ambio: Desafinado

05-07-2011
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Falemos então da inquestionável idoneidade dos heróis.O meu primeiro contacto com Luís Palma foi tão indirecto que nem eu nem ele soubemos que era o nosso primeiro contacto: lembro-me, eu que tenho péssima memória, do cartaz da famosa campanha "Salvemos o lince e a serra da Malcata" que estava no bar do palácio da Inquisição de Évora, em cuja sala de actos eu tinha aulas (reproduzo no fim o cartaz fazendo notar como eram diferentes os tempos em Portugal, quando campanhas deste tipo tinham entre os seus promotores, uma ONG, uma faculdade e uma Direcção Geral do Estado com competências directas no assunto).Esta campanha fez de Luís Palma, justamente, um herói da conservação em Portugal.Mais tarde tive de lidar com a discussão sobre o que tinha acontecido ao único lince capturado em Portugal para fins científicos. Não sei, porque ouvi directamente as duas versões de pessoas presentes que me merecem consideração, se o bicho morreu ou não, nem essa é questão principal porque essa é sempre uma probabilidade quando se manipulam animais, mesmo quando não existem erros, que são outra possibilidade. Não é pois nesse aspecto que a questão se põe. As diferentes versões do que se passou são coincidentes até um momento específico: houve uma segunda anestesia ao lince. Ora esta segunda anestesia é omissa em todos os relatos oficiais do que se passou, incluindo, se a memória não me falha, num artigo científico sobre o assunto que me lembro de ter lido. Que técnicos muito novos acabados de sair da escola cometam o erro de manipular a informação por medo ou inconsciência, face à tensão instalada e à possibilidade de terem cometido um erro importante cujo conhecimento poderia ter consequências para a conservação do lince nos anos seguintes, eu percebo. Mas tenho dificuldade em manter inquestionável a idoneidade de todos e cada um dos envolvidos. Não quer dizer que não existe idoneidade e muito menos que este facto diminua o estatuto merecido de herói, mas que é razoável questionar, tenho poucas dúvidas.Mais tarde, ou pela mesma altura em que tive de me debruçar sobre esta história que já na altura era antiga, andava eu pelo país a dar a cara pela proposta de rede natura, primeira fase. Uma das coisas mais dificeis nessas discussões públicas, era sustentar a dimensão de algumas áreas da rede natura 2000, claramente influenciadas pela política de conservação do lince. Lembro-me particularmente de uma sessão em Monchique, com o salão dos bombeiros a abarrotar de gente, com transmissão do debate pela Rádio Fóia, em que Carlos Tuta (cuja franqueza sempre apreciei e por quem tenho consideração), na altura Presidente da Câmara, inicia a sessão com um agressivo ataque à rede natura e ao ICNB na altura representado por mim, mais tarde uma vergonhosa intervenção do então presidente da CCDR e, com a notável excepção de Miguel Freitas, a representar a Direcção Regional de Agricultura, um ataque permanente de toda a gente e sem a menor rede de quem poderia, se quisesse, explicar que aquela proposta tinha bases técnicas explicáveis (penso que nunca agradeci a Miguel Freitas, convenientemente, essa intervenção, calma, sensata sem deixar de ser crítica no que achava que tinha razão, mas sobretudo atenta à profunda e injusta solidão da minha posição naquele momento). Apenas Humberto Rosa (retribuo com a minha solidariedade agora, que calculo que ser Secretário de Estado do Ambiente deste Primeiro-Ministro seja tortura que não se deseja ao pior inimigo) e Mário Baptista Coelho, respectivamente assessores do Primeiro Ministro e do Presidente da República de então, escreveram um artigo conjunto a defender a rede natura, sendo o silêncio dos investigadores ligados à conservação, e em especial dos que tinham influenciado a proposta em discussão, sepulcral. Não era a sua obrigação, claro, mas que isso me permite questionar a idoneidade das pessoas que só fazem intervenções públicas quando é relativamente fácil e fica bem, lá isso permite.Mais ou menos por essa altura tive de decidir sobre o financiamento do projecto de conservação da águia pesqueira, liderado por Luis Palma. A decisão foi demorada e muito discutida. A pedra de toque da Presidência do ICNB na altura prendia-se com a discussão da relevância do projecto para a conservação da biodiversidade. A questão explica-se facilmente: havia uma população residual de águias pesqueiras que em vez de migrar nidificava em Portugal. Se fossem as mesmas águias, manter a curiosidade biológica não era prioritário. Se de facto houvesse diferença genética relevante entre as duas populações, a prioridade do projecto era muito maior. O que