Bring out the gimp

17-09-2020
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Posto isto, vamos rotular o que se está a passar em Portugal: a extrema-direita entrou e o fascismo está a passar.

Quando uma testemunha vai depor a tribunal é-lhe pedido que descreva factos e não tanto que os qualifique. Não é relevante: “ele injuriou-me” mas sim “ele chamou-me vaca e ordinária” como não é relevante “ele tentou violar-me” mas sim “ele rasgou-me o vestido e obrigou-me a deitar no chão”. As palavras, por vezes as mais tortuosas, têm de ser ditas. E o que é difícil não é tanto a conclusão, o rótulo, mas sim a descrição de tudo o que permita lá chegar.

Quem já está convencido não precisa desta confirmação. Quem não está, e que provavelmente integra o extenso grupo dos moderados, também não passa a estar.

A extrema-direita pura e dura não é para aqui chamada. Não existe qualquer interesse em estabelecer diálogo ou interação. A propósito: reparem na dureza que empregam na linguagem, na violação sistemática da constituição e no cometimento de crimes em simples intervenções nas redes sociais. Pois é. Nada disto é bom sinal. Nem pode ser aceite. Mas está a passar.

O que poderá então interessar ser dito sobre a extrema-direita portuguesa? Comecemos por fazer um elogio: sabem mapear bem os possíveis eleitores. Se fossem DJ poderíamos dizer que têm uma boa leitura da pista. Como infelizmente são políticos vamos dizer que sabem observar e perceber onde é que os eleitores têm comichão. E depois vão lá coçar. Significa isto que têm soluções para a comichão? Não têm. Nem sequer qualquer interesse em resolvê-la. Coçar e manter a chaga ativa é o objetivo em si mesmo. Há aqui uma parte da comunidade maioritária que tem raiva de uma comunidade de ciganos? Boa, vamos lá. Não com qualquer propósito de resolver o conflito, integrar os dois grupos ou algo que se afigure como solução. Dizer simplesmente que a comunidade cigana não se adapta, que não tem razão e que é um problema. Confiná-la, se preciso for.

Manter a raiva viva.

A extrema-direita vive da raiva que alguns portugueses sentem, dos ressentimentos de cada um desses.

Quem acha que a classe política é toda igual, que são uns corruptos sem remédio;

Quem sente que existe uma elite intelectual que não tolera as suas reservas à evolução estonteante dos costumes, das questões de género, etc;

Quem considera que os drogados são uma categoria de pessoas;

Quem é pobre e acha que, se não fosse uma classe política inquinada, nunca o seria;

Quem acha que o que merecia mesmo é ser rico;

Um pequeno apanhado de grupos aptos à primeira fase do recrutamento. Trata-se de um recrutamento que dá uma satisfação imediata (não duradoura é certo) porque legitima a catarse da raiva, de todas as raivas: contra os políticos, os drogados, os negros, os ciganos, contra a própria pobreza.

Esta última é muito importante. A pobreza é o pior dos males e uma grande mãe para os restantes. É a esquerda que tem a ideologia e as propostas que querem acabar com as desigualdades sociais mas a esquerda não está a conseguir fazer chegar o toque da sua flauta a alguns ouvidos.

A esquerda não tem o mesmo talento que a extrema direita para fazer a leitura da pista. Mais, acredito que alguma esquerda não tem esse objetivo. Retomando a lógica de um DJ, a esquerda quer passar música boa, música escolhida. A extrema-direita está disposta a passar o “Despacito” a noite inteira. A distribuir gomas se for preciso.

Este combate não é justo e a grande injustiça não é certamente para a esquerda. Se for esse o caso, então as lamentações devem ir para a direita que oscila entre perder terreno ou ceder à fraqueza de se juntar a isto. Sim, a direita está a passar um mau bocado.

