O fundo do poço

10-07-2011
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Esta semana, no I, numa entrevista aos vários “coordenadores”, não do Bloco de Esquerda, mas do Compromisso Portugal, Rui Ramos (um dos ditos “coordenadores”) diz a dada altura que “a situação está tão má” que até está “optimista”. É uma convicção muito partilhada: apesar de se reconhecer uma certa desconfiança dos portugueses em relação à mudança e um certo temor perante a dureza das reformas que se dizem ser necessárias, muita gente parece ser assaltada por um “pessimismo optimista”, pela ideia de que “isto” está tão mal que qualquer um percebe (e aceita) a necessidade de fazer alguma coisa, e que por isso, “será desta” que “os políticos” terão “coragem” de fazer as tais “reformas”.

É um sentimento que se percebe, mas que tenho alguma dificuldade em partilhar. Pela simples razão que eu próprio já o tive, há bastante tempo, e apesar das coisas terem estado “mal”, ainda terem ficado piores. Sempre que oiço alguém dizer o que Rui Ramos disse, lembro-me daquele jovem ingénuo (eu próprio) que, nos idos de 2002, achava que Guterres tinha deixado “este país” tão mal que Durão Barroso, um verdadeiro “salvador da pátria”, não poderia deixar de fazer as reformas de que o país precisava. Ora, foi o que se viu: Durão mais não fez do que buscar a reeleição, e quando viu que não a obteria, arranjou o confortável exílio de Bruxelas; depois vieram Santana e Sócrates, qual deles o pior, e o fundo do poço parecia cada vez mais longe.

Há uns anos, o Luciano Amaral, no DN, escreveu aquele que é um dos mais importantes artigos sobre a realidade actual da política portuguesa. Nele, o Luciano criticava, precisamente, a “teoria do fundo”, argumentando que era “perfeitamente possível” chegar ao fundo do dito poço e “continuar a cavá-lo”: se era verdade que o Reino Unido dos anos 70 “tinha atingido o fundo”, e “as reformas de Margaret Thatcher” fizeram com que o país regressasse “ao topo da lista dos países mais ricos da Europa”, há também o exemplo da Argentina, que com Perón, não saiu do fundo do poço em que caíra.

Como diz o Luciano, “a Argentina já foi dos países mais ricos do mundo. Mais rico do que a França, a Alemanha, a Suécia e, consequentemente, a maior parte dos países da Europa ocidental”. No entanto, “a crise dos mercados internacionais de 1914 a 1945 (I Guerra Mundial, crise dos anos 30 e II Guerra Mundial) afectou profundamente este estado de coisas, podendo dizer-se então que a Argentina tinha (à luz do seu passado) batido no fundo”. Em vez de “Thatcher” (ou seja, em vez de reformas), optou por “Perón” (ou, por outras palavras, “justicialismo” e demagogia): Perón “aumentou salários, desenvolveu a protecção social e criou uma relação orgânica com os sindicatos, apoios nos quais se respaldou para aplicar uma política semifascista, de que faziam parte certos planos económicos nacionalistas (incluindo vastos programas de investimento público), que fecharam a Argentina ao mercado mundial”. “Lentamente”, diz o Luciano, “a próspera Argentina de outrora desapareceu, dando lugar a um país do chamado Terceiro Mundo. Perón caiu em 1955, mas o “peronismo” continuou a ser uma espécie de ideologia nacional. O célebre coronel apanhou, portanto, o país no “fundo” e afundou-o um pouco mais. Os seus sucessores continuaram a obra. Actualmente, os argentinos são, coisa rara na História, mais pobres em termos absolutos do que em 1950″.

Como bem nota o Luciano, a “crise” e a sua gravidade não são garantia de que os portugueses aceitem a necessidade de “mudar”, ou pelo menos, que aceitem mudar para algo que lhes dê melhores condições de vida. Pelo contrário, pode levá-los a estarem dispostos a serem seduzidos pelas versões autóctones de Perón, que infelizmente nunca escasseiam.

Há, no entanto, uma hipótese que parece não ter ocorrido ao Luciano (ou pelo menos, que ele não menciona no artigo): a de a “crise” não ter qualquer influência na atitude dos portugueses, a de a “crise” não ser realmente entendida como uma crise, mas antes como um estado normal de atraso do país. Em 1978, Vasco Pulido Valente escreveu no Expresso um artigo (incluído no livro O País das Maravilhas) em que dizia que, “para algumas (muitas) pessoas”, a tal “crise” (já na altura se falava dela) parecia “apenas uma forma de normalidade, acentuadamente desagradável”. Não era novidade: entre 1807 e 1851, e 1903 e 1930, dizia Pulido Valente, a “crise” dificilmente poderia ser vista como uma “crise” (como um “momento grave”) e não como a “normalidade”, certamente pouco confortável mas não menos “normal” por isso.

