"O ministro Miguel Relvas deve ter-se enganado"

21-03-2012
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Segunda-feira à noite, o ministro dos Assuntos Parlamentares deixou cair uma bomba. Disse que as autarquias devem 12 mil milhões de euros. Ou são 8 mil milhões, como dissera em Janeiro? Ontem, os autarcas passaram o dia a fazer contas

Miguel Relvas pôs ontem presidentes de câmara de todo o país num alvoroço - e a fazer contas. Na véspera à noite o ministro dos Assuntos Parlamentares disse que as câmaras municipais devem 12 mil milhões de euros - mais 50% do que dissera em Janeiro - e o novo valor caiu como uma bomba.

Presidentes de câmara e responsáveis ouvidos pelo PÚBLICO rejeitam que a dívida possa ser tão alta e pedem explicações ao ministro que tutela as autarquias.

Miguel Relvas não quis falar sobre o assunto. Já a ANMP passou o dia a conferir com a empresa de consultoria Delloite os mapas das dívidas das autarquias e o secretário-geral Artur Trindade disse ao PÚBLICO que "a dívida de médio e longo prazo não pode ser diferente daquela que foi declarada", porque, sublinhou, "as câmaras não podem fazer empréstimos". "O ministro deve ter-se enganado. Há um lapso de informação, não sei de quem", disse Artur Trindade, revelando que "o valor das dívidas será conhecido ao cêntimo no final desta semana". Trindade empenhou-se, aliás, em suavizar uma ambígua declaração do presidente da ANMP, Fernando Ruas, à Lusa: "Admito [que o valor seja os 12 mil milhões], como admito o contrário, que seja menor."

À procura de respostas sobre o valor real, o vice-presidente da ANMP, António José Ganhão, avança com uma possibilidade: "O ministro somou aos 7,8 mil milhões de dívidas de médio e longo prazo, que é o valor contabilizado até ao final do ano passado pela DGAL [Direcção-Geral das Autarquias Locais], os 3 mil milhões de dívida de curto prazo, mas mesmo assim não se atinge aquele montante".

Sem querer pôr em causa o ministro, o também presidente da Câmara de Benavente desafia Miguel Relvas a mostrar as suas contas. "Admito que possa haver algumas facturas debaixo do tapete, mas isso são dívidas a fornecedores, de curto prazo, porque as de médio e de longo prazo estão contratualizadas com a banca e não podem ser escondidas", diz Ganhão, que acredita ter havido "um erro de informação" por parte do ministro.

A soma das "dívidas de médio e longo prazo das 308 câmaras municipais é igual à dívida da Madeira", lembra o professor universitário António Rodrigues, do PS, que preside à Câmara de Torres Novas. Rodrigues não tem "dúvidas nenhumas" de que o ministro se enganou. "Sou técnico oficial de contas, para além de ser presidente de câmara, e sei o que estou a dizer. Há um equívoco, toda a gente tem direito a cometer um erro."

A diferença entre os cerca de 8 mil milhões da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) e os 12 mil milhões agora revelados por Miguel Relvas pode estar na inclusão nas contas do endividamento das empresas municipais e no aumento de atrasos no pagamento durante o último ano.

De acordo com a Direcção-Geral das Autarquias Locais, a dívida acumulada pelos municípios é de 7,8 mil milhões. Este número está próximo do publicado no Anuário Financeiro dos Municípios Portugueses (publicação da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas) que estima para o final de 2010 uma dívida bruta das autarquias de 8,2 mil milhões.

Mas neste número não estão incluídas as dívidas do sector empresarial municipal, que ultrapassavam em 2010, de acordo com o mesmo anuário, os 2 mil milhões. O montante total de dívidas da administração local sobe assim para os 10,3 mil milhões, um número que já fica mais próximo daquele que é anunciado por Relvas.

Na segunda-feira à noite, o ministro não deu detalhes sobre qual o tipo de dívida que considerou nas suas contas, e apenas informou ter incluído no cálculo o sector empresarial autárquico.

Fica assim ainda por esclarecer uma diferença de 1,7 mil milhões de euros entre os dois cálculos. João Rodrigues, professor da Universidade do Minho que coordenou a realização do Anuário Financeiro dos Municípios Portugueses, assinala que os números aí apresentados foram o resultado de uma "verificação autarquia a autarquia". "Não tenho dúvidas de que é aquele o valor", diz. No entanto, relembra que os dados são referentes a Dezembro de 2010. "É provável que as autarquias, sem poderem recorrer a empréstimos bancários, tenham feito disparar a dívida de curto prazo a fornecedores", explica.