(E o isto tem muito que se lhe diga: André Ventura é um vendedor que poderia estar num stand de automóveis na Suécia, no inverno, a vender descapotáveis. Claro que há aqui uma qualidade mas, em política, é um defeito. A política sem integridade é o exercício mais perigoso que se pode fazer.)

O grande perigo deste combate é mesmo a destruição de uma democracia que custou a construir. É a separação dos portugueses, a sua polarização. Uma ferida que já existe e que demora a sarar.

Qual é então a solução para isto? Não a tenho e não creio que exista no imediato. Há aquilo que é óbvio e que sempre resultou: diminuir as desigualdades sociais, investir na educação, o culto da tolerância (sim, tem de ser) e desmascarar sem tréguas o logro que é esta extrema-direita que falta ao trabalho parlamentar, que viola à descarada os princípios que anuncia, que se diz contra o sistema mas tem um líder que é consultor de vistos gold, que dá guarida a nazis e criminosos, que não respeita a Constituição da República Portuguesa e que a quer mudar. Muito há a dizer sobre esta relação entre a lei constitucional, o Tribunal Constitucional e aquilo a que estamos a assistir. O tempo chegará.

Sim, espero que já se tenha desistido da ideia de que não falar disto é que é a solução, como as senhoras antigas que faziam de conta que o marido não chegava bêbado a casa e a cheirar a outros perfumes, espero que se perceba que aquele momento que antecipou grandes catástrofes políticas pode estar a chegar.

Sobre as desigualdades sociais, recordo uma coisa que Gonçalo Ribeiro Telles disse numa conferência há muitos anos a propósito do, para ele previsível, êxodo dos povos vindos da África subsariana em direcção à Europa em busca de condições de vida. Dizia ele: a Europa tem de ajudar estes povos para evitar que acabem por se atirar ao mar para cá chegarem. Ou ajuda-os ou terá de se barricar. Se não quer ajudar por razões altruístas, que o faça então por razões egoístas. O problema vai aparecer, o resultado será desumano.

Assim aconteceu.

A História repete-se. É sua característica. Se não forem resolvidas as questões de justiça social, todos os privilegiados que dela beneficiam correm um risco sério e, se assim for, justo: é que ninguém se aguenta na injustiça eternamente e a revolta assume formas com as quais é difícil lidar. Esta simpatia de alguns portugueses pela extrema-direita é raiva, medo e preconceito. O aproveitamento que a extrema-direita faz deles é inconstitucional, configura crime e é indesculpável.

Pode ser que agora, com a apresentação de Diogo Pacheco de Amorim, as coisas fiquem mais claras. Lembro-me aqui de uma cena do "Pulp Fiction": Butch (Bruce Willis), perseguido por Marseilus (Ving Rhames) entra em fuga numa loja de penhores. Ambos são sequestrados pelo dono da loja, Maynard (Duane Whitalker), e são levados para uma cave e depois, já com a ajuda do amigo polícia, Zed (Peter Greene), são ainda levados para outra sala. A situação afigura-se cada vez mais sinistra e inusitada e, já com Butch e Marseilus acorrentados e silenciados com uma bola vermelha na boca, o polícia dá a icónica ordem:

“Bring Out the Gimp”

O vendedor e tomador de penhores abriu a porta e uma criatura perversa e coberta por cabedal negro, que vivia numa caixa de madeira, provavelmente nunca avistada por alguém que estivesse vivo, entrou em cena.

Que entre na Assembleia da República Diogo Pacheco de Amorim. Que se mostre em todo o seu esplendor. Desta vez não seria o vendedor. Seria então o homem que pertenceu à rede armada de extrema-direita liderada pelo general António de Spínola (Movimento Democrático de Libertação de Portugal).

O vendedor poderia então ir vender carros para a corrida presidencial e ficar com mais tempo para negociar com o partido que já foi de Sá Carneiro, o partido que já teve inspiração de esquerda não marxista, que partiu da ideologia de Olof Palme, lá está, da Suécia.

Isto assim vai apertar. Pode é não ser grande ideia chamar a polícia.

