forte confisca o direito. Podem dizer-me: tudo o que existe nas PPP, por exemplo, é rigorosamente legal e as regras não podem ser alteradas a meio do jogo... E é verdade. Mas o mesmo argumento é verdadeiro quanto ao respeito por direitos igualmente respaldados na lei, como, por exemplo, os subsídios de férias e de Natal. A discrepância, portanto, é evidente.

Haverá batalhões de juristas e advogados capazes de demonstrar que, do ponto de vista legal, estou a falar de mundos completamente diferentes. Mas o discurso da austeridade foi construído a partir de dois pressupostos: a necessidade e a equidade. E eles não estão a ser respeitados. Não pode haver uma regra para o lucro garantido que o sector privado obteve contratualmente junto do Estado e outra para uma sociedade que está a empobrecer à força. O Estado não pode ceder tudo por um lado e forçar tudo pelo outro.

A austeridade só faz sentido se conduzir a uma mudança sistémica e é inútil se os males que vieram do socratismo se transferirem, imutáveis, para o passismo. Não me importo de ir a pé para o trabalho, mas não vale a pena reiventarem o feudalismo. Low cost sim, ma non troppo.

Em matéria de direitos invioláveis, duas ordens jurídicas diferentes coabitam. É insustentável

Tenho o privilégio de morar a duas estações de metro do trabalho. Por isso, até sinto pouco os efeitos de uma greve. A verdade é que já foi há algum tempo que decidi trocar o percurso entre as estações do Rato e de Picoas por um passeio diário de 20 minutos, ir e vir. Um euro e vinte e cinco, a viagem de metro deixou de ser rentável. Até de carro sai mais barato. Transformei a crise numa oportunidade: poupo na carteira e ganho na saúde. Mas podia estar a sentir-me mais confortável com isso.

Todos sabemos que estamos a viver uma mudança de paradigma. Inspiram-me ideias como a do economista francês Serge Latouche, entrevistado esta semana no PÚBLICO, para quem que o "decrescimento sereno" é a saída para uma sociedade obcecada com o crescimento a todo o custo - uma proposta é redutora, como é costume nas boas provocações. Não sei se isto é uma utopia tola. Não sou economista, sou apenas alguém que vai a pé de casa para o trabalho. O problema é que, neste momento, estamos a "decrescer" à força e não com serenidade. Isso é desconfortável.

Os portugueses estão em trânsito entre o Homo socraticus e o Homo passus. Há quem diga que é uma transição rumo à virtude. O Homo socraticus era despesista, preguiçoso e irresponsável. O Homo passus quer-se contido, trabalhador e probo. Mas os dois têm mais em comum do que se pensa. Um gastava o dinheiro que não tinha e o outro poupa o dinheiro que não tem. Ambos convergem na mesma direcção. Do Homo socraticus ao Homo passus, caminhamos a passos largos rumo ao Homo low cost. A crise é isso. Alguém vislumbra a virtude?

Quer falemos de crescimento ou de "decrescimento" é importante saber quem é que cresce e quem é que encolhe. Os economistas gostam das percentagens, que relativizam as coisas, mas são absolutistas quanto aos rótulos. Estamos todos a ficar mais pobres (até os ricos). Mas nem toda a gente empobrece da mesma maneira.

O problema não é só económico. É mesmo muito pouco económico. O que se passa hoje é que a austeridade obrigou o Estado a "rasgar contratos", para usar uma expressão na moda, no que toca aos direitos adquiridos dos cidadãos. Subsídios, salários, pensões, alterações fiscais, tudo corre para o grande rio que um dia há-de pagar a dívida. Como explicar (ou aceitar) que, ao mesmo tempo que estes sacrifícios acontecem, haja tantas grandes empresas que se abstenham de abdicar dos seus direitos adquiridos nos seus acordos com o Estado? E que seja tão complicado ao Estado renegociar, já não digo rasgar, contratos no sector da energia ou nas parcerias público-privadas (PPP) quando ao mesmo tempo mexe nos direitos dos cidadãos sem pedir licença?

Escusemo-nos a demagogias. Será politicamente incorrecto dizê-lo, mas o discurso irredutível em torno dos "direitos adquiridos" é falacioso. As sociedades mudam, as condições de vida mudam. A demografia mudou, a globalização existe. É perigosa a cegueira que insiste em defender o statu quo como se o mundo fosse estático. Isto é uma coisa. Outra é admitir que estes direitos possam ser mexidos e, ao mesmo tempo, permitir que contratos e acordos blindados, quase sempre negociados em desfavor do Estado, sejam vistos como inalienáveis e invioláveis.

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A duplicidade que se instala a partir daqui é politicamente insustentável. A sociedade passou a estar dividida em duas ao nível dos direitos. Os direitos adquiridos são violáveis; os privilégios adquiridos, não. Duas ordens jurídicas diferentes passaram a coabitar, como se tivéssemos regressado a uma sociedade de ordens, onde a lei do mais forte confisca o direito. Podem dizer-me: tudo o que existe nas PPP, por exemplo, é rigorosamente legal e as regras não podem ser alteradas a meio do jogo... E é verdade. Mas o mesmo argumento é verdadeiro quanto ao respeito por direitos igualmente respaldados na lei, como, por exemplo, os subsídios de férias e de Natal. A discrepância, portanto, é evidente.

Haverá batalhões de juristas e advogados capazes de demonstrar que, do ponto de vista legal, estou a falar de mundos completamente diferentes. Mas o discurso da austeridade foi construído a partir de dois pressupostos: a necessidade e a equidade. E eles não estão a ser respeitados. Não pode haver uma regra para o lucro garantido que o sector privado obteve contratualmente junto do Estado e outra para uma sociedade que está a empobrecer à força. O Estado não pode ceder tudo por um lado e forçar tudo pelo outro.

A austeridade só faz sentido se conduzir a uma mudança sistémica e é inútil se os males que vieram do socratismo se transferirem, imutáveis, para o passismo. Não me importo de ir a pé para o trabalho, mas não vale a pena reiventarem o feudalismo. Low cost sim, ma non troppo.

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