Se virmos bem as coisas, será que os portugueses têm uma atitude diferente da dos homens de 1978, ou dos de 1807-1851 ou 1903-1930? Será que olham hoje realmente para a “crise” como uma “crise”? Portugal deixou há muito pouco tempo de ser um país verdadeiramente pobre. Há, por isso, uma “memória social” (perdoe-se o jargão) relativamente avivada da penúria, da fome, da miséria. Comparadas com a condição permamente da vasta maioria dos portugueses até há poucas décadas, as agruras desta “crise” são um verdadeiro paraíso, insuficientes para alarmar quem ainda tem a falta de comida como termo de comparação e avaliação da sua condição.

Ainda para mais, a grande maioria do eleitorado certamente se lembra da crise de 73, da do final dos anos 70, da dos anos 80. Um período de dificuldades económicas não é novidade para essa grande parte dos portugueses. E quanto aos eleitores mais novos, desde 2000 que vivem em “crise”, praticamente não se lembram de viver noutro estado que não o de “crise”, e portanto, vêem-na como algo de “normal”, não como algo que justifique uma mudança drástica. Pouca gente em Portugal sente que a estagnação (o destino inevitável do país se não se fizer “alguma coisa”) lhes fará perder o que quer que seja. Já as “reformas” aparecem como a ameaçadora possibilidade de muitos deles perderem alguns dos “benefícios” que o Estado vai fingindo que lhes dá. Entre a calma da estagnação (pouco assustadora se a compararmos com o passado recente do país) e a incerteza das reformas, muitos preferem a estagnação.

Os únicos que poderão perder alguma coisa se a “crise” continuar a ser “normal” (e a ser cada vez mais “normal”) são os que ganharam alguma coisa com a relativa prosperidade dos anos de Cavaco e Guterres. Infelizmente, essa prosperidade veio em grande parte do aumento do funcionalismo público, dos “fundos” europeus e da facilidade do endividamento, ou seja, do Estado e de coisas que ou acabaram de vez ou serão insustentáveis se continuarem. O que quer dizer que os únicos que poderiam ter alguma motivação para querer que a “crise” não se torne “normal”, têm, ao mesmo tempo, muitas razões para não quererem arriscar as “reformas”. É perfeitamente plausível que prefiram comer as poucas maçãs que ainda lhes restam antes que apodreçam, em vez de plantarem outra macieira para passarem a ter mais para comer. O facto de termos chegado ao “fundo do poço” não quer dizer que façamos tudo para voltar à superfície. Podemos optar por aproveitar o pouco que temos, antes de ficarmos com ainda menos. É uma opção pior, diz o caro leitor, e eu acho que o leitor tem razão. Mas nada nos garante que optemos pelas melhores soluções.

Esta semana, no I, numa entrevista aos vários “coordenadores”, não do Bloco de Esquerda, mas do Compromisso Portugal, Rui Ramos (um dos ditos “coordenadores”) diz a dada altura que “a situação está tão má” que até está “optimista”. É uma convicção muito partilhada: apesar de se reconhecer uma certa desconfiança dos portugueses em relação à mudança e um certo temor perante a dureza das reformas que se dizem ser necessárias, muita gente parece ser assaltada por um “pessimismo optimista”, pela ideia de que “isto” está tão mal que qualquer um percebe (e aceita) a necessidade de fazer alguma coisa, e que por isso, “será desta” que “os políticos” terão “coragem” de fazer as tais “reformas”.

É um sentimento que se percebe, mas que tenho alguma dificuldade em partilhar. Pela simples razão que eu próprio já o tive, há bastante tempo, e apesar das coisas terem estado “mal”, ainda terem ficado piores. Sempre que oiço alguém dizer o que Rui Ramos disse, lembro-me daquele jovem ingénuo (eu próprio) que, nos idos de 2002, achava que Guterres tinha deixado “este país” tão mal que Durão Barroso, um verdadeiro “salvador da pátria”, não poderia deixar de fazer as reformas de que o país precisava. Ora, foi o que se viu: Durão mais não fez do que buscar a reeleição, e quando viu que não a obteria, arranjou o confortável exílio de Bruxelas; depois vieram Santana e Sócrates, qual deles o pior, e o fundo do poço parecia cada vez mais longe.

Há uns anos, o Luciano Amaral, no DN, escreveu aquele que é um dos mais importantes artigos sobre a realidade actual da política portuguesa. Nele, o Luciano criticava, precisamente, a “teoria do fundo”, argumentando que era “perfeitamente possível” chegar ao fundo do dito poço e “continuar a cavá-lo”: se era verdade que o Reino Unido dos anos 70 “tinha atingido o fundo”, e “as reformas de Margaret Thatcher” fizeram com que o país regressasse “ao topo da lista dos países mais ricos da Europa”, há também o exemplo da Argentina, que com Perón, não saiu do fundo do poço em que caíra.