Posto isto, vamos rotular o que se está a passar em Portugal: a extrema-direita entrou e o fascismo está a passar.

Quando uma testemunha vai depor a tribunal é-lhe pedido que descreva factos e não tanto que os qualifique. Não é relevante: “ele injuriou-me” mas sim “ele chamou-me vaca e ordinária” como não é relevante “ele tentou violar-me” mas sim “ele rasgou-me o vestido e obrigou-me a deitar no chão”. As palavras, por vezes as mais tortuosas, têm de ser ditas. E o que é difícil não é tanto a conclusão, o rótulo, mas sim a descrição de tudo o que permita lá chegar.

Quem já está convencido não precisa desta confirmação. Quem não está, e que provavelmente integra o extenso grupo dos moderados, também não passa a estar.

A extrema-direita pura e dura não é para aqui chamada. Não existe qualquer interesse em estabelecer diálogo ou interação. A propósito: reparem na dureza que empregam na linguagem, na violação sistemática da constituição e no cometimento de crimes em simples intervenções nas redes sociais. Pois é. Nada disto é bom sinal. Nem pode ser aceite. Mas está a passar.

O que poderá então interessar ser dito sobre a extrema-direita portuguesa? Comecemos por fazer um elogio: sabem mapear bem os possíveis eleitores. Se fossem DJ poderíamos dizer que têm uma boa leitura da pista. Como infelizmente são políticos vamos dizer que sabem observar e perceber onde é que os eleitores têm comichão. E depois vão lá coçar. Significa isto que têm soluções para a comichão? Não têm. Nem sequer qualquer interesse em resolvê-la. Coçar e manter a chaga ativa é o objetivo em si mesmo. Há aqui uma parte da comunidade maioritária que tem raiva de uma comunidade de ciganos? Boa, vamos lá. Não com qualquer propósito de resolver o conflito, integrar os dois grupos ou algo que se afigure como solução. Dizer simplesmente que a comunidade cigana não se adapta, que não tem razão e que é um problema. Confiná-la, se preciso for.

Manter a raiva viva.

A extrema-direita vive da raiva que alguns portugueses sentem, dos ressentimentos de cada um desses.

Quem acha que a classe política é toda igual, que são uns corruptos sem remédio;

Quem sente que existe uma elite intelectual que não tolera as suas reservas à evolução estonteante dos costumes, das questões de género, etc;

Quem considera que os drogados são uma categoria de pessoas;

Quem é pobre e acha que, se não fosse uma classe política inquinada, nunca o seria;

Quem acha que o que merecia mesmo é ser rico;

Um pequeno apanhado de grupos aptos à primeira fase do recrutamento. Trata-se de um recrutamento que dá uma satisfação imediata (não duradoura é certo) porque legitima a catarse da raiva, de todas as raivas: contra os políticos, os drogados, os negros, os ciganos, contra a própria pobreza.

Esta última é muito importante. A pobreza é o pior dos males e uma grande mãe para os restantes. É a esquerda que tem a ideologia e as propostas que querem acabar com as desigualdades sociais mas a esquerda não está a conseguir fazer chegar o toque da sua flauta a alguns ouvidos.

A esquerda não tem o mesmo talento que a extrema direita para fazer a leitura da pista. Mais, acredito que alguma esquerda não tem esse objetivo. Retomando a lógica de um DJ, a esquerda quer passar música boa, música escolhida. A extrema-direita está disposta a passar o “Despacito” a noite inteira. A distribuir gomas se for preciso.

Este combate não é justo e a grande injustiça não é certamente para a esquerda. Se for esse o caso, então as lamentações devem ir para a direita que oscila entre perder terreno ou ceder à fraqueza de se juntar a isto. Sim, a direita está a passar um mau bocado.

(E o isto tem muito que se lhe diga: André Ventura é um vendedor que poderia estar num stand de automóveis na Suécia, no inverno, a vender descapotáveis. Claro que há aqui uma qualidade mas, em política, é um defeito. A política sem integridade é o exercício mais perigoso que se pode fazer.)

