Luisa Schimdt

23-06-2011
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Pág. 2 de 3 « ... | 1 | 2 | 3 | ... » Ver 10, 20, 50 resultados por pág. Tempos que correm... Luisa Schimdt (www.expresso.pt) 9:00 Quarta feira, 4 de agosto de 2010 Sociologia. Entre as sequelas do 'climategate', os problemas sociais das economias emergentes e da Europa e os grandes interesses a adquirirem terra arável e água em países pobres, um congresso refletiu sobre um mundo em dificuldades. Os tempos que correm não estão para graças. O Congresso Mundial de Sociologia que decorreu este mês na Suécia deu um destaque indesmentível às questões ambientais, sobretudo às alterações climáticas, à sustentabilidade e aos processos de governança em tempos de crises uniformemente aceleradas. O mote foi logo abordado de início por Craig Calhoun, que passou o desfile das várias crises que se encavalitam e multiplicam e confluem na crise ambiental. O pior, todavia, é a persistência cega em negá-la. Uma cegueira que, como pudemos ouvir com espanto, não hesita em chegar ao crime. O célebre 'climategate' deslindou-se e passou, mas deixou marcas. Sabemos hoje que os cientistas da Universidade de East Anglia (UEA) estavam certos. O que não sabíamos era que os interesses fundamentalistas do gate chegaram ao ponto de ameaçar individualmente os cientistas e suas famílias. Soubemo-lo por narrativas impressionantes de Tim O'Riordan, da UEA, bem como de Riley Dunlap, para outros casos nos Estados Unidos. É assustador pensar na vulnerabilidade política do trabalho científico, mesmo nos contextos que julgaríamos mais lúcidos e mais livres. Sim, as condições sociais da produção do saber científico são-lhe decisivas a muitos títulos, como lembrou Steven Yearley, da Universidade de Edimburgo. E, acrescentaríamos, as condições éticas do trabalho jornalístico também. Por exemplo, factos enormes conseguem invisibilidades mágicas. Saskia Sassen, da Columbia University, alinhou uma coleção de factos monstruosos que têm deslizado discretamente para a realidade sem que a comunicação social tivesse dado pela sua dimensão. Lembro alguns, todos ligados à aquisição de extensões colossais de territórios por grandes interesses económicos, visando assegurar para si blocos de recursos essenciais: espaço, água e solo arável. No dia do apocalipse, salvam-se os condóminos destes resorts de sobrevivência; dos seus 'portões' para fora a humanidade sucumbe. A Coca-Cola adquiriu na América Latina, em Chiapas, duas grandes reservas montanhosas de água potável, um recurso cada vez mais escasso. Os Emirados Árabes compraram já vastas terras aráveis ao Sudão para assegurar o cultivo de cereais. Companhias indianas fizeram-no noutros países africanos. Empresas sauditas e de outros países árabes negociaram no Paquistão centenas de milhares de hectares para a produção de alimentos e, no pacote, os serviços de 100 mil soldados do Exército local para protegerem o corredor da sua exportação. Os chineses e várias companhias europeias têm adquirido territórios nos países africanos para produção de biodiesel. Há muitos interesses económicos a negar as alterações climáticas, mas, como vemos, há ainda mais a levá-las muito a sério e a tratar de reservar um 'salva-vidas'. Pelo sim e pelo não, e mesmo que isso signifique espoliar e deslocar as populações à força. A ciência climática pode ter as suas heroicas incertezas, mas as dimensões sociais e humanas dos problemas ambientais, essas, rodeiam-na e atravessam-na por todos os lados de forma cada vez mais apertada: são factos sociais que estão no agravamento do atual efeito de estufa; são factos sociais as suas dramáticas consequências; são factos sociais que desencadeiam as dinâmicas de toda a crise. Em nenhuma situação se observa melhor a condição social dos problemas ambientais do que nas catástrofes. Nelas encontramos um recurso para avaliar e preparar a resposta à nossa futura e já presente, aliás, condição ambiental. Numa comunicação inspiradora, Raymond Murphy, da Universidade de Otava, lembrou o que podemos aprender sobre liderança pública em situações de catástrofe (usando casos como o do furacão 'Katrina' ou o do ainda vivo derrame da BP no Golfo do México). E por falar em catástrofe, recordemos o sábio alerta de Tim O'Riordan para o erro sistemático na avaliação da nossa economia insustentável. É preciso começar a fazer as contas ao contrário. Fala-se sempre com dificuldade nas célebres "externalidades", mas elas ganham uma clareza adstringente quando se calcula o custo em tratamentos hospitalares e em trabalho não prestado pelas vítimas de uma afetação ambiental gerada por uma atividade que se autodispensou de avaliar as suas consequências. E não é só a saúde pública; são os próprios custos sociais. Em Inglaterra já há cálculos sobre o preço a que se eleva a produção de uma juventude rejeitada e lançada à celebração cultural das próprias abjeções onde é obrigada a viver. A sustentabilidade é isto também: não gerar custos sociais incomportáveis a pensar que, um dia mais tarde, as entidades públicas - com polícias, prisões e hospitais - virão fazer o 'trabalho sanitário social'. Da China e da Índia as comunicações foram inúmeras: problemas sociais, ambientais e de saúde pública em crescendo. As consequências já as vivemos todos. A ocidentalização dos padrões de vida de centenas de milhões de cidadãos destes países pressiona os recursos naturais a um ponto de não retorno, como demonstrou Marina Fischer-Kowalski, da Universidade de Klagenfurt. Ouvindo as reflexões de tantos cientistas e pensadores nestes oito dias intensivos de Congresso, é inevitável pensar no nosso país, na sua queda para a asneira e no trabalho a fazer já. Enquanto os tempos que correm ainda nos dão tempo. Cidades e contrastes

Gotemburgo fica na Suécia. É uma cidade marítima e portuária e foi nela que decorreu o Congresso Internacional de Sociologia. Chegados de avião, à saída do aeroporto, foi surpreendente constatar o modo como a vasta floresta protagoniza muito mais a paisagem do que as instalações aeroportuárias. Para quem vem da Portela de Sacavém, o contraste não podia ser mais marcante. A cidade desenvolve-se numa valsa permanente com os seus próprios parques. Alguns, imensos, chegam a interromper o contínuo urbano (como aquele onde se inclui o célebre Jardim Botânico). Mas, de resto, por toda a parte existem espaços verdes, ondulados e tranquilos, no seu estatuto de jardins urbanos. Para quem vem de Lisboa e do velho disco quebrado do seu 'Corredor Verde' que nunca mais fica totalmente verde, o contraste não podia ser mais marcante. E é curioso, o negócio do imobiliário também deve funcionar na Suécia, mas por alguma razão não vandaliza nem o ambiente, nem o espaço público, nem a paisagem urbana. O contraste com Lisboa não podia ser mais marcante. Por exemplo, Haga, o velho bairro de pescadores com as suas casas de madeira, esteve para ir todo abaixo, mas as pessoas mobilizaram-se para o salvar e foram ouvidas. O bairro acabou por ser recuperado em vez de demolido e é hoje um dos mais simpáticos lugares de passeio, de pequeno comércio e de convivialidade urbana. Vida urbana amigável

A velha universidade de Gotemburgo é imponente, mas encontra-se inteligentemente distribuída por toda a cidade: em vez de ter sido remetida para um gueto artificial nalgum canto exterior, até anima o próprio tecido urbano. E animação é o que não falta nesta cidade. Às vezes até demais, com as suas sextas-feiras e sábados à noite de carrões e motas a acelerar... O velho cliché da 'naite' também por lá existe. Mas por toda a parte, fora esses momentos, a vida social parece fluir calmamente no espaço público, sem ruídos histéricos nem pressas ansiosas de trânsito. A mobilidade é tão bem organizada que, em pleno dia de semana, nalgumas ruas chega a parecer feriado. O contraste com Lisboa não podia ser mais marcante. A nossa cidade sofre terrivelmente de ruído e ansiedade rodoviária. Sem ansiedade é como parece decorrer a vida da população que faz os seus trajetos a pé, de bicicleta ou em bons transportes públicos. Por toda a parte se veem carrinhos de bebé, muitos até. Parece que ser mãe ou pai na Suécia não suscita o frenesi que por cá se impõe às jovens famílias. E não é só para os carrinhos de bebé e para as crianças. Trata-se de uma cidade verdadeiramente inclusiva, onde uma cadeira de rodas parece ter uma cidadania óbvia em toda a parte. Não há passeio ou edifício sem uma acessibilidade cuidada. Aliás, ninguém parece desconfortável nesta cidade e basta ver os muitos idosos que também circulam, aliás, com aspeto bem desportivo em ótima forma física. O contraste com Lisboa não podia ser mais marcante. Na nossa cidade, ser velho é um castigo urbano que se soma aos problemas da idade. Não se anda nas ruas atravancadas de carros, desconfortáveis, cheias de buracos e de obstáculos. Dir-se-ia que em Gotemburgo há mais sol do que em Lisboa, de tal modo a rua é usada e as esplanadas vividas. Bem sabemos que era verão, uma estação curta que é preciso aproveitar bem naquelas bandas da Europa. Mas não conseguimos deixar de pensar como o nosso espaço público tem andado desleixado e desaproveitado em cidades com tanto potencial como as nossas. São assim coisas simples que fazem da vida urbana uma vantagem excecional e do civismo uma atividade natural. É proverbial a civilidade sueca. Gostamos muito de falar da nossa extraordinária hospitalidade. Ao sentir a dos suecos não achamos a nossa menor, mas talvez não seja tão extraordinária assim. Texto publicado na edição do Expresso de 31 de Julho de 2010 Descubra as diferenças Luisa Schimdt (www.expresso.pt) 9:00 Quarta feira, 30 de junho de 2010 Planos ou voam alto, longe dos cidadãos, ou aterram em cima deles; situação deixa muito a desejar. Imagine-se a história assim. Num dado país, o governo tomava uma iniciativa e anunciava: "Estamos a preparar uma nova estratégia de planeamento nacional para um futuro de baixo carbono. Para isso contamos muito com o seu contributo e opinião, pois sabemos que nunca conseguiremos atingir objetivos económicos, ambientais e sociais nesta matéria se não envolvermos os diversos agentes e comunidades". Considera-se que o mais importante no apelo à participação cívica é, desde logo, que a consulta pública ocorra numa fase precoce do processo onde "ainda vá a tempo de influenciar as políticas". Considera-se que "os documentos facultados sobre os temas propostos para consulta deverão ser claros" e que "o documento final deverá refletir com clareza as propostas dos participantes". Toda a informação deverá ser "aberta, explicativa, sem reservas e acessível a todos aqueles que se pretende envolver no debate". As consultas deverão sê-lo efetivamente: as respostas, sugestões e opiniões deverão ser "analisadas com todo o cuidado e delas será dada informação posterior aos participantes", de modo a que eles sintam que foi útil o esforço com que se empenharam em participar. Estas regras de boas práticas de participação fazem parte da introdução ao documento apresentado para discussão pública porque, neste país, participar, ser ativo e até mesmo ativista é encarado como uma atividade normal, saudável e altamente respeitada em democracia. Não como um despropósito malcriado ou uma insolência. Imagine-se a história assim, como se houvesse um país de fantasia, onde a democracia funcionava e os planos eram construídos e sustentados por processos participativos, leais e efetivos. País de fantasia? Não. País bem real e bem próximo - trata-se da Inglaterra e o documento existe. É a parte inicial do "Planning for a Low Carbon Future in a Changing Climate", que esteve em consulta até 1 de Junho. O que mais chama a atenção, neste caso, é a distância abissal que separa as duas culturas políticas: a deles e a nossa. Já passámos, é certo, o tempo dos editais afixados na porta da Junta, ou publicados em letra microscópica no obituário dos jornais. Mas a nossa situação ainda deixa muito a desejar. Em Portugal prevalecem três grandes regras nos processos de consulta pública. A 1ª reza assim: nunca envolver as pessoas a montante na produção dos documentos iniciais, mesmo quando residem nos lugares a que o projeto de planeamento diz respeito. Os documentos apresentados vão para discussão pública praticamente em versão final sem margem para incluir eventuais resultados da suposta consulta. Os exemplos não faltam. Nos Planos dos Parques Naturais, as pessoas são um mero apontamento passageiro, mesmo sabendo-se que sem elas não haverá conservação da natureza que resista. Veja-se o recente caso do sudoeste alentejano - mal se ouviram as gentes e os agentes locais e, de repente, aparece um plano feito e pronto. O resultado será provavelmente idêntico ao que se passou na Arrábida: depois de meses de desentendimento e revolta, foi necessário a intervenção de uma equipa externa que ainda está a resolver a situação. Mas porquê sempre os mesmos erros? Mesmo nos Planos de Gestão de Bacia, onde se esperava que as novas instituições - as ARH - funcionassem com uma cultura renovada de abertura à participação, salvo uma ou outra exceção, tudo indica que vamos ter mais do mesmo. A começar logo pelos Conselhos de Região Hidrográfica compostos maioritariamente por representantes da administração. E isto apesar da Diretiva Quadro da Água definir claramente que a participação pública tem de ser efetiva. A 2ª regra reza assim: ignorar sempre todos os que fazem o esforço cívico de redigir contributos. As mais das vezes a administração nem sequer se dá ao trabalho de dar resposta, quanto mais ao de integrar sugestões. Os exemplos também são muitos: a LPN entregou um parecer de 200 páginas sobre o Proder (Programa de Desenvolvimento Rural do Continente); nem resposta obteve. O mesmo se passou com os pareceres das várias ONGA e de agentes da comunidade científica sobre o Plano Nacional de Barragens; e com inúmeros EIA (estudos de impacto ambiental) de obras públicas... A 3ª regra é clara: não levar em conta, muito menos incorporar, seja o que for sugerido durante o processo de consulta. Com este golpe final, não só não se estimula a participação como se consegue dissuadir, por desespero, os mais ativos cidadãos. Felizmente há exceções, mais a nível local do que central (como foi o PNPOT - programa nacional de ordenamento do território, ou o PROTAlgarve). Mas, em geral, o que nos é sempre apresentado como a grande competência e eficácia é o modelo de gestão hierárquica de cima para baixo, tipo modelo empresarial obsoleto, e como se não houvesse diferença nenhuma entre uma empresa e uma república. É por isso que, por cá, os planos são mais 'aeroplanos': ora voam lá muito alto longe dos cidadãos e da prática; ou então aterram pesada e ruidosamente em cima deles. Por este caminho não haverá nem governação eficaz nem democracia responsável. Mobilizar para repovoar

A contrastar com a crónica indigência dos nossos processos de participação, saúda-se o Programa Local de Habitação de Lisboa promovido pela vereadora com o pelouro da habitação, Helena Roseta, e sua equipa. Este programa tem por lema principal "(Re)Habitar Lisboa" e o seu objetivo é contribuir para inverter a grave perda de habitantes da capital (10 mil por ano) e atrair uma nova população, facilitando o acesso à habitação numa cidade onde existem hoje mais de 50 mil alojamentos devolutos. Ao mesmo tempo, pretende-se identificar zonas críticas e melhorar a qualidade da habitação - logo, de vida - de muitos lisboetas. A intenção e os objetivos são da maior importância, mas o que é francamente novo é o modo como o processo foi - e está - a ser conduzido: reuniões regulares nos bairros municipais dirigidas a moradores, organizações e juntas de freguesia (e incluindo a Gebalis), numa ação política de proximidade, debatendo carências sociais e urbanísticas e propostas de solução. O processo começou há dois anos e depois de inúmeras reuniões e validado o Programa passou-se à fase de identificação dos 50 Bairros-Zonas de Intervenção Prioritária (BIP-ZIP) onde a CML irá empenhar-se em melhorar a qualidade das habitações e do espaço urbano. Uma verba de 1 milhão de euros anuais será disponibilizada para intervenções específicas nesses bairros durante os 15 anos de vigência do futuro PDM (Plano Diretor Municipal), segundo uma metodologia de orçamento participativo. O país não é de facto avesso à democracia nem as pessoas são inertes. Basta não as tomar por parvas chamando-as ao engano para meros simulacros de participação. Participar nos orçamentos

E por falar em participação e em Lisboa, não deixe de intervir no Orçamento Participativo da cidade. Largamente divulgado em outdoors por toda a cidade e no sitío da CML, é uma ótima oportunidade para os munícipes, individualmente ou através de associações cívicas, participarem em concreto nas decisões anuais de investimento da autarquia. Trata-se, sem dúvida, de uma importante inovação democrática na governação da cidade, envolvendo e empenhando os cidadãos e aproximando governantes e governados num projeto comum! Claro que o que está em causa é apenas uma limitada fatia do orçamento camarário (5 milhões por ano). Mas não é despiciendo. A medida, lançada há 2 anos, vai na sua 3ª edição e, desta vez, alargou o prazo e ampliou os meios de mobilização: além da Internet, realizaram-se Assembleias Participativas. O processo tem duas fases: numa primeira apresentam-se as propostas (até 30 de junho!) que, numa segunda fase, serão votadas. As medidas propostas pelos cidadãos que forem mais votadas passarão à prática. (Aproveite também para participar nas sessões de divulgação sobre o PDM de Lisboa, atualmente a ser revisto, com a promessa do presidente da CML de facilitar toda a informação, como disse há dias numa sessão pública onde apelou à participação de todos). Mexa-se!

E por falar em participação, aqui ficam alguns endereços e contactos úteis para que faça ouvir a sua voz: para os atentados ambientais - lixo atirado às bermas, despejos em linhas de água, ruído fora de horas, abate de árvores, construções clandestinas e abusivas... - escreva ou ligue ao Serviço Especial de Conservação da Natureza e do Ambiente da GNR (808200520). Se for caso de negligência no abastecimento de água, saneamento urbano ou recolha e tratamento de lixo, recorra à ERSAR - tem um site claro, amigável e informativo, com uma secção de reclamações específica. Lá tem também a possibilidade de ver se na sua localidade a água da torneira foi analisada nos parâmetros legais e se está em condições de ser consumida. Se o problema for a qualidade do ar, vá ao Qualar - base de dados online sobre qualidade do ar - e veja como estão os níveis de poluição na sua zona de residência (www.apa.pt); inscreva-se no sistema de alerta sobre as excedências de ozono troposférico, prejudiciais à saúde e recorrentes no verão. Se pretende saber o estado e classificação das praias marítimas ou fluviais, consulte o site da Associação Bandeira Azul da Europa (www.abae.pt ). Texto publicado na edição do Expresso de 26 de Junho de 2010 Eficiência inteligente Luisa Schimdt (www.expresso.pt) 9:00 Quarta feira, 2 de junho de 2010 Dia Mundial da Energia A eficiência energética é um indicador invulgarmente seguro de progresso. E é também um objectivo inevitável. Ainda há poucos anos um automóvel normal gastava 20 litros aos 100 km. Hoje, que algumas belas 'máquinas' desenvolvem altas potências gastando menos de 5 litros, ninguém tem dúvidas sobre as enormes vantagens da inovação tecnológica nos motores dos automóveis. Gastar menos energia para fins idênticos é obviamente um importante sinal de desenvolvimento da civilização. Pelo contrário, os elevados consumos de energia estão agora associados ao que é antigo e quase sempre obsoleto. Hoje, que celebramos o Dia Mundial da Energia, esta verdade é mais actual do que nunca. Seja nos carros, nos computadores, nos electrodomésticos ou nas casas, os equipamentos mais desenvolvidos, mais modernos e de melhor desempenho mostram sempre gastos energéticos altamente eficientes. A eficiência energética é, por isso, um indicador invulgarmente seguro de progresso. E não só um indicador seguro como um objectivo inevitável, sobretudo num mundo onde os equipamentos eléctricos são cada vez mais indispensáveis. A solução é procurar mais e mais eficiência energética e não, cegamente, mais e mais produção de energia (note-se que, neste ano de chuva e vento, algumas centrais termoeléctricas chegaram a estar vários meses paradas). Como dizia Vinicius de Moraes, é melhor "ser alegre que ser triste". O que, em termos de energia, quer dizer: é melhor ir para a frente do que ir para trás. E a ir para a frente vamos muito mais longe, gastando muito menos energia. São coisas destas que o sofisma de uns e a má-fé de outros tentam esconder. E logo neste país que tão boa figura tem feito internacionalmente noutros sectores de modernização energética, como seja a produção de energias renováveis. Por vezes, medidas simples podem ter um impacto importante: a mudança de lâmpadas reduziu os consumos de electricidade, tanto nas casas como nas ruas. Também a substituição do sistema tradicional de semáforos por LED em algumas zonas de Lisboa permitiu poupar 'apenas' 90% do consumo de electricidade. Portugal precisa como de pão para a boca de aumentar a sua eficiência energética. Apesar das renováveis, ainda somos um país que, para uma produtividade baixíssima, gasta energia como se fosse uma grande nação industrial. O que, por sua vez, contribui para aumentar exponencialmente a maldita dívida externa. Há estudos sobre Lisboa e Porto, levados a cabo pelas respectivas agências de energia, que permitiram identificar coisas muito curiosas sobre o nosso perfil de consumo. Por exemplo, da totalidade de energia primária consumida por cada uma destas cidades, em Lisboa os edifícios são responsáveis por 46% desse consumo (30% pelos de serviços e 16% pelos residenciais), enquanto no Porto consomem 58% (32% pelos de serviços e 26% pelos residenciais), sendo que quase 80% desse consumo são sob a forma de electricidade. O consumo de electricidade por habitante no Porto é cerca de 30% superior ao verificado no resto do país. A razão é histórica: o Porto nunca foi dotado de uma rede de gás porque tinha em seu redor a rede de hidroeléctricas construídas no Douro durante o Estado Novo. Já Lisboa, demasiado distante das hidroeléctricas de então, teve de se dotar de gás, o que a coloca hoje numa situação de alguma vantagem. Estes números genéricos permitem também constatar o facto de os nossos edifícios gastarem demasiada energia, seja pelo que consomem, seja pelo que deixam perder. E isto faz convergir muitas das questões da eficiência energética para o modo como construímos e equipamos os prédios. Foi a importância desta questão que levou as agências de energia das duas grandes cidades a desenvolverem programas de eficiência energética dos edifícios, muito para lá da chamada 'certificação energética' que tem, aliás, muito a melhorar. Trata-se de instalar um programa que ajude a dotar os edifícios de reais meios de poupança, sobretudo na climatização e na produção autónoma de alguma energia. A eficiência energética terá, além da sua própria vantagem óbvia, uma outra da maior importância: a percepção directa pelos habitantes do real aumento do conforto térmico das casas - mais frescas no Verão, menos frias no Inverno. É neste contexto que se inscreve o Pacto dos Autarcas com objectivos ambiciosos: aumentar a eficiência e reduzir os valores absolutos das emissões de dióxido de carbono (CO2), através da intervenção directa a dois níveis: nos transportes públicos, mais eficientes e limpos; e no ordenamento do território, o que passa necessariamente pela reabilitação urbana - a tal que irá criar emprego e reduzir o escandaloso número de casa devolutas. A eficiência energética é também o problema do ordenamento do território. As boas medidas permitem ao cidadão comum ganhar em todas as frentes: mais conforto, menos despesa, melhor ambiente, mais qualidade de vida, mais produtividade. 46% da totalidade de energia primária que Lisboa gasta são consumidos pelos edifícios, responsáveis também por 45% das emissões de CO2 do concelho 58% é a percentagem de consumo de energia primária que no Porto é da responsabilidade dos edifícios (a das emissões de CO2 é de 55%) Há petróleo no Beato?

Paulatinamente o Golfo do México vai-se enchendo de petróleo. A partir do fundo do mar, lá onde estoirou a válvula do poço de petróleo, emerge uma mancha cujos danos ambientais, económicos e alimentares são de tal modo vastos que é difícil avaliá-los. Há, contudo, uma coisa fácil de calcular: os critérios de segurança que presidem às perfurações petrolíferas no mar nunca mais poderão vir a ser o que eram. O assunto estoirou no Golfo do México, mas também pode estoirar noutros lugares, incluindo no litoral português. É que, com o mais do que previsível aumento do preço do petróleo, começa a parecer rentável explorá-lo ao largo da costa portuguesa, nomeadamente no Algarve. Mas isso agora já não se poderá fazer pelas contas de uma segurança barata. Não queremos imaginar o que aconteceria se o mesmo problema ocorresse nas nossas recentemente hiperclusterizadas águas costeiras. Todo o cuidado é pouco. O rápido sai caro

E por falar em cautelas e em eficiência energética, convinha acautelar bem os parâmetros de eficiência energética dos renovados edifícios escolares - tanto por questões económicas óbvias, como por razões pedagógicas. A notável medida de renovação dos edifícios e dos equipamentos escolares, adaptando-os a várias normas europeias (acessibilidades, comunicações, conforto, arranjo exterior, etc.), tem sido conduzida a toque de caixa. Claro que as cadências dos anos lectivos não recomendam lentidão, mas há pressas que podem hipotecar os efeitos positivos. Integrar critérios de eficiência energética agora é uma oportunidade que não pode ser perdida para o futuro, e já há casos em que esta cautela com a eficiência energética não foi tomada. Resultado: belos edifícios, por vezes com fraca sustentabilidade, incluindo os próprios custos de operação e consequentes aumentos das facturas de electricidade (ventilação e ar condicionado sobretudo). Até agora renovaram 21. Fica o alerta para os próximos 205. Good news

As boas notícias vêm de algumas autarquias que assinaram há um ano o chamado Pacto dos Autarcas, uma iniciativa do Comité das Regiões da UE. Águeda, Almada, Aveiro, Cascais, Ferreira do Alentejo, Lisboa, Moura, Oeiras, Palmela, Ponta Delgada, Porto e Vila Nova de Gaia fizeram parte dos cerca de mil municípios que por todo o mundo se comprometeram, até 2020, a reduzir em 20% as emissões de gases com efeito de estufa (GEE); a aumentar em 20% a produção de energia com fontes renováveis e a melhorar a eficiência energética também em 20%. Para isso, elaboraram um plano de acção de energia sustentável para os sectores da construção, das infra-estruturas públicas (aquecimento, iluminação, resíduos, limpeza urbana, etc.), dos transportes (o sector que representa o maior consumo de energia do país) e do planeamento urbano. As vantagens deste Pacto são inúmeras e revertem a favor de todos os cidadãos do mundo: a redução de GEE prevista nas cidades que aderiram é equivalente à plantação de árvores numa área semelhante Hungria em cada ano, ou à retirada de mais de 35 milhões de carros das estradas. Isto para além da poupança na importação de combustíveis fósseis. Por cá, são as agências de energia que protagonizam este Pacto. A título de exemplo, a AdePorto irá equipar os bairros sociais com 5 mil m2 de painéis de água quente solar (25% do parque de habitação social); elaborou guias de referência para a reabilitação urbana do centro histórico; e criou um observatório para que todos os edifícios novos e grandes reabilitados passem a obedecer a exigências de desempenho energético. A Lisboa E-Nova tem apostado em medidas de poupança de energia: além de equipar os semáforos com LED, a regulação automática da iluminação pública em função da luminosidade do dia já permitiu poupar 200 mil euros por ano. Acresce a instalação de sistemas solares térmicos em edifícios novos ou renovados; dotar a cidade de pontos de carregamento para veículos eléctricos e promover a reutilização de águas residuais para lavagens de ruas e regas - acabando com o desperdício de usar águas tratadas e potáveis para estes serviços. O pior continua a ser a frota de autocarros e sobretudo de táxis. Adaptação imediata! Luisa Schimdt (www.expresso.pt) 9:00 Quarta feira, 5 de maio de 2010 Alterações climáticas Estratégia nacional de adaptação corre o risco de ficar como mais uma bela peça legislativa, sem mudar nada no terreno. Pensámos que era mentira. Saiu a 1 de Abril a Estratégia Nacional de Adaptação às Alterações Climáticas (ENAAC). Afinal é verdade. Embora mais tarde do que outros países europeus, Portugal começa a acordar para a indesmentível realidade das alterações climáticas. Ao contrário das turbulências passageiras da opinião pública, que conhecidos interesses económicos atiçam a seu proveito (como lembra o economista Paul Krugman num artigo recente), os Estados, com responsabilidades maiores e mais profundas, tratam de encarar o problema. Não é preciso, nem possível, esperar pela certeza exacta e absoluta de todas as vertentes das alterações climáticas para reconhecer os seus impactos, sendo essencial tomar medidas de forma coordenada à escala transnacional, já que o clima é o fenómeno menos parado e menos paroquial que existe na natureza. Depois de Copenhaga, o sentido ficou definido. É pena que se tenha retirado esperança e energia às medidas de redução das emissões dos tais gases que andam a contribuir para isto tudo. Mas é provável que no México e noutras reuniões internacionais a redução das emissões venha a ter mais importância, sobretudo por causa dos apertos energéticos. A verdade é que, desde Copenhaga, do que se fala é de "adaptação", ou seja, assumir que as alterações climáticas não são traváveis e que os seus efeitos vão ter interferências profundas em todos os aspectos da vida dos países. Não há memória de, a uma escala tão vasta e publicamente tão reconhecida, um fenómeno da natureza impor transformações voluntárias à sociedade. E as transformações urgem. Não se trata de exortar à salvação das almas, mas ao salvamento das vidas e bens; e isso requer medidas, metas, planos de acção, estratégias concertadas, antecipação e um acordo amplo sobre características essenciais do fenómeno. A ENAAC, que entrará hoje em vigor, estrutura-se em quatro objectivos: informação e conhecimento (sobre previsões, indicadores e cenários); redução da vulnerabilidade e aumento da capacidade de resposta (em particular a fenómenos meteorológicos extremos: tempestades, cheias e secas); participação, sensibilização e divulgação (de tudo a todos); cooperação a nível internacional (União Europeia e Comunidade de Países de Língua Portuguesa). Estes objectivos projectam-se sobre nove sectores-chaves que serão altamente afectados: ordenamento do território e cidades; recursos hídricos; segurança de pessoas e bens; saúde; energia e indústria; biodiversidade; agricultura, florestas e pescas; turismo; e zona costeira. O que se preconiza para todos estes sectores serão acções designadas "no regrets" - daquelas que quando chega o balanço não haverá nada a lamentar; antes pelo contrário, trarão sempre vantagens ao país. O documento, que é da maior importância e utilidade, prevê um período para o seu desenvolvimento (demasiado longo: 21 meses) e uma comissão interministerial para a sua condução. Corre, no entanto, o risco de definhar por quatro razões. Por um lado, as alterações climáticas não aconteceram; estão a acontecer e desenvolvem-se. As ciências que as estudam precisam de continuidade, articulação e reforço. Portugal, que começou de forma pioneira com o projecto SIAM1 e SIAM2, interrompeu em 2006 o apoio e a programação desta investigação, quando era tão importante dar-lhe a continuidade que permitisse chegar ao ponto seguinte, que é o da monitorização. De repente, ficámos num vazio institucional da ciência, o que é um risco inaceitável, justamente quando o problema é 'risco'. Outro aspecto tem que ver com urbanismo. O documento reflecte-o, é certo, mas deveria ser muito mais desdobrado e específico. Quando olhamos para a previsão dos impactos das alterações climáticas em Portugal, vemos o potencial catastrófico de duas vulnerabilidades que infelizmente entre nós se cruzam: a do litoral (tanto pela subida do mar e erosão costeira, como pelas cheias dos rios) e a vulnerabilidade física do parque habitacional. A ineficácia das políticas de ordenamento do território abriu um terrível alçapão social que as alterações climáticas vêm expor e agravar. Particularmente neste tema, é preciso muito mais e depressa. Por outro lado, não tendo um plano de acção imediato e viável e sobretudo um orçamento definido, a ENAAC corre o risco de se ficar, como é tão frequente em Portugal, como mais uma bela peça legislativa que honrará mais tarde a memória dos seus autores, mas sem mudar nada no real e no terreno. Por fim, chegamos à mais embaraçosa das questões quando se trata de políticas de mudança social. A estratégia fala em sensibilização e participação. Mas tudo isso tem de ser traduzido em acções de informação, de educação, de mobilização... recortadas segundo as diferenças sociais, e elas são muitas. É caricato julgar que se mobiliza uma sociedade para a mudança com documentos em papel ou 'disponibilizados' na Net. Mobilizar começa por aprender a ouvir. Está quase tudo por fazer neste campo. A ENAAC a 1 de Abril parecia mentira; a 1 de Maio, mãos à obra, que é trabalho. Nuvem, moral e proveito

A erupção vulcânica da Islândia é um tema inesgotável. De repente a atmosfera ficou infrequentável e todas as atenções se concentraram nela. Dependemos dela para muito mais do que respirar. Pelo menos o Presidente da República já está bem ciente do facto. Na longa viagem rodoviária que o trouxe de Praga a Belém, terá seguramente meditado sobre a nossa condição atmosférica e decerto isto lhe reforçará a sensibilidade às questões ambientais. Questões essas que se parecem cada vez mais com histórias de moral e de proveito. Não se luta contra a natureza aos murros e pontapés. Só com inteligência, ciência e cultura - e vamos precisar cada vez mais de as usar. Água vem, areia vai

Murros e daqueles que fazem sobretudo doer as mãos de quem os dá será, por exemplo, gastar este ano 100 milhões de euros a tentar segurar, sem esperança, a linha da nossa costa. Se há sítios onde algumas intervenções podem fazer sentido e, ainda assim, permitem ao país ganhar tempo para corrigir erros passados, noutros a despesa é um desespero total. Total e anual. Despejar toneladas de areia em muitas das nossas praias lembra rituais arcaicos em que se ofereciam tesouros para aplacar forças negativas e transcendentes. No caso de S. João da Caparica, já vão anos consecutivos de areia despejada que a água vai levando (mesmo que não na totalidade). Manda o bom senso, e sobretudo a experiência de outros países, que se pense em recuar do litoral em risco os edifícios, casas, estabelecimentos... que se sabe serem claramente inviáveis a médio prazo. São essas as verdadeiras medidas de adaptação à erosão costeira. Ora se isto já parece evidente para o caso da Fuseta, onde a retirada das casas dos pescadores começou agora a ser feita pelo Polis, porque é que não o é para muitos outros sítios do Algarve? Continuam a prever-se grande cargas de areia para as praias de Albufeira (entre Peneco e Forte de S. João), D. Ana (em Lagos) e troço Forte Novo/Quarteira-Garrão (em Loulé). Sabemos quais são as razões e até podemos compreender algumas destas decisões. Mas é importante que elas sejam publicamente pensadas e debatidas. Se as recargas são insustentáveis a curto prazo pela sua própria natureza, que sustentação cívica pode a decisão ter hoje? Expor e debater problemas destes é que é civicamente construtivo; e toda a resposta de adaptação às alterações climáticas passa pela reconstrução da dimensão cívica que, entre nós, sempre foi tão fraquinha. Factos e contradições na AML

E a propósito de responsabilidade pública na nossa vulnerabilidade ambiental extrema, o que não se compreende mesmo é que, enquanto se aprovam estratégias de adaptação às alterações climáticas e se discutem políticas preventivas de recuo, se continue a deixar construir mais empreendimentos, casas, fábricas, armazéns, centros comerciais... em leitos de cheia e outros lugares de risco. Reflicta-se sobre dados recentes de um levantamento realizado pelo Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (coordenado por José Luís Zêzere) a propósito da carta multirriscos da Área Metropolitana de Lisboa (AML). Nela mostram-se vários factos cruciais a encarar seriamente. A erosão do litoral não pára: só na Cova do Vapor/S. João da Caparica o recuo foi de 10 m por ano nos últimos 40 anos. A susceptibilidade às cheias progressivas afecta 12% do conjunto do território da AML, chegando em concelhos como Vila Franca de Xira a atingir 70% e em Alcochete e Moita 40%. Já as cheias rápidas afectam 1,5% do total da região, com uma incidência de 10% em Odivelas, Loures e Oeiras. Quanto aos designados 'movimentos de massa' ou deslizamentos de terras, só no último Inverno ocorreram na AML cerca de 400, contando com o escandaloso caso da CREL. Contudo, apesar de tudo isto, a edificação urbana foi crescendo inexoravelmente nas zonas de risco. Entre 1995 e 2007 registou-se um incremento de 22,6% de áreas edificadas na faixa litoral dos 500 metros; um incremento de 51% de edificações em áreas inundáveis por cheia progressiva e 39% em áreas afectadas por situação de cheia rápida (entre casas, fábricas, centros comerciais...). Para as mesmas datas aumentaram em 72% as construções em "vertentes perigosas"... Os concelhos onde a situação é mais gravosa são Loures, Mafra, Odivelas e Vila Franca de Xira - para onde, mesmo assim, continuam a ser planeadas e aprovadas mais construções em leito de cheia. Quem boa cama fizer... Texto publicado na edição do Expresso de 1 de Maio de 2010 Vamos limpar as ideias Luísa Schmidt (www.expresso.pt) 12:28 Quarta feira, 7 de abril de 2010 O lixo e o preconceito levaram uma grande limpeza. Há que aproveitar a campanha 'Vamos Limpar Portugal' para levar a varredela mais longe... 100 mil voluntários recolheram 70 mil toneladas de lixo em 13 mil lixeiras Manuel Teles/Lusa Decorreu há 15 dias uma operação, cujo significado ultrapassa muito o episódico do seu acontecimento. A campanha 'Vamos Limpar Portugal' (VLP) limpou de facto muito, mas sobretudo expôs muito mais. Afinal há mesmo imenso para limpar ainda. Ficou à vista neste dia, abreviado pelo mau tempo, a quantidade assustadora de lixos acumulados por bermas e matas, afundados nas ribeiras, enterrados nas florestas, atirados a eito para os barrancos e arribas... - sintoma de um país desesperado à procura de um "fora" para onde deitar as sobras e os dejectos da sua vida. O país que vive entrincheirado nas suas vidas privadas, rodeado dessa "terra de ninguém" que para ele são os outros que não conhece nem quer conhecer. No dia VLP ficou, enfim, à vista que o verdadeiro culpado de todo este lixo é, afinal, o próprio país. Não foi o "eixo do mal" que espalhou lixo por toda a parte, nem o Estado, nem os inimigos, nem os invejosos do costume. Portugal está sujo, profundamente sujo, pelos próprios portugueses. O dia VLP foi um verdadeiro festival de populismo às avessas. Directa e indirectamente, todos somos responsáveis pela situação. E, finalmente, a solução desencadeou-se a partir de dentro do problema: a sociedade civil manifestou uma verdadeira e sincera vontade de limpar. De se limpar... energicamente. Cem mil pessoas participaram, apesar da chuva. E não foi nenhuma ONG, nenhuma coligação de partidos, nenhuma seita, nenhum clube de futebol. Foram 100 mil cidadãos a trabalhar num sábado, a terem a revelação do lixo e a expô-la a todos os outros. Fez-se o saldo aflitivo da condição ambiental das nossas tão celebradas belezas paisagísticas. Portugal afinal é um extenso tapete para debaixo do qual se varrem todas as porcarias. Nada ficará como dantes depois desta data. Este dia não foi um dia; ele inaugurou uma consciência pública do desleixo profundo a que votamos os nossos valores naturais e paisagísticos, sem contar com a própria saúde. A desatenção a que em Portugal está votado o espaço público colectivo dá também para avaliar o estado da democracia que vivemos. Mesmo que as autoridades tenham um papel crucial e valha sempre a pena chamar a inspecção do ambiente (IGAOT) e o serviço especial de ambiente da GNR (SEPNA), nada supre a acção individual e colectiva. Ninguém está dispensado. Duas semanas depois, as ironias são inevitáveis. Com que então estava resolvido o problema das lixeiras em Portugal? Trinta e tal anos de políticas ambientais revelam que o país é todo ele uma sucata difusa - só pelo networking, com o apoio da Universidade de Aveiro, localizaram-se 13 mil focos. Não basta fechar e selar as mais óbvias lixeiras urbanas; vai ser preciso ir buscar o lixo aos fundos onde ele foi metido e escondido - como foram os mergulhadores às ribeiras, ou os rafters às escarpas... ou os que andaram a vasculhar os solos. E descobriu-se de tudo: muitos frigoríficos e outros electrodomésticos; peças e carcaças de automóveis; pneus; muito - mesmo muito - entulho de obras. Encontrou-se também lixo doméstico, sacos de plástico cheios de lixos a despontar por debaixo de tapetes de folhas secas em frondosas matas... Até algum lixo tóxico foi encontrado a "temperar" as belas águas que, mais abaixo, nas fontes, parecem puras e cristalinas... O dia VLP teve um tamanho enorme para trás e para diante. Para trás, porque lembrou os milhares de avisos que há tantos anos algumas pessoas têm feito, para serem acusadas de desmancha-prazeres das maravilhas turísticas de Portugal. Para a frente, porque a responsabilidade de todos agora é manifesta. Estas experiências, mesmo que de um só dia, são duradouras: os 100 mil que limparam, mais os milhões que viram o resultado dessa limpeza pelas televisões... ficaram decerto mais atentos e terão outro cuidado para que se não suje mais. O espaço público, ou melhor, o espaço cívico da democracia coincidiu com o território. É um feito. Agora só a incúria da Administração Pública pode destruí-lo, ao não lhe dar continuidade e ânimo. Quanto mais não seja por gratidão, já que a iniciativa poupou ao Estado dezenas de milhões de euros e anos de trabalho, e a ministra do Ambiente, que é especialista no assunto, sabe-o bem. Por fim, note-se o modo como as redes sociais funcionaram para estimular a vida cívica portuguesa, que, após décadas, primeiro, de proibição e repressão e, depois, de desencorajamento, afinal quer viver e manifestar-se. A cidadania em Portugal não é um caso desesperado de desânimo a 'justificar' tentações autoritárias. Antes pelo contrário, o potencial de entusiasmo e de mobilização é enorme. Não o aproveitar será uma estupidez culposa. O programa de limpeza e descontaminação do país, palmo a palmo, é urgente. Por todas as razões e mais algumas. Comboio da biodiversidade Pouca terra, pouca terra, pouca terra... Ela pouca não é e, se não a estragassem, nela tudo se criava. Uma das zonas mais férteis e biologicamente mais ricas do país dá a volta a toda a Área Metropolitana de Lisboa (AML). Olhá-la, apreciá-la, atravessá-la e conhecer melhor os valores que aí temos, os que estragámos e os que precisamos de conservar e recuperar, foi o grande objectivo do já justamente célebre "comboio da biodiversidade". Numa iniciativa do Museu de História Natural e do Centro de Biologia Ambiental da Universidade de Lisboa (UL), este foi o primeiro dos muitos "Bioeventos 2010" que se anunciam. Atrelou-se um comboio e deu-se a volta de Lisboa ao Carregado e do Carregado a Setúbal, passando pela antiga ponte Rainha D. Amélia... Espalhados pelas carruagens, uma mão-cheia de especialistas de diversas área científicas da UL foram explicando e debatendo o interesse dos lugares por onde íamos passando. Das "paisagens suburbanas mais violentas", como disse o geógrafo João Ferrão, às mais férteis terras da lezíria, passando pela desolação contaminada do Tejo - que levou o biólogo Jorge Palmeirim a chamar a atenção do valor económico da biodiversidade -, seguindo por alguns dos mais belos trechos desta paisagem horizontal e incerta, onde voam flamingos e ecoa a memória dos "Gaibéus". O passeio culminou, agora já de autocarro, com a visita à grande serra da Arrábida - cuja candidatura a Património Mundial da UNESCO mereceu uma conferência de imprensa. Durante todo este trajecto algumas questões acutilantes ficaram gravadas na memória de todos: como se destruiu o valor económico da produção de ostras do Tejo? Como se condenou tanta gente à condição de uma vida suburbana sem qualidade? Como se destruiu (e destrói) a estratégica Reserva Agrícola Nacional? Como se mutilou a paisagem única e quase sagrada da Arrábida? A experiência foi verdadeiramente extraordinária pela revelação constante da biodiversidade, mesmo no meio da adversidade suburbana. Uma biodiversidade que só encontrou paralelo na diversidade extrema da "fauna humana que povoava as carruagens: cientistas e artistas; empresários e responsáveis políticos; associativos e jornalistas; magistrados e autarcas... Interessante, divertidíssimo e cheio de esperança. A viagem foi também um lançar de pontes (em linguagem chique diz-se bridging) entre competências, interesses e pessoas.

Ciência ao vivo no parlamento E por falar em bridging, o Ciência Viva organizou um Café de Ciência na Assembleia da República para pôr em diálogo cientistas de várias áreas disciplinares e deputados, mais uma vez, sobre o tema da biodiversidade. Orquestrados por Alexandre Quintanilha, e com a participação de Manuel Heitor, secretário de Estado da Ciência, compareceram muitos cientistas, embora, infelizmente, não tantos deputados - apesar dos que lá foram estarem genuinamente interessados. Três minutos de intervenção para cada um - o que não é um exercício fácil para uma vida de investigação -, mas conseguiu-se deixar informações-chave, que ainda hoje custam a fazer passar: A biodiversidade sustenta importantes recursos económicos do país - da farmacopeia ao turismo, da agricultura ao mar. É por isso urgente monitorizar as mudanças e avaliar as perdas; estimular as cautelas e aprofundar o(s) saber(es) e, sobretudo, investir seriamente na sua investigação e garantir seriamente a sua protecção. A simples existência da natureza e das paisagens na sua diversidade é um serviço valiosíssimo que pode e deve ser quantificado e entrar nas contas públicas. E não apenas ser considerada um fundo anónimo onde toda a gente pode ir tirar coisas e despejar lixo. Os danos que ela sofre e os valores que produz têm de ser avaliados e cobrados. As paisagens constroem-se, restauram-se e conservam-se, e, se a conservação tem custos, muito mais caro sai não o fazer. Até para a saúde pública. Como dizia Manuel Carrageta, presidente da Fundação Portuguesa de Cardiologia, a este jornal na semana passada, a propósito de um recente estudo do Instituto Ricardo Jorge sobre a distribuição nacional das patologias do aparelho circulatório, "a Grande Lisboa é um factor de risco. Está provado que olhar para uma paisagem bonita liberta endorfinas boas para as artérias". E olhar para uma paisagem feia, o que libertará? Texto publicado na edição do Expresso de 2 de Abril de 2010 A-Mar ou desperdiçar Luisa Schimdt (www.expresso.pt) 9:00 Quarta feira, 3 de março de 2010 Várias iniciativas têm dado consistência à ideia de colocar o mar no fulcro da nossa consciência de país com um futuro a construir. Poucos países terão usado o mar de forma tão ornamental e negligente como nós. Passadas as eras heróicas e os actos de bravura conhecidos, o mar acabou por se tornar um motivo para os nossos patriotismos de altifalante, sobretudo quando se trata de apontar, com olhos sonhadores e piegas, razões sentimentais e imprecisas para justificar a nossa existência no meio dos outros. E, contudo, ao longo dos anos, apesar da negligência, foi possível fazer sobreviver e continuar neste país iniciativas económicas, científicas e tecnológicas em torno do mar com elevados níveis de qualidade. A grande mudança assinala-se em meados dos anos 90, e é publicamente consagrada pela Expo-98 dedicada aos "Oceanos - um património para o futuro", com o objectivo de sensibilizar para os problemas dos oceanos, estimular a investigação científica e reactivar as indústrias e sectores ligados aos recursos marinhos. Por alguma razão o seu Oceanário continua a ser hoje uma das maiores atracções científicas, culturais e recreativas da cidade e do país. A ele devemos a recordação de que a Expo-98 não foi, como agora por vezes parece, o nome de uma agência imobiliária, mas uma grande exposição internacional dedicada aos oceanos. Ao Oceanário devemos também um contributo para a instalação de uma cultura pública de sensibilidade à vida marinha, à beleza dos seus ecossistemas e à nossa ligação umbilical a eles, como todas as noites nos lembrava o Aquamatrix durante a Expo. Entretanto, de 1998 para cá, várias iniciativas têm vindo a dar progressiva consistência à ideia de colocar o mar no fulcro da nossa consciência de país com um futuro a desenhar e a construir. É este processo recente, da última dúzia de anos, que tem permitido projectar finalmente os grandes contributos científicos e estratégicos de algumas figuras discretas mas muito persistentes. Pensamos sobretudo em Mário Ruivo, como cientista e cidadão, cuja envergadura e antevisão era mais do que reconhecida por várias organizações internacionais ligadas ao mar e que hoje vê finalmente o fruto do seu trabalho, mesmo quando o seu nome é tão sistematicamente omitido. É assim por felicidade que, no meio destes abismos da crise e de quezílias políticas que a todos envergonham, alguma coisa luminosa e com horizonte tem vindo a ser politicamente proposta, ou seja, orientada por objectivos e articulada em programas. Mesmo que tenhamos de lhe suportar o desconfortável inglesismo de cluster, saudemos o chamado "hypercluster da economia do mar" - qualquer coisa que teria feito sorrir tanto o rei D. Carlos como Fernando Pessoa, tanto o almirante Tenreiro como o "Xico das Caldeiradas"... Trata-se de um clarividente documento produzido pela equipa de Ernâni Lopes, que o coordenou, que apresenta uma nova visão para o sector do mar, articulando as vertentes económica, ambiental, social e de governação do sector. Com uma fortíssima componente científica ancorada em universidades e institutos de investigação e com uma capacidade de aplicação tecnológica claramente adequada aos recursos do país, o hypercluster do mar parece a chave exacta do cadeado que nos tem trazido trancados na nossa miséria pedincha. Contemplando simultaneamente o turismo e a actividade portuária; as redes de comunicação e os desportos náuticos; as energias renováveis (eólicas em offshore e biocombustíveis de microalgas a usar na aviação civil); as pescas; as aquiculturas, sobretudo as de mar aberto; as áreas protegidas marinhas; a transformação do pescado e a inovação das fontes hidrotermais... - as ideias são inúmeras e as possibilidades imensas (www.saer.pt). Algumas já vêm fazendo o seu caminho em muitos centros universitários e instituições públicas de investigação - das universidades dos Açores, Aveiro, Algarve e Lisboa, ao IPIMAR, ao ancestral Instituto Hidrográfico... - que só precisam de reforço e continuidade. Outras têm de ser verdadeiramente incentivadas, como a criação de uma rede de novas áreas protegidas marinhas, as quais são estratégicas para o alargamento da nossa ZEE (Zona Económica Exclusiva). Outras passam por uma revitalização, como as áreas marinhas que já existem no continente. Questão crucial para tudo isto será o ordenamento das bacias hidrográficas e, por maioria de razão, o ordenamento do território, em particular o do litoral. Sem isso não haverá hypercluster que chegue ao mar. Eis, portanto, uma ideia onde fazemos um sentido que nos reconcilia com a história e com as nossas melhores qualidades, incluindo nelas a capacidade sonhadora - não a alucinada mas sim a construtiva e sobretudo criativa. Depois de termos ouvido até à náusea o mar apontado como destino ideológico de um país caduco. Depois de termos assistido à tradução da vocação marítima em urbanismo litoral caótico. Depois de nos termos confrontado com o refluxo costeiro das poluições que vazámos (e vazamos) para o mar... Eureka! Assim haja capacidade e ânimo para sair das águas doentias do pântano para as águas sadias do mar. Áreas marinhas e ZEE

Uma das propostas do hypercluster do mar é incentivar as actuais - e criar novas - áreas marinhas protegidas (AMP) de modo a constituir uma rede de grande interesse natural e diversidade biológica. Às AMP atribui-se um valor económico ou, muito prosaicamente, um valor 'monetário'. A chamada 'monetarização' das áreas marinhas passa por contabilizar os serviços por elas prestados na melhoria dos recursos: mais conservação resulta em mais espécies piscícolas, maiores e mais variadas, com reflexo no aumento de stocks e na exportação de larvas. Resulta também em actividades de turismo sustentável e de lazer, como seja a prática do mergulho e a observação dos cetáceos e da avifauna marinha e, tudo isto, significa também mais emprego. Por sua vez, existe um manancial de serviços bioquímicos ligados à investigação de componentes farmacêuticas; além de que a protecção de recifes aumenta a capacidade de assimilação de poluentes e a resistência às tempestades e erosão costeira. Acresce ainda que estas zonas marinhas, através dos seus planos de gestão, contribuirão para ampliar os nossos direitos para além das 200 milhas da ZEE. Mas para que tudo isto seja viável, é preciso uma gestão adequada, ou seja, capaz de planear, gerir e monitorizar, a prazo; com estabilidade financeira que assegure continuidade, com novos fluxos de receitas e instrumentos fiscais; e contando com o envolvimento e empenho das comunidades locais, fornecendo-lhes oportunidades e incentivos. No ano internacional da biodiversidade, é urgente criar mais áreas marinhas em alto mar e na costa, bem como dotar as que já existem - Arrábida, Berlengas, Litoral Norte - com os meios de que necessitam e merecem. MarGov

E a propósito do envolvimento das comunidades locais no conhecimento e gestão das áreas protegidas, o Plano de Ordenamento do Parque Natural da Arrábida aprovado em 2005 esqueceu-se, como aliás praticamente todos os planos das áreas protegidas (AP), desse pormenor chamado "as pessoas". Aumentaram assim as animosidades contra o Parque por parte de quem nele habita ou trabalha. Como nada fora explicado nem debatido com as populações e sobretudo com os pescadores, não admira a contestação e o boicote de que o plano foi alvo. Entretanto, para superar esta situação de crispação e de conflito, foi lançado um projecto - MarGov (liderado por Lia Vasconcelos) - que está a ensaiar no terreno uma metodologia participativa, minimizando os danos sociais e económicos de um plano mal engendrado e sociologicamente analfabeto. Será desta que o ICNB reconhece o erro de planeamento em que tem laborado e que a todos sai caro? (E, a propósito, a consulta pública do Plano de Ordenamento do Parque Natural da Costa Vicentina e Sudoeste Alentejano decorrerá entre 18 de Março e 30 de Abril). Laurissilva, património único

Entre os vários factores a ponderar numa situação tão complexa e tão dramática como a que se vive na Madeira, dois factos ficaram nítidos. O primeiro é que os acontecimentos climáticos extremos, tal como previsto, repetir-se-ão com mais frequência. O segundo é que o ordenamento do território é um factor-chave para evitar a destruição material e a tragédia humana. Seja a desflorestação das montanhas, seja as construções em leito de cheia, tanto nas ilhas como no continente, mais do que uma imprudência, são um convite à catástrofe. Os trágicos acontecimentos na Madeira tolhem-nos hoje de falar disso, mas é impossível não pensar na importância crucial da sua floresta de laurissilva. Trata-se de uma preciosidade natural única - a que já se chama a nossa 'Amazónia' - que foi classificada pela UNESCO, primeiro como Reserva Biogenética e depois como Património da Humanidade, em 1999. Esta verdadeira relíquia já resistiu a muitas variações climáticas e constitui um reservatório genético ímpar com um potencial de futuro à espera de ser investigado. Por tudo isso, o pretendido projecto de construção de um teleférico para o Rabaçal, em plena floresta de laurissilva - que já desencadeou contra ele uma petição de 5 mil assinaturas e levou a UNESCO a deslocar-se ao local - mais do que um atentado paisagístico, significa a inversão simultânea dos valores ambientais e do ordenamento do território. Tanto mais quanto se revela urgente acautelar a floresta na Madeira e refazê-la em inúmeros lugares. Texto publicado na edição do Expresso de 27 de Fevereiro de 2010 Bioadversidade Luisa Schimdt (www.expresso.pt) 11:20 Sexta feira, 5 de fevereiro de 2010 2010, o ano da biodiversidade aponta um programa claro: restaurar o que deixámos estragar e criar condições para o futuro da nossa riqueza natural. Eis o Ano Internacional da Biodiversidade. Ou seja, o ano internacional da comida que ingerimos, da água que bebemos, do ar que respiramos, dos remédios que nos curam. Basicamente o ano internacional da sobrevivência da espécie humana. É certo que, entre nós, ainda há quem pense que isto da biodiversidade é coisa de passarinhos e relvados. Alguns até são altos responsáveis políticos, empresários, enfim, elites... Declarado este mês pela ONU, o ano de 2010 tem por objectivo chamar a atenção da humanidade para a forma ruinosa como tem conduzido a sua história recente. Ruinosa para a própria vida humana, já que esta assenta na conjugação de uma quantidade imensa de formas diferentes de vida terrestre e marinha. É essa quantidade imensa que se chama biodiversidade. As vastas destruições de toda esta variedade da vida criaram uma situação alarmante, contra a qual a ONU vai este ano batalhar. Nisto da biodiversidade, Portugal é um curioso caso de laboratório. Desde há mais de dois séculos que o país é considerado como um verdadeiro tesouro. Cientistas de grandes universidades europeias e portuguesas estudaram lugares preciosos como Monchique, Buçaco, Gerês, serra da Estrela, Madeira e Açores. Devido à nossa localização geográfica reúnem-se aqui condições de riqueza excepcionais. Infelizmente, gerações sucessivas de incultura pública e de incompetência administrativa conseguiram - e conseguem ainda - vandalizar muita dessa riqueza, cujas perdas nunca são contabilizadas. Nas últimas décadas, uma dinâmica intermitente, mas ainda assim persistente, foi conseguindo - mesmo contra as oposições mais obtusas - fazer valer alguma conservação desse notável património. O serviço de parques e a demarcação da maior parte das áreas protegidas datam de finais dos anos 70; as reservas agrícola e ecológica nacionais (RAN e REN) do início de 80; a Rede Natura dos anos 90. Infelizmente nunca se conseguiu que estes instrumentos fossem administrados com equilíbrio. Oscilaram sempre entre os excessos de um radicalismo afunilado e a perversidade das medidas de excepção. A falta de visão estratégica para este património, num país com poucos recursos, prolonga a incapacidade de compreender a sua valia económica, social e cultural. Há três anos ainda se tentou dar a ideia do magnífico recurso económico que a biodiversidade pode representar para Portugal. Mas, esmiuçando, acabou tudo resumido a uma letra aposta a uma sigla - um 'B' a seguir ao 'ICN', a entidade que gere este manancial... Sem recursos, sem programa, sem ambição e sem visão, aquilo a que assistimos por parte do Estado, foram respostas tímidas, parcelares e episódicas, sempre intimidadas pelo argumento todo-poderoso do pseudodesenvolvimento. O país parece condenado a uma espécie de milagre das rosas ao contrário: em vez dos pães para os pobres transformados em rosas, esfrangalhamos as rosas para obtermos míseras carcaças... Com dualismos destes não vamos longe. Apesar da destruição e da negligência, temos muito que restaurar requalificar, reabilitar, reforçar, reflorestar, despoluir... e o potencial a aproveitar ainda é enorme - tanto em terra como no mar. Hernâni Lopes, que foi mais ouvido em dias do que Mário Ruivo em anos, tem evidenciado, e bem, a importância do hiper-cluster do mar. A este tema dedicaremos um próximo artigo. Mas há também o hipercluster da terra. Pensemos só nas variedades autóctones (flora e fauna) em todas as frentes: comerciais, laboratoriais, alimentares, medicinais... Seja a nível de particulares, seja através do Banco de Germoplasma de Braga, guardar, estudar, desenvolver este património deveria ser uma das heranças do ano da biodiversidade em Portugal. Havia também que incentivar os programas agro-ambientais e silvo-ambientais, e toda a fileira dos produtos certificados que lhes estão associados. Outro objectivo deveria ser a reabilitação dos rios, esses autênticos cordões sinópticos da biodiversidade. A saúde dos rios é a saúde do território e salta aos olhos o valor económico, social e cultural de ter cursos de água sãos... E que dizer do restauro dos quadros de paisagem e de uma cultura cívica em torno dela? Isso sim é que serviria um verdadeiro turismo sustentável e de alta qualidade. Um turismo de excelência como sublinhava, no último sábado, um artigo do jornal "The Times", referindo-se ao 'outro Algarve' - o da Costa Vicentina - chamando a atenção para a identidade e os valores naturais únicos desse Parque. 2010? Tudo menos passar o ano a tocar a velha cantiga de sensibilização e da sua poesia para embalar. O nosso ano internacional deveria ser o do restauro das nossas biodiversidades. GUARDAS DA NATUREZA EM VIAS DE EXTINÇÃO

O Parque Natural do Douro Internacional não tem actualmente um único vigilante para cuidar dos seus 81.150 hectares. Criado em Maio de 1998, previa contratar sete técnicos e oito vigilantes, mas, ao cabo de uma dúzia de anos, tem só quatro técnicos mal equipados... Este é apenas um exemplo do muito que se passa, ou não se passa, nas nossas áreas (des)protegidas. Três anos depois da reforma do Instituto de Conservação da Natureza, ao qual se acrescentou um 'B' (de Biodiversidade), nada a registar a não ser a fragilização da sua estrutura de funcionamento. O 'B' não trouxe bravura, nem brilho, nem brio às áreas protegidas (AP). Agrupadas agora por tipologias, e não por proximidade territorial, a mesma equipa de gestão anda aos ziguezagues da Serra da Estrela para a de S. Mamede e desta para a da Malcata, para dar só um exemplo... É certo que também há medidas positivas, como o Projecto Lince, resultante de uma contrapartida dos impactos negativos da barragem de Odelouca no Algarve. Mas acabam por ser avulsas e não compensam a precariedade em que vivem as AP, sem funcionários, sem força, sem ânimo. Nem compensam os atentados impunes que continuam: estradas (veja-se a Mata dos Medos, na Arriba Fóssil da Costa de Caparica, ou os IC na Serra da Estrela), projectos PIN e até alguns excessos das eólicas. Nos tempos de António Guterres, as áreas protegidas chegaram a ser consideradas estratégicas. Uma Resolução do Conselho de Ministros de 1998 decretava que as populações nelas residentes deveriam ser alvo prioritário de investimentos que melhorassem a sua qualidade de vida (na saúde, educação, cultura, ciência...) Na altura nada se fez. Que tal ressuscitar esta importante medida e dar-lhe finalmente aplicação no ano da biodiversidade? Só mobilizando as populações locais - antigas ou novas - se conseguirá conservar a natureza... RIOS TINTOS...

E a propósito do empenho das populações, vários inquéritos mostram que a água dos rios é uma das principais preocupações ambientais manifestadas pelos portugueses. Os rios são bioindicadores da nossa saúde ambiental; a água é o bem mais precioso do século XXI. O Relatório do Millennium Ecosystem Assessment recentemente publicado mostra como cerca de 40% dos nossos cursos de água estão em mau estado e 70% dos peixes de água doce estão ameaçados. Tudo isto, ao cabo de vários milhões de fundos europeus investidos no sistema de saneamento básico e despoluição. Outra das conquistas do ano deveria ser restaurar os rios e devolvê-los à sua vida própria e às populações. A ROM NÃO SE FEZ NUM DIA

E por falar em populações, aquilo que, apesar de tudo, vai mexendo em termos de conservação da natureza no país é alguma sociedade civil organizada localmente. O caso da Reserva Ornitológica do Mindelo (ROM) é exemplar. Situada na Área Metropolitana do Porto, concelho de Vila do Conde, a ROM foi uma das primeiras áreas naturais a ser classificada no país, em 1957, quando ainda não havia sequer regime legal para isso. Tudo resultou da coragem e entusiasmo do cientista e ornitólogo Santos Júnior, que se apercebeu da riqueza paisagística e natural da zona. Mais tarde, em 1987, houve uma proposta para a ROM entrar na rede de áreas protegidas. Mas as manobras políticas dos interesses económicos foram enormes, ou não se tratasse de uma zona litoral na AMP... Choveram os projectos urbanísticos e as pressões. Contra tudo isso, um movimento de cidadãos organizados - PROMindelo - conseguiu reunir 7 mil assinaturas e demonstrar, através de um inquérito, que mais de 80% dos cidadãos locais queriam a protecção da área. Conhecimento, comunicação, envolvimento, entusiasmo e convicção - foram as palavras-chave que conseguiram que o movimento liderado por Pedro Macedo levasse ao reconhecimento oficial da ROM. Em finais de 2009, a Assembleia Metropolitana do Porto aprovou por unanimidade e aclamação a Paisagem Protegida Litoral de Vila do Conde e ROM. Tudo devido à qualidade científica do projecto associada à persistência cívica na luta pela qualidade de vida - um exemplo de sustentabilidade. Texto publicado na edição do Expresso de 30 de Janeiro de 2010 Copenhaga Solução-Titanic Luisa Schimdt (www.expresso.pt) 13:04 Quarta feira, 13 de janeiro de 2010 (Des)acordo Passado um mês sobre a Cimeira, as alterações climáticas continuam a alterar o mundo - um mundo que não soube ser global para resolver problemas globais. 2010 dirá. Projectada para concertar à escala global um problema global, a Cimeira de Copenhaga acabou por desglobalizar a questão das alterações climáticas e teve duas consequências maiores. Primeiro, confirmou a importância, extensão e gravidade do próprio fenómeno. Depois de Copenhaga não restam dúvidas sobre a dimensão e estrutura do problema: as alterações climáticas existem e teremos de contar com elas nos cenários mais agravados. Segundo, recusou a oportunidade que o problema global abria a uma solução global de cooperação. Prevaleceu a velha regra cínica que tanto tem amaldiçoado a vida humana: o salve-se quem puder! Vamos ao primeiro ponto. As alterações climáticas, com o seu vasto cortejo de implicações ambientais nos recursos; na biodiversidade; nos territórios, são incontestáveis e os seus efeitos fazem-se sentir mais depressa e mais profundamente do que chegámos a esperar: degelo, subida do mar, tempestades, secas, doenças tropicais fora dos trópicos, refugiados... As suas causas, essas, assume-se que são múltiplas - naturais e antrópicas. Entre estas últimas, destacam-se as concentrações inéditas de metano e de dióxido de carbono (CO2), este último em comprovado aumento contínuo desde o século XVIII devido ao consumo de combustíveis fósseis nos países industrializados. Esta associação entre o actual processo das alterações climáticas e os gases com efeito de estufa (com destaque para o CO2), reforça a necessidade de mudar o paradigma energético. Ou seja, substituir os combustíveis fósseis (sobretudo petróleo e carvão) em que têm assentado todos os processos de desenvolvimento, o que envolve uma mudança científica e tecnológica rápida que nos liberte da sua dependência. Questões económicas e geoestratégicas sublinham esta recomendação. Mas mudar o paradigma energético não é fácil nem barato e, por isso, só quem já é desenvolvido e rico está em condições de pagar o encantador luxo de "descarbonizar a sua economia" como agora se diz. A questão não é, claro, assim tão linear porque os países e as sociedades também não são simples e homogéneas. Mas, em geral, o que resulta é que, na visão dos países pobres, não há outro caminho praticável para sair da pobreza que não seja poluente. A menos que, num gesto decente e até interesseiro, os países mais ricos transferissem para os mais pobres não só as tecnologias necessárias como os meios económicos que os dispensassem de prosseguir no modelo produtivo baseado em combustíveis fósseis, recursos que alguns deles têm, aliás, com abundância. A mudança de paradigma energético, tem assim um significado muito diferente, conforme se trate de um país pouco, muito ou medianamente desenvolvido. Esta diferença entre países não é só de desenvolvimento. É também de vulnerabilidade. Os países menos desenvolvidos, quase todos do hemisfério sul, estão muito mais expostos às consequências das alterações climáticas. Seja por razões naturais como a localização; seja por ressaca da sua história recente; seja pelos efeitos de utilização desequilibrada e intensiva dos seus recursos, seja pela incapacidade de resposta organizada aos fenómenos extremos, as suas populações sofrerão de forma mais drástica todos os impactos negativos das alterações climáticas - das tempestades às secas, da submersão costeira ao degelo, das crises sanitárias às alimentares. Vamos ao segundo ponto. Copenhaga, num cenário de tantas desigualdades, podia ter escolhido equilibrá-las, mas preferiu transformar o problema em dilema e optar pela solução-Titanic: o salva-vidas é para a primeira classe. Quer isto dizer que, cientes da gravidade das alterações climáticas, os governantes do mundo decidiram promover acima de tudo o cínico paradigma da 'adaptação', deixando às diferentes dinâmicas dos diversos países a suposta liberdade de se adaptarem mais depressa ou mais devagar, melhor ou pior, à mudança climática, e, em coerência com isto, a liberdade para reduzirem mais ou menos as suas emissões de GEE. Como os países desenvolvidos são os únicos que estão em condições de explorar as possibilidades de um novo paradigma energético e como são também os únicos que têm dinheiro, ciência e tecnologia para reagir às consequências das alterações climáticas e diminuir os seus efeitos calamitosos, ficarão a chorar no salva-vidas os pobres desgraçados que se afogam em seu redor. Um mês depois da Cimeira, ainda é cedo para ponderar todas as suas consequências, mas já James Lovelock num livro recente - comparando o confortável mundo ocidental a um barco onde o capitão e oficiais têm que decidir quantos e quais refugiados podem aceitar - alertava para o risco de desumanização da humanidade que a actual situação comporta. Copenhaga parece estar a dar-lhe razão e, a ser verdade, está a abrir-se um ciclo vicioso. É que o mundo não é esférico por convenção ou por decreto e não é possível imunizar uma fracção do planeta àquilo que se passa com o restante. Mesmo que se queira explorar a desigualdade a nosso favor, o problema fará a sua própria circum-navegação. Os desafios das alterações climáticas não acabaram no reino da Dinamarca. Perdeu-se uma oportunidade, mas não se perdeu a última oportunidade. 2010 o dirá! O mar enrola na terra

Independentemente do que aconteceu em Copenhaga, a subida do nível do mar - que resulta da fusão das calotes polares e da dilatação da água - é um facto incontestado. Por sua vez, o recuo da linha de costa não se dá apenas porque o copo está mais cheio de água; é também porque o copo está mais agitado: maior ímpeto das tempestades marítimas implica maior impacto físico sobre o litoral. No caso português, a situação é clara. Alveirinho Dias, geólogo da Universidade do Algarve, há muito que estuda o assunto: se entre 1920 e 1990 a taxa média de subida do nível do mar foi de 1,7mm/ano, entre 1990 e 2000 foi de 2,5mm/ano. Os impactos também são claros: galgamentos com forte redução de área costeira, recuo da linha de costa, erosão dunar, desaparecimento de praias, infra-estruturas costeiras