Como diz o Luciano, “a Argentina já foi dos países mais ricos do mundo. Mais rico do que a França, a Alemanha, a Suécia e, consequentemente, a maior parte dos países da Europa ocidental”. No entanto, “a crise dos mercados internacionais de 1914 a 1945 (I Guerra Mundial, crise dos anos 30 e II Guerra Mundial) afectou profundamente este estado de coisas, podendo dizer-se então que a Argentina tinha (à luz do seu passado) batido no fundo”. Em vez de “Thatcher” (ou seja, em vez de reformas), optou por “Perón” (ou, por outras palavras, “justicialismo” e demagogia): Perón “aumentou salários, desenvolveu a protecção social e criou uma relação orgânica com os sindicatos, apoios nos quais se respaldou para aplicar uma política semifascista, de que faziam parte certos planos económicos nacionalistas (incluindo vastos programas de investimento público), que fecharam a Argentina ao mercado mundial”. “Lentamente”, diz o Luciano, “a próspera Argentina de outrora desapareceu, dando lugar a um país do chamado Terceiro Mundo. Perón caiu em 1955, mas o “peronismo” continuou a ser uma espécie de ideologia nacional. O célebre coronel apanhou, portanto, o país no “fundo” e afundou-o um pouco mais. Os seus sucessores continuaram a obra. Actualmente, os argentinos são, coisa rara na História, mais pobres em termos absolutos do que em 1950″.

Como bem nota o Luciano, a “crise” e a sua gravidade não são garantia de que os portugueses aceitem a necessidade de “mudar”, ou pelo menos, que aceitem mudar para algo que lhes dê melhores condições de vida. Pelo contrário, pode levá-los a estarem dispostos a serem seduzidos pelas versões autóctones de Perón, que infelizmente nunca escasseiam.

Há, no entanto, uma hipótese que parece não ter ocorrido ao Luciano (ou pelo menos, que ele não menciona no artigo): a de a “crise” não ter qualquer influência na atitude dos portugueses, a de a “crise” não ser realmente entendida como uma crise, mas antes como um estado normal de atraso do país. Em 1978, Vasco Pulido Valente escreveu no Expresso um artigo (incluído no livro O País das Maravilhas) em que dizia que, “para algumas (muitas) pessoas”, a tal “crise” (já na altura se falava dela) parecia “apenas uma forma de normalidade, acentuadamente desagradável”. Não era novidade: entre 1807 e 1851, e 1903 e 1930, dizia Pulido Valente, a “crise” dificilmente poderia ser vista como uma “crise” (como um “momento grave”) e não como a “normalidade”, certamente pouco confortável mas não menos “normal” por isso.

Se virmos bem as coisas, será que os portugueses têm uma atitude diferente da dos homens de 1978, ou dos de 1807-1851 ou 1903-1930? Será que olham hoje realmente para a “crise” como uma “crise”? Portugal deixou há muito pouco tempo de ser um país verdadeiramente pobre. Há, por isso, uma “memória social” (perdoe-se o jargão) relativamente avivada da penúria, da fome, da miséria. Comparadas com a condição permamente da vasta maioria dos portugueses até há poucas décadas, as agruras desta “crise” são um verdadeiro paraíso, insuficientes para alarmar quem ainda tem a falta de comida como termo de comparação e avaliação da sua condição.

Ainda para mais, a grande maioria do eleitorado certamente se lembra da crise de 73, da do final dos anos 70, da dos anos 80. Um período de dificuldades económicas não é novidade para essa grande parte dos portugueses. E quanto aos eleitores mais novos, desde 2000 que vivem em “crise”, praticamente não se lembram de viver noutro estado que não o de “crise”, e portanto, vêem-na como algo de “normal”, não como algo que justifique uma mudança drástica. Pouca gente em Portugal sente que a estagnação (o destino inevitável do país se não se fizer “alguma coisa”) lhes fará perder o que quer que seja. Já as “reformas” aparecem como a ameaçadora possibilidade de muitos deles perderem alguns dos “benefícios” que o Estado vai fingindo que lhes dá. Entre a calma da estagnação (pouco assustadora se a compararmos com o passado recente do país) e a incerteza das reformas, muitos preferem a estagnação.

Os únicos que poderão perder alguma coisa se a “crise” continuar a ser “normal” (e a ser cada vez mais “normal”) são os que ganharam alguma coisa com a relativa prosperidade dos anos de Cavaco e Guterres. Infelizmente, essa prosperidade veio em grande parte do aumento do funcionalismo público, dos “fundos” europeus e da facilidade do endividamento, ou seja, do Estado e de coisas que ou acabaram de vez ou serão insustentáveis se continuarem. O que quer dizer que os únicos que poderiam ter alguma motivação para querer que a “crise” não se torne “normal”, têm, ao mesmo tempo, muitas razões para não quererem arriscar as “reformas”. É perfeitamente plausível que prefiram comer as poucas maçãs que ainda lhes restam antes que apodreçam, em vez de plantarem outra macieira para passarem a ter mais para comer. O facto de termos chegado ao “fundo do poço” não quer dizer que façamos tudo para voltar à superfície. Podemos optar por aproveitar o pouco que temos, antes de ficarmos com ainda menos. É uma opção pior, diz o caro leitor, e eu acho que o leitor tem razão. Mas nada nos garante que optemos pelas melhores soluções.

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