implicava que as populações dadoras de aguiotos tinham de ser populações residentes no Mediterrâneo (ou, eventualmente, Cabo Verde, que só mais tarde apareceu na equação). Todas as garantias foram dadas sobre diferenças genéticas (com pareceres de professores estrangeiros com nomes com certeza muito conhecidos, mas que eu desconheço), sobre a disponibilidade dos corsos para a cedência das aves e etc.. O financiamento foi desbloqueado (aliás depois de por coincidência o assunto ter ganho relevância política com várias notícias de jornal sobre o assunto, com o apoio da LPN), o dinheiro foi gasto e ainda hoje não há nenhuma tentativa de fixação de aguiotos corsos. Uma segunda tentativa de financiar uma coisa semelhante foi tentada anos mais tarde (sim, também precedida de notícias de jornal, uma campanha da LPN e por aí fora, o dejá vu) mas agora com animais vindos da Escócia (a questão da diferenciação genética estava resolvida, mas ao contrário: não havia problema dos animais virem da Escócia porque era tudo igual do ponto de vista genético).Entretanto, depois da questão do lince ter começado a perder brilho, depois da águia pesqueira ter perdido brilho, poderia ainda falar de mais dois ou três detalhes do novo foco de investigação, mais uma vez uma espécie que motiva financiamento prioritário (embora até hoje eu não perceba porquê): a águia de bonelli.Gostaria apenas de lembrar outros justos heróis da conservação em Portugal (e são justos heróis pelo que fizeram, não estou a ser irónico): Carlos Guerra, com enorme apoio de ONGs e jornais pelo bom trabalho feito na gestão de Montezinho, cuja idoneidade também parece que deixou de ser inquestionável; Fernando Catarino, que ainda deve ao Estado o plano de ordenamento do Boquilobo ou o levantamento dos habitats da serra da Estrela que o Estado pagou e que nunca chegou a ver.A ideia de que a idoneidade dos heróis não deve ser questionada pelo facto de serem heróis, que beneficiou, por exemplo, Otelo Saraiva de Carvalho, é uma ideia socialmente perniciosa e é uma ideia que prejudica estes heróis: exactamente por serem heróis é que devemos ser mais rigorosos a questionar a sua idoneidade para os ajudar a serem dignos do seu estatuto.Doutra maneira corremos sempre o risco de perceber tarde demais como é triste saber que os heróis são feitos da mesma massa que nós.henrique pereira dos santos


Falemos então da inquestionável idoneidade dos heróis.O meu primeiro contacto com Luís Palma foi tão indirecto que nem eu nem ele soubemos que era o nosso primeiro contacto: lembro-me, eu que tenho péssima memória, do cartaz da famosa campanha "Salvemos o lince e a serra da Malcata" que estava no bar do palácio da Inquisição de Évora, em cuja sala de actos eu tinha aulas (reproduzo no fim o cartaz fazendo notar como eram diferentes os tempos em Portugal, quando campanhas deste tipo tinham entre os seus promotores, uma ONG, uma faculdade e uma Direcção Geral do Estado com competências directas no assunto).Esta campanha fez de Luís Palma, justamente, um herói da conservação em Portugal.Mais tarde tive de lidar com a discussão sobre o que tinha acontecido ao único lince capturado em Portugal para fins científicos. Não sei, porque ouvi directamente as duas versões de pessoas presentes que me merecem consideração, se o bicho morreu ou não, nem essa é questão principal porque essa é sempre uma probabilidade quando se manipulam animais, mesmo quando não existem erros, que são outra possibilidade. Não é pois nesse aspecto que a questão se põe. As diferentes versões do que se passou são coincidentes até um momento específico: houve uma segunda anestesia ao lince. Ora esta segunda anestesia é omissa em todos os relatos oficiais do que se passou, incluindo, se a memória não me falha, num artigo científico sobre o assunto que me lembro de ter lido. Que técnicos muito novos acabados de sair da escola cometam o erro de manipular a informação por medo ou inconsciência, face à tensão instalada e à possibilidade de terem cometido um erro importante cujo conhecimento poderia ter consequências para a conservação do lince nos anos seguintes, eu percebo. Mas tenho dificuldade em manter inquestionável a idoneidade de todos e cada um dos envolvidos. Não quer dizer que não existe idoneidade e muito menos que este facto diminua o estatuto merecido de herói, mas que é razoável questionar, tenho poucas dúvidas.Mais tarde, ou pela mesma altura em que tive de me debruçar sobre esta história que já na altura era antiga, andava eu pelo país a dar a cara pela proposta de rede natura, primeira fase. Uma das coisas mais dificeis nessas discussões públicas, era sustentar a dimensão de algumas áreas da rede natura 2000, claramente