Câmara Corporativa: A vírgula

03-07-2011
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• Rui Tavares, O diabo está, nos detalhes (no Público de hoje): ‘(…) José Sócrates foi, já se sabe, dar uma palestra sobre energias renováveis à Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Exprimiu-se lá num inglês alquebrado, que ele próprio descreveu no começo da sua fala, como "mau inglês". O vídeo da palestra, que está disponível na Internet e foi difundido pelas televisões, expôs Sócrates à impiedade dos seus críticos. Pacheco Pereira opinou neste jornal sobre o assunto; no seu blogue iniciou um post da seguinte maneira: "A mediocridade de Sócrates quando tem que defrontar o exterior sem guião, é visível com todo o seu esplendor na conferência universitária em Columbia". O blogue 31 da sarrafada, da direita por uma vez voluntariamente humorística, fez uma compilação em vídeo das "calinadas" de Sócrates, legendando-as com cuidados extremosos de professora do Instituto Britânico. O clip revoou imediatamente pela Internet e, na opinião de muita gente, expôs Sócrates ao ridículo.Não percebo porquê. O inglês de Sócrates é mau? Sim, bastante. No entanto, já ouvi pior. Uns quilómetros abaixo da Columbia, na City University of New York, o grande Ottavio di Camilo falava um inglês tão macarrónico que preferia, sempre que possível, falar com os seus alunos em espanhol. Se bem que italiano de nascimento e residente nos EUA há décadas, era especialista em Cervantes, no Lazarillo de Tormes e na Comedia "La Celestina". O seu delicioso inglês - híbrido de vendedor de chapéus de sol na Calábria e de gangster num episódio dos Sopranos - nunca o impediu de ser diretor de departamento nem um dos melhores professores na sua área. O inglês de Sócrates é mau; mas o meu inglês, num dia mau, talvez não seja melhor. E não é por isso que deixarei de o usar.A tolerância ao mau inglês é um dos elementos em que a sociedade norte-americana é superior, não tenho dúvida, a muitas europeias. Os americanos preferem ter aulas com um grande físico ou um grande filósofo a exigir que ele fale um inglês perfeito. Já os franceses, que no tempo em que a sua língua era grande não se incomodavam com as pronúncias de romenos como Tristan Tzara ou espanhóis como Picasso, tornaram-se hoje chatos, chatos e irritantes. Corrigem os estrangeiros a cada passo, mesmo que sejam eles mesmos incapazes de dizer uma palavra em português ou espanhol, qualquer delas uma língua mais falada no mundo. E isso faz da sociedade deles mais pobre, e da americana mais rica.(…)A opinião de Pacheco Pereira é, na verdade, das mais provincianas e atávicas inimigas da comunicação. Não haveria mal nisso, se ao menos não a tivesse escrito num português que está entre o miserável e o sofrível. Como se vê na frase acima, poderia ao menos aprender a usar as vírgulas.’


• Rui Tavares, O diabo está, nos detalhes (no Público de hoje): ‘(…) José Sócrates foi, já se sabe, dar uma palestra sobre energias renováveis à Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Exprimiu-se lá num inglês alquebrado, que ele próprio descreveu no começo da sua fala, como "mau inglês". O vídeo da palestra, que está disponível na Internet e foi difundido pelas televisões, expôs Sócrates à impiedade dos seus críticos. Pacheco Pereira opinou neste jornal sobre o assunto; no seu blogue iniciou um post da seguinte maneira: "A mediocridade de Sócrates quando tem que defrontar o exterior sem guião, é visível com todo o seu esplendor na conferência universitária em Columbia". O blogue 31 da sarrafada, da direita por uma vez voluntariamente humorística, fez uma compilação em vídeo das "calinadas" de Sócrates, legendando-as com cuidados extremosos de professora do Instituto Britânico. O clip revoou imediatamente pela Internet e, na opinião de muita gente, expôs Sócrates ao ridículo.Não percebo porquê. O inglês de Sócrates é mau? Sim, bastante. No entanto, já ouvi pior. Uns quilómetros abaixo da Columbia, na City University of New York, o grande Ottavio di Camilo falava um inglês tão macarrónico que preferia, sempre que possível, falar com os seus alunos em espanhol. Se bem que italiano de nascimento e residente nos EUA há décadas, era especialista em Cervantes, no Lazarillo de Tormes e na Comedia "La Celestina". O seu delicioso inglês - híbrido de vendedor de chapéus de sol na Calábria e de gangster num episódio dos Sopranos - nunca o impediu de ser diretor de departamento nem um dos melhores professores na sua área. O inglês de Sócrates é mau; mas o meu inglês, num dia mau, talvez não seja melhor. E não é por isso que deixarei de o usar.A tolerância ao mau inglês é um dos elementos em que a sociedade norte-americana é superior, não tenho dúvida, a muitas europeias. Os americanos preferem ter aulas com um grande físico ou um grande filósofo a exigir que ele fale um inglês perfeito. Já os franceses, que no tempo em que a sua língua era grande não se incomodavam com as pronúncias de romenos como Tristan Tzara ou espanhóis como Picasso, tornaram-se hoje chatos, chatos e irritantes. Corrigem os estrangeiros a cada passo, mesmo que sejam eles mesmos incapazes de dizer uma palavra em português ou espanhol, qualquer delas uma língua mais falada no mundo. E isso faz da sociedade deles mais pobre, e da americana mais rica.(…)A opinião de Pacheco Pereira é, na verdade, das mais provincianas e atávicas inimigas da comunicação. Não haveria mal nisso, se ao menos não a tivesse escrito num português que está entre o miserável e o sofrível. Como se vê na frase acima, poderia ao menos aprender a usar as vírgulas.’

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