A dívida de curto prazo calculada no anuário ascendia a 3155 milhões de euros no final de 2010, mas inclui todas as facturas por pagar, mesmo que estas ainda não tenham visto o seu prazo de pagamento expirar. Relvas revelou que a dívida de curto prazo está nos 3 mil milhões de euros, mas não deu indicações sobre qual o tipo de dívida que está a considerar. A dívida das autarquias, considerando o valor de 12 mil milhões, representa 6,5% da dívida pública portuguesa reportada às autoridades europeias, um valor que está perto dos 183 mil milhões de euros.

Raízes da acumulação

Os autarcas, que não querem ser vistos como "bodes expiatórios" da crise, assinalam que as dívidas dos municípios são o resultado do investimento feito ao longo de muitos anos, mas não só. Mário de Almeida, presidente do Conselho Geral da ANMP, explica que a acumulação das dívidas tem muito a ver com a quebra de receitas, por causa da estagnação da economia, dos cortes nas transferências do Orçamento do Estado e de uma outra situação: algumas competências passaram da administração central para os municípios, como o transporte e as refeições de alunos e o apoio social.

Fernando Ruivo, do Observatório dos Poderes Locais da Universidade de Coimbra, lembra que "o poder local português sempre foi muito voluntarista, importando competências que nem lhe eram atribuídas." Uma característica que prevalece. "Esta tendência mantém-se. Umas vezes investe-se bem, outras mal. Não havendo controlo financeiro, os municípios tendem a endividar-se", diz o especialista, que chama a atenção para as câmaras "à beira da falência". "Fala-se em 37, mas eu acho que são mais."

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Já Carlos Pinto, director de finanças da Câmara de Gaia, uma das mais endividadas, garante que o município não está a acumular dívidas, mas "a reduzir dívida de forma significativa" (menos 25,4 milhões em 2011, para uma dívida actual de 171 milhões). "Dois terços da nossa dívida dizem respeito à construção de habitação social, que o Governo promoveu nas décadas de 1990 e 2000", explica.

Élio Maia, que preside à Câmara de Aveiro, também uma das mais endividadas, recorda que, quando chegou à presidência, em 2006, pediu uma auditoria que detectou uma dívida de 280 milhões. Assegura que iniciou, desde então, um processo de controlo do passivo que, diz, é agora "inferior a 180 milhões de euros". "Reduzimos porque não fizemos obra e, além disso, poupámos dinheiro."

Como é que se resolve o problema? Fernando Ruivo responde que "tem que haver cortes, o investimento tem que ser muito bem estudado e tem que haver planos de pagamento a médio e longo prazo." O especialista propõe "controlo orçamental" e uma "colaboração muito grande entre poder central e local". com Aníbal Rodrigues e Sérgio Aníbal

Segunda-feira à noite, o ministro dos Assuntos Parlamentares deixou cair uma bomba. Disse que as autarquias devem 12 mil milhões de euros. Ou são 8 mil milhões, como dissera em Janeiro? Ontem, os autarcas passaram o dia a fazer contas

Miguel Relvas pôs ontem presidentes de câmara de todo o país num alvoroço - e a fazer contas. Na véspera à noite o ministro dos Assuntos Parlamentares disse que as câmaras municipais devem 12 mil milhões de euros - mais 50% do que dissera em Janeiro - e o novo valor caiu como uma bomba.

Presidentes de câmara e responsáveis ouvidos pelo PÚBLICO rejeitam que a dívida possa ser tão alta e pedem explicações ao ministro que tutela as autarquias.

Miguel Relvas não quis falar sobre o assunto. Já a ANMP passou o dia a conferir com a empresa de consultoria Delloite os mapas das dívidas das autarquias e o secretário-geral Artur Trindade disse ao PÚBLICO que "a dívida de médio e longo prazo não pode ser diferente daquela que foi declarada", porque, sublinhou, "as câmaras não podem fazer empréstimos". "O ministro deve ter-se enganado. Há um lapso de informação, não sei de quem", disse Artur Trindade, revelando que "o valor das dívidas será conhecido ao cêntimo no final desta semana". Trindade empenhou-se, aliás, em suavizar uma ambígua declaração do presidente da ANMP, Fernando Ruas, à Lusa: "Admito [que o valor seja os 12 mil milhões], como admito o contrário, que seja menor."

À procura de respostas sobre o valor real, o vice-presidente da ANMP, António José Ganhão, avança com uma possibilidade: "O ministro somou aos 7,8 mil milhões de dívidas de médio e longo prazo, que é o valor contabilizado até ao final do ano passado pela DGAL [Direcção-Geral das Autarquias Locais], os 3 mil milhões de dívida de curto prazo, mas mesmo assim não se atinge aquele montante".

Sem querer pôr em causa o ministro, o também presidente da Câmara de Benavente desafia Miguel Relvas a mostrar as suas contas. "Admito que possa haver algumas facturas debaixo do tapete, mas isso são dívidas a fornecedores, de curto prazo, porque as de médio e de longo prazo estão contratualizadas com a banca e não podem ser escondidas", diz Ganhão, que acredita ter havido "um erro de informação" por parte do ministro.