influenciadas pela política de conservação do lince. Lembro-me particularmente de uma sessão em Monchique, com o salão dos bombeiros a abarrotar de gente, com transmissão do debate pela Rádio Fóia, em que Carlos Tuta (cuja franqueza sempre apreciei e por quem tenho consideração), na altura Presidente da Câmara, inicia a sessão com um agressivo ataque à rede natura e ao ICNB na altura representado por mim, mais tarde uma vergonhosa intervenção do então presidente da CCDR e, com a notável excepção de Miguel Freitas, a representar a Direcção Regional de Agricultura, um ataque permanente de toda a gente e sem a menor rede de quem poderia, se quisesse, explicar que aquela proposta tinha bases técnicas explicáveis (penso que nunca agradeci a Miguel Freitas, convenientemente, essa intervenção, calma, sensata sem deixar de ser crítica no que achava que tinha razão, mas sobretudo atenta à profunda e injusta solidão da minha posição naquele momento). Apenas Humberto Rosa (retribuo com a minha solidariedade agora, que calculo que ser Secretário de Estado do Ambiente deste Primeiro-Ministro seja tortura que não se deseja ao pior inimigo) e Mário Baptista Coelho, respectivamente assessores do Primeiro Ministro e do Presidente da República de então, escreveram um artigo conjunto a defender a rede natura, sendo o silêncio dos investigadores ligados à conservação, e em especial dos que tinham influenciado a proposta em discussão, sepulcral. Não era a sua obrigação, claro, mas que isso me permite questionar a idoneidade das pessoas que só fazem intervenções públicas quando é relativamente fácil e fica bem, lá isso permite.Mais ou menos por essa altura tive de decidir sobre o financiamento do projecto de conservação da águia pesqueira, liderado por Luis Palma. A decisão foi demorada e muito discutida. A pedra de toque da Presidência do ICNB na altura prendia-se com a discussão da relevância do projecto para a conservação da biodiversidade. A questão explica-se facilmente: havia uma população residual de águias pesqueiras que em vez de migrar nidificava em Portugal. Se fossem as mesmas águias, manter a curiosidade biológica não era prioritário. Se de facto houvesse diferença genética relevante entre as duas populações, a prioridade do projecto era muito maior. O que implicava que as populações dadoras de aguiotos tinham de ser populações residentes no Mediterrâneo (ou, eventualmente, Cabo Verde, que só mais tarde apareceu na equação). Todas as garantias foram dadas sobre diferenças genéticas (com pareceres de professores estrangeiros com nomes com certeza muito conhecidos, mas que eu desconheço), sobre a disponibilidade dos corsos para a cedência das aves e etc.. O financiamento foi desbloqueado (aliás depois de por coincidência o assunto ter ganho relevância política com várias notícias de jornal sobre o assunto, com o apoio da LPN), o dinheiro foi gasto e ainda hoje não há nenhuma tentativa de fixação de aguiotos corsos. Uma segunda tentativa de financiar uma coisa semelhante foi tentada anos mais tarde (sim, também precedida de notícias de jornal, uma campanha da LPN e por aí fora, o dejá vu) mas agora com animais vindos da Escócia (a questão da diferenciação genética estava resolvida, mas ao contrário: não havia problema dos animais virem da Escócia porque era tudo igual do ponto de vista genético).Entretanto, depois da questão do lince ter começado a perder brilho, depois da águia pesqueira ter perdido brilho, poderia ainda falar de mais dois ou três detalhes do novo foco de investigação, mais uma vez uma espécie que motiva financiamento prioritário (embora até hoje eu não perceba porquê): a águia de bonelli.Gostaria apenas de lembrar outros justos heróis da conservação em Portugal (e são justos heróis pelo que fizeram, não estou a ser irónico): Carlos Guerra, com enorme apoio de ONGs e jornais pelo bom trabalho feito na gestão de Montezinho, cuja idoneidade também parece que deixou de ser inquestionável; Fernando Catarino, que ainda deve ao Estado o plano de ordenamento do Boquilobo ou o levantamento dos habitats da serra da Estrela que o Estado pagou e que nunca chegou a ver.A ideia de que a idoneidade dos heróis não deve ser questionada pelo facto de serem heróis, que beneficiou, por exemplo, Otelo Saraiva de Carvalho, é uma ideia socialmente perniciosa e é uma ideia que prejudica estes heróis: exactamente por serem heróis é que devemos ser mais rigorosos a questionar a sua idoneidade para os ajudar a serem dignos do seu estatuto.Doutra maneira corremos sempre o risco de perceber tarde demais como é triste saber que os heróis são feitos da mesma massa que nós.henrique pereira dos santos

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