O grande perigo deste combate é mesmo a destruição de uma democracia que custou a construir. É a separação dos portugueses, a sua polarização. Uma ferida que já existe e que demora a sarar.

Qual é então a solução para isto? Não a tenho e não creio que exista no imediato. Há aquilo que é óbvio e que sempre resultou: diminuir as desigualdades sociais, investir na educação, o culto da tolerância (sim, tem de ser) e desmascarar sem tréguas o logro que é esta extrema-direita que falta ao trabalho parlamentar, que viola à descarada os princípios que anuncia, que se diz contra o sistema mas tem um líder que é consultor de vistos gold, que dá guarida a nazis e criminosos, que não respeita a Constituição da República Portuguesa e que a quer mudar. Muito há a dizer sobre esta relação entre a lei constitucional, o Tribunal Constitucional e aquilo a que estamos a assistir. O tempo chegará.

Sim, espero que já se tenha desistido da ideia de que não falar disto é que é a solução, como as senhoras antigas que faziam de conta que o marido não chegava bêbado a casa e a cheirar a outros perfumes, espero que se perceba que aquele momento que antecipou grandes catástrofes políticas pode estar a chegar.

Sobre as desigualdades sociais, recordo uma coisa que Gonçalo Ribeiro Telles disse numa conferência há muitos anos a propósito do, para ele previsível, êxodo dos povos vindos da África subsariana em direcção à Europa em busca de condições de vida. Dizia ele: a Europa tem de ajudar estes povos para evitar que acabem por se atirar ao mar para cá chegarem. Ou ajuda-os ou terá de se barricar. Se não quer ajudar por razões altruístas, que o faça então por razões egoístas. O problema vai aparecer, o resultado será desumano.

Assim aconteceu.

A História repete-se. É sua característica. Se não forem resolvidas as questões de justiça social, todos os privilegiados que dela beneficiam correm um risco sério e, se assim for, justo: é que ninguém se aguenta na injustiça eternamente e a revolta assume formas com as quais é difícil lidar. Esta simpatia de alguns portugueses pela extrema-direita é raiva, medo e preconceito. O aproveitamento que a extrema-direita faz deles é inconstitucional, configura crime e é indesculpável.

Pode ser que agora, com a apresentação de Diogo Pacheco de Amorim, as coisas fiquem mais claras. Lembro-me aqui de uma cena do "Pulp Fiction": Butch (Bruce Willis), perseguido por Marseilus (Ving Rhames) entra em fuga numa loja de penhores. Ambos são sequestrados pelo dono da loja, Maynard (Duane Whitalker), e são levados para uma cave e depois, já com a ajuda do amigo polícia, Zed (Peter Greene), são ainda levados para outra sala. A situação afigura-se cada vez mais sinistra e inusitada e, já com Butch e Marseilus acorrentados e silenciados com uma bola vermelha na boca, o polícia dá a icónica ordem:

“Bring Out the Gimp”

O vendedor e tomador de penhores abriu a porta e uma criatura perversa e coberta por cabedal negro, que vivia numa caixa de madeira, provavelmente nunca avistada por alguém que estivesse vivo, entrou em cena.

Que entre na Assembleia da República Diogo Pacheco de Amorim. Que se mostre em todo o seu esplendor. Desta vez não seria o vendedor. Seria então o homem que pertenceu à rede armada de extrema-direita liderada pelo general António de Spínola (Movimento Democrático de Libertação de Portugal).

O vendedor poderia então ir vender carros para a corrida presidencial e ficar com mais tempo para negociar com o partido que já foi de Sá Carneiro, o partido que já teve inspiração de esquerda não marxista, que partiu da ideologia de Olof Palme, lá está, da Suécia.

Isto assim vai apertar. Pode é não ser grande ideia chamar a polícia.

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