A soma das "dívidas de médio e longo prazo das 308 câmaras municipais é igual à dívida da Madeira", lembra o professor universitário António Rodrigues, do PS, que preside à Câmara de Torres Novas. Rodrigues não tem "dúvidas nenhumas" de que o ministro se enganou. "Sou técnico oficial de contas, para além de ser presidente de câmara, e sei o que estou a dizer. Há um equívoco, toda a gente tem direito a cometer um erro."

A diferença entre os cerca de 8 mil milhões da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) e os 12 mil milhões agora revelados por Miguel Relvas pode estar na inclusão nas contas do endividamento das empresas municipais e no aumento de atrasos no pagamento durante o último ano.

De acordo com a Direcção-Geral das Autarquias Locais, a dívida acumulada pelos municípios é de 7,8 mil milhões. Este número está próximo do publicado no Anuário Financeiro dos Municípios Portugueses (publicação da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas) que estima para o final de 2010 uma dívida bruta das autarquias de 8,2 mil milhões.

Mas neste número não estão incluídas as dívidas do sector empresarial municipal, que ultrapassavam em 2010, de acordo com o mesmo anuário, os 2 mil milhões. O montante total de dívidas da administração local sobe assim para os 10,3 mil milhões, um número que já fica mais próximo daquele que é anunciado por Relvas.

Na segunda-feira à noite, o ministro não deu detalhes sobre qual o tipo de dívida que considerou nas suas contas, e apenas informou ter incluído no cálculo o sector empresarial autárquico.

Fica assim ainda por esclarecer uma diferença de 1,7 mil milhões de euros entre os dois cálculos. João Rodrigues, professor da Universidade do Minho que coordenou a realização do Anuário Financeiro dos Municípios Portugueses, assinala que os números aí apresentados foram o resultado de uma "verificação autarquia a autarquia". "Não tenho dúvidas de que é aquele o valor", diz. No entanto, relembra que os dados são referentes a Dezembro de 2010. "É provável que as autarquias, sem poderem recorrer a empréstimos bancários, tenham feito disparar a dívida de curto prazo a fornecedores", explica.

A dívida de curto prazo calculada no anuário ascendia a 3155 milhões de euros no final de 2010, mas inclui todas as facturas por pagar, mesmo que estas ainda não tenham visto o seu prazo de pagamento expirar. Relvas revelou que a dívida de curto prazo está nos 3 mil milhões de euros, mas não deu indicações sobre qual o tipo de dívida que está a considerar. A dívida das autarquias, considerando o valor de 12 mil milhões, representa 6,5% da dívida pública portuguesa reportada às autoridades europeias, um valor que está perto dos 183 mil milhões de euros.

Raízes da acumulação

Os autarcas, que não querem ser vistos como "bodes expiatórios" da crise, assinalam que as dívidas dos municípios são o resultado do investimento feito ao longo de muitos anos, mas não só. Mário de Almeida, presidente do Conselho Geral da ANMP, explica que a acumulação das dívidas tem muito a ver com a quebra de receitas, por causa da estagnação da economia, dos cortes nas transferências do Orçamento do Estado e de uma outra situação: algumas competências passaram da administração central para os municípios, como o transporte e as refeições de alunos e o apoio social.

Fernando Ruivo, do Observatório dos Poderes Locais da Universidade de Coimbra, lembra que "o poder local português sempre foi muito voluntarista, importando competências que nem lhe eram atribuídas." Uma característica que prevalece. "Esta tendência mantém-se. Umas vezes investe-se bem, outras mal. Não havendo controlo financeiro, os municípios tendem a endividar-se", diz o especialista, que chama a atenção para as câmaras "à beira da falência". "Fala-se em 37, mas eu acho que são mais."

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Já Carlos Pinto, director de finanças da Câmara de Gaia, uma das mais endividadas, garante que o município não está a acumular dívidas, mas "a reduzir dívida de forma significativa" (menos 25,4 milhões em 2011, para uma dívida actual de 171 milhões). "Dois terços da nossa dívida dizem respeito à construção de habitação social, que o Governo promoveu nas décadas de 1990 e 2000", explica.

Élio Maia, que preside à Câmara de Aveiro, também uma das mais endividadas, recorda que, quando chegou à presidência, em 2006, pediu uma auditoria que detectou uma dívida de 280 milhões. Assegura que iniciou, desde então, um processo de controlo do passivo que, diz, é agora "inferior a 180 milhões de euros". "Reduzimos porque não fizemos obra e, além disso, poupámos dinheiro."

Como é que se resolve o problema? Fernando Ruivo responde que "tem que haver cortes, o investimento tem que ser muito bem estudado e tem que haver planos de pagamento a médio e longo prazo." O especialista propõe "controlo orçamental" e uma "colaboração muito grande entre poder central e local". com Aníbal Rodrigues e Sérgio Aníbal

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