A trágica evidência*

06-07-2011
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A trágica evidência*

Durante algumas horas choveu e imediatamente passámos da gravíssima seca para o problema das cheias. Nos mesmos locais onde nos anos 60, 70, 80, 90 e 2000 as estradas ficaram cobertas de águas e as vidas correram risco tudo se repetiu, como de costume, nesses sítios do costume.Olhando para as vítimas e para a sua enorme vulnerabilidade quase se supõe que elas são sempre as mesmas. E que desde há mais de quarenta anos lá estão em Rio de Mouro, Belas, Frielas… para nos mostrarem como para lá da patine tecnológica continuamos a ser um país atrasado e pouco cuidado.Contudo, por contraste com as cheias do passado (aquelas que o Estado Novo tentou esconder e que os governos da democracia viveram como um falhanço de si mesmos) temos agora essa coisa espantosa que é o ministro do Ambiente e Ordenamento do Território, Nunes Correia de seu nome, ter assumido que as cheias não dizem respeito ao governo e muito menos ao seu ministério: «Estamos numa área de competência autárquica. Tem a ver com as infraestruturas urbanas. O problema do ordenamento do território já não é o mais sério em Portugal» – declarou, a propósito do sucedido este fim-de-semana, o ministro do Ambiente. Concretamente o que quer isto dizer? Nada. Rigorosamente nada. Para quem, fechado dentro dum carro, vê o nível das águas a subir naquela estrada provavelmente traçada sobre um leito de cheia deve ser absolutamente irrelevante que a sua vida esteja risco por responsabilidade autárquica ou governamental. O que o ministro fez, num dia em que se contavam vítimas e estragos, foi simplesmente dizer que o seu ministério lavava dali as mãos. E que a culpa é das autarquias. Não só isto não é completamente verdade como este não era o dia para fazer esse tipo de declarações. Por menos do que isto caiu Carlos Borrego. Nunes Correia dificilmente cairá. Porquê? Veja-se esta sucessão de primeiros-ministros e percebe-se: Cavaco Silva, Guterres, Durão Barroso, Santana Lopes e José Sócrates. Isto não é uma lista cronológica. É um plano inclinado em que, nome a nome, baixa a nossa exigência moral e, nome a nome, acabamos a aceitar como normal aquilo a que no governo anterior chamámos escândalo e no outro, um pouco mais atrás ainda, crime. Mas não contente com estas afirmações que são uma ofensa para as vítimas o ministro conclui “O problema do ordenamento do território já não é o mais sério em Portugal”? Qual será, para Nunes Correia, o problema mais grave em Portugal?

De facto o nosso problema mais grave não é o ordenamento do território mas sim a nossa tolerância perante a mediocridade, da qual Nunes Correia é um dos maiores beneficiários. Aliás se esse não fosse o nosso problema mais sério há muito que Nunes Correia não seria ministro. E até se pode dizer que a mediocridade se tornou uma espécie de seguro de vida ministerial. De alguma forma é desconcertante e sintomático que Correia de Campos tenha saído do Governo e que essa nulidade ambulante que dá pelo nome de Nunes Correia por lá se mantenha. Quem se lembra das patéticas declarações deste ministro sobre o novo aeroporto? Ninguém. Mas convém não esquecer que o “jamais” de Mário Lino a Alcochete se alicerçava em postulados ambientais devidamente corroborados por Nunes Correia. Mário Lino ficou desacreditado com todo este processo. Nunes Correia nem isso. Ninguém lhe liga. Quando é necessário ele põe o selo verde nos projectos. Quando também é necessário semeia umas aves aqui e ali para inviabilizar os projectos. O problema do ordenamento do território já não é o mais sério em Portugal – diz o ministro. Infelizmente o nosso maior problema é mesmo moral.

*PÚBLICO, 19 de Fevereiro

A trágica evidência*

Durante algumas horas choveu e imediatamente passámos da gravíssima seca para o problema das cheias. Nos mesmos locais onde nos anos 60, 70, 80, 90 e 2000 as estradas ficaram cobertas de águas e as vidas correram risco tudo se repetiu, como de costume, nesses sítios do costume.Olhando para as vítimas e para a sua enorme vulnerabilidade quase se supõe que elas são sempre as mesmas. E que desde há mais de quarenta anos lá estão em Rio de Mouro, Belas, Frielas… para nos mostrarem como para lá da patine tecnológica continuamos a ser um país atrasado e pouco cuidado.Contudo, por contraste com as cheias do passado (aquelas que o Estado Novo tentou esconder e que os governos da democracia viveram como um falhanço de si mesmos) temos agora essa coisa espantosa que é o ministro do Ambiente e Ordenamento do Território, Nunes Correia de seu nome, ter assumido que as cheias não dizem respeito ao governo e muito menos ao seu ministério: «Estamos numa área de competência autárquica. Tem a ver com as infraestruturas urbanas. O problema do ordenamento do território já não é o mais sério em Portugal» – declarou, a propósito do sucedido este fim-de-semana, o ministro do Ambiente. Concretamente o que quer isto dizer? Nada. Rigorosamente nada. Para quem, fechado dentro dum carro, vê o nível das águas a subir naquela estrada provavelmente traçada sobre um leito de cheia deve ser absolutamente irrelevante que a sua vida esteja risco por responsabilidade autárquica ou governamental. O que o ministro fez, num dia em que se contavam vítimas e estragos, foi simplesmente dizer que o seu ministério lavava dali as mãos. E que a culpa é das autarquias. Não só isto não é completamente verdade como este não era o dia para fazer esse tipo de declarações. Por menos do que isto caiu Carlos Borrego. Nunes Correia dificilmente cairá. Porquê? Veja-se esta sucessão de primeiros-ministros e percebe-se: Cavaco Silva, Guterres, Durão Barroso, Santana Lopes e José Sócrates. Isto não é uma lista cronológica. É um plano inclinado em que, nome a nome, baixa a nossa exigência moral e, nome a nome, acabamos a aceitar como normal aquilo a que no governo anterior chamámos escândalo e no outro, um pouco mais atrás ainda, crime. Mas não contente com estas afirmações que são uma ofensa para as vítimas o ministro conclui “O problema do ordenamento do território já não é o mais sério em Portugal”? Qual será, para Nunes Correia, o problema mais grave em Portugal?

De facto o nosso problema mais grave não é o ordenamento do território mas sim a nossa tolerância perante a mediocridade, da qual Nunes Correia é um dos maiores beneficiários. Aliás se esse não fosse o nosso problema mais sério há muito que Nunes Correia não seria ministro. E até se pode dizer que a mediocridade se tornou uma espécie de seguro de vida ministerial. De alguma forma é desconcertante e sintomático que Correia de Campos tenha saído do Governo e que essa nulidade ambulante que dá pelo nome de Nunes Correia por lá se mantenha. Quem se lembra das patéticas declarações deste ministro sobre o novo aeroporto? Ninguém. Mas convém não esquecer que o “jamais” de Mário Lino a Alcochete se alicerçava em postulados ambientais devidamente corroborados por Nunes Correia. Mário Lino ficou desacreditado com todo este processo. Nunes Correia nem isso. Ninguém lhe liga. Quando é necessário ele põe o selo verde nos projectos. Quando também é necessário semeia umas aves aqui e ali para inviabilizar os projectos. O problema do ordenamento do território já não é o mais sério em Portugal – diz o ministro. Infelizmente o nosso maior problema é mesmo moral.

*PÚBLICO, 19 de Fevereiro

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