Season das cartas

25-08-2015
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Season das cartas

Mãe,

Isto é tão difícil. Porque deixei que me metessem nisto? O outro até tem sorte, mesmo preso, por poder passar a vida a escrever cartas. Eu não posso. Eu tenho que aparecer para tentar resolver as asneiras que a minha equipa faz, muitas vezes piorando até a situação. Isto está tão difícil, mãe… Eu estou habituado a ser colocado nos lugares, não a conquistar a posição. Só me apetece desistir. Mas, sabes, queria tanto ser alguém, ser reconhecido, respeitado, adorado, até venerado… Porque não consigo escapar à sombra do outro? Como pode alguém tão ausente fazer-me tanto mal?

E estes ingratos que votam, eles não sabem que eu tenho razão? Eles não conseguem perceber que eu vou fazer deste país o oásis da Europa destruída pela gorda alemã? Eles não percebem que a vitória do Syriza foi uma esperança para que possamos seguir o mesmo caminho? Eles não vêem a espiral recessiva, o segundo resgate, a desgraça da emigração que obrigou tantas pessoas a emigrar, como o meu próprio pai, vítima do neoliberalismo que não providenciou a humanidade solidária para que não tivesse que vir parar a este canto desgraçado do mundo? Que destino é este? Até jornalistas, daqueles que não dignificam a profissão, me aparecem vindos de arbustos no parque de estacionamento do restaurante.

Mãe, eles estão a trair-me. Eles querem tacho e não param enquanto não o conseguirem. Eu não consigo criar 350 ministérios, dá muito nas vistas. Que faço, mãe? E 207 mil empregos? Que idiota se lembrou de querer parecer rigoroso com um número tão parvo? Dois-zero-sete… Noves-fora: nada… É este o meu destino? Que faço? E o maluco que convidei para aparecer para tentar dignificar a minha posição na academia dos artistas, sociólogos, filósofos e antropólogos? Agora quer ser presidente. Eu nunca conseguiria estar mais que 10 minutos a falar com ele, agora vou ter que o gramar a fingir que manda? Porque não fiz como o outro que decidiu taxar os discos dos computadores? Teria sido muito mais inteligente.

Isto foi tudo um grande erro, mãe. Eles vão destruir-me. Vou acabar numa autarquia daquelas esterqueiras para onde mandam os indesejados. Eu sou um urbano moderno, mãe. Eu vou engolir o cravo. Nunca o devia ter cortado. Eles convenceram-me e eu caí na esparrela. Não podes aparecer outra vez, mãe? Dar mais 35 entrevistas que me façam parecer humano? Preciso de ajuda.

Não me odeies, mãe. Dei um passo mais largo do que as pernas. Cheguei ao fundo da estrada, duas léguas de nada, não sei que força me mantém. Quero é voltar para os braços da minha mãe.

A.

Season das cartas

Mãe,

Isto é tão difícil. Porque deixei que me metessem nisto? O outro até tem sorte, mesmo preso, por poder passar a vida a escrever cartas. Eu não posso. Eu tenho que aparecer para tentar resolver as asneiras que a minha equipa faz, muitas vezes piorando até a situação. Isto está tão difícil, mãe… Eu estou habituado a ser colocado nos lugares, não a conquistar a posição. Só me apetece desistir. Mas, sabes, queria tanto ser alguém, ser reconhecido, respeitado, adorado, até venerado… Porque não consigo escapar à sombra do outro? Como pode alguém tão ausente fazer-me tanto mal?

E estes ingratos que votam, eles não sabem que eu tenho razão? Eles não conseguem perceber que eu vou fazer deste país o oásis da Europa destruída pela gorda alemã? Eles não percebem que a vitória do Syriza foi uma esperança para que possamos seguir o mesmo caminho? Eles não vêem a espiral recessiva, o segundo resgate, a desgraça da emigração que obrigou tantas pessoas a emigrar, como o meu próprio pai, vítima do neoliberalismo que não providenciou a humanidade solidária para que não tivesse que vir parar a este canto desgraçado do mundo? Que destino é este? Até jornalistas, daqueles que não dignificam a profissão, me aparecem vindos de arbustos no parque de estacionamento do restaurante.

Mãe, eles estão a trair-me. Eles querem tacho e não param enquanto não o conseguirem. Eu não consigo criar 350 ministérios, dá muito nas vistas. Que faço, mãe? E 207 mil empregos? Que idiota se lembrou de querer parecer rigoroso com um número tão parvo? Dois-zero-sete… Noves-fora: nada… É este o meu destino? Que faço? E o maluco que convidei para aparecer para tentar dignificar a minha posição na academia dos artistas, sociólogos, filósofos e antropólogos? Agora quer ser presidente. Eu nunca conseguiria estar mais que 10 minutos a falar com ele, agora vou ter que o gramar a fingir que manda? Porque não fiz como o outro que decidiu taxar os discos dos computadores? Teria sido muito mais inteligente.

Isto foi tudo um grande erro, mãe. Eles vão destruir-me. Vou acabar numa autarquia daquelas esterqueiras para onde mandam os indesejados. Eu sou um urbano moderno, mãe. Eu vou engolir o cravo. Nunca o devia ter cortado. Eles convenceram-me e eu caí na esparrela. Não podes aparecer outra vez, mãe? Dar mais 35 entrevistas que me façam parecer humano? Preciso de ajuda.

Não me odeies, mãe. Dei um passo mais largo do que as pernas. Cheguei ao fundo da estrada, duas léguas de nada, não sei que força me mantém. Quero é voltar para os braços da minha mãe.

A.

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