Câmara Corporativa: “Ingerência”

05-07-2011
marcar artigo


Presumo sempre que Isabel Moreira (IM) está de boa fé e tem uma visão afinada sobre os direitos fundamentais. Foi por isso que fiquei surpreendido com a interpretação que faz do artigo 34.º, n.º 4, da Constituição da República. Norma que, segundo IM agora afirma, tem sido torturada por uns e outros. Na falta de procuração de Lomba, pela minha parte posso garantir que não sou nenhum torcionário de normas jurídicas…O ponto nevrálgico da argumentação de IM diz respeito, simplesmente, ao significado da palavra “ingerência”. IM pensa que a “ingerência” nas comunicações telefónicas se esgotou no acto da intercepção, autorizado por um juiz e praticado pela polícia. Mas é aí que a porca torce o rabo.Não tenho a pretensão de dar aulas de Teoria do Direito a uma jurista qualificada como IM. Porém, parece-me que, logo no plano estritamente literal, não tem razão. “Ingerência” significa intervenção, intromissão ou interferência e não creio, quod est demonstrandum, que essas expressões, pela sua letra, se referem só à intercepção de comunicações. Então a actividade de gravar as comunicações, de as transcrever, de as resumir, de as consultar, de as valorizar e de as utilizar como meio de prova não é uma “ingerência” nas comunicações? Porquê?O que me parece inteiramente descabido, aliás, é IM pretender que é preciso recorrer à analogia para qualificar como “ingerência” a utilização abusiva das escutas. A analogia, como IM bem sabe, pressupõe uma lacuna nos termos do artigo 10.º do Código Civil. Pressupõe, segundo o artigo 9.º do mesmo código, que a letra da lei é completamente insusceptível de regular o caso omisso. Ora, um dos significados possíveis da palavra “ingerência” abrange, sem dúvida, a utilização das escutas subsequente à intercepção. Assim, salvo o devido respeito, IM não tem razão.É claro que, quando a letra da lei é passível de várias interpretações, são outros elementos que devem ser considerados decisivos. Como todos sabemos, trata-se dos elementos histórico, sistemático e teleológico. Ora, todos estes elementos me parecem apontar para uma interpretação do termo “ingerência” que abranja a utilização das escutas. A complexidade das normas que prevêem direitos fundamentais, evocada por IM como argumento (?), só apontam para este entendimento.A “ingerência” é proibida na Constituição para garantir o direito à reserva da vida privada. Isso explica a génese e a inserção constitucional do artigo 34.º, n.º 4. Também convém articular sempre este artigo com o artigo 32.º, n.º 4, da Constituição, que obriga à intervenção de juiz no processo penal sempre que estiverem em causa direitos fundamentais. Quer dizer, no sistema da Constituição, as escutas (intercepção, gravação, transcrição e utilização) só são possíveis no âmbito do processo penal e desde que autorizadas por juízes. Este enquadramento é o único que garante a efectiva defesa do direito fundamental que o legislador constitucional quis acautelar.Perante um caso dessa gravidade, não posso deixar de saudar o espírito democrático e a profunda seriedade de Mota Amaral. É nestas situações que se distingue o trigo do joio. Enquanto Pacheco Pereira (que na sua arenga escrita no Público de ontem cobre o seu profundo desprezo pelos valores democráticos com o verniz da erudição grega) teve uma atitude, infelizmente, não surpreendente — foi faccioso, inquisitorial e estalinista —, Mota Amaral confirmou-se como um democrata que não olha a interesses de ocasião, nem faz jeitos a “companheiros”. Pedro Lomba bem poderia inspirar-se neste exemplo para evitar cair em pré-compreensões, ditadas pelos seus preconceitos políticos. Quanto a IM, sei que apenas está em causa, seguramente, aquilo que me atrevo a qualificar como uma má interpretação jurídica.


Presumo sempre que Isabel Moreira (IM) está de boa fé e tem uma visão afinada sobre os direitos fundamentais. Foi por isso que fiquei surpreendido com a interpretação que faz do artigo 34.º, n.º 4, da Constituição da República. Norma que, segundo IM agora afirma, tem sido torturada por uns e outros. Na falta de procuração de Lomba, pela minha parte posso garantir que não sou nenhum torcionário de normas jurídicas…O ponto nevrálgico da argumentação de IM diz respeito, simplesmente, ao significado da palavra “ingerência”. IM pensa que a “ingerência” nas comunicações telefónicas se esgotou no acto da intercepção, autorizado por um juiz e praticado pela polícia. Mas é aí que a porca torce o rabo.Não tenho a pretensão de dar aulas de Teoria do Direito a uma jurista qualificada como IM. Porém, parece-me que, logo no plano estritamente literal, não tem razão. “Ingerência” significa intervenção, intromissão ou interferência e não creio, quod est demonstrandum, que essas expressões, pela sua letra, se referem só à intercepção de comunicações. Então a actividade de gravar as comunicações, de as transcrever, de as resumir, de as consultar, de as valorizar e de as utilizar como meio de prova não é uma “ingerência” nas comunicações? Porquê?O que me parece inteiramente descabido, aliás, é IM pretender que é preciso recorrer à analogia para qualificar como “ingerência” a utilização abusiva das escutas. A analogia, como IM bem sabe, pressupõe uma lacuna nos termos do artigo 10.º do Código Civil. Pressupõe, segundo o artigo 9.º do mesmo código, que a letra da lei é completamente insusceptível de regular o caso omisso. Ora, um dos significados possíveis da palavra “ingerência” abrange, sem dúvida, a utilização das escutas subsequente à intercepção. Assim, salvo o devido respeito, IM não tem razão.É claro que, quando a letra da lei é passível de várias interpretações, são outros elementos que devem ser considerados decisivos. Como todos sabemos, trata-se dos elementos histórico, sistemático e teleológico. Ora, todos estes elementos me parecem apontar para uma interpretação do termo “ingerência” que abranja a utilização das escutas. A complexidade das normas que prevêem direitos fundamentais, evocada por IM como argumento (?), só apontam para este entendimento.A “ingerência” é proibida na Constituição para garantir o direito à reserva da vida privada. Isso explica a génese e a inserção constitucional do artigo 34.º, n.º 4. Também convém articular sempre este artigo com o artigo 32.º, n.º 4, da Constituição, que obriga à intervenção de juiz no processo penal sempre que estiverem em causa direitos fundamentais. Quer dizer, no sistema da Constituição, as escutas (intercepção, gravação, transcrição e utilização) só são possíveis no âmbito do processo penal e desde que autorizadas por juízes. Este enquadramento é o único que garante a efectiva defesa do direito fundamental que o legislador constitucional quis acautelar.Perante um caso dessa gravidade, não posso deixar de saudar o espírito democrático e a profunda seriedade de Mota Amaral. É nestas situações que se distingue o trigo do joio. Enquanto Pacheco Pereira (que na sua arenga escrita no Público de ontem cobre o seu profundo desprezo pelos valores democráticos com o verniz da erudição grega) teve uma atitude, infelizmente, não surpreendente — foi faccioso, inquisitorial e estalinista —, Mota Amaral confirmou-se como um democrata que não olha a interesses de ocasião, nem faz jeitos a “companheiros”. Pedro Lomba bem poderia inspirar-se neste exemplo para evitar cair em pré-compreensões, ditadas pelos seus preconceitos políticos. Quanto a IM, sei que apenas está em causa, seguramente, aquilo que me atrevo a qualificar como uma má interpretação jurídica.

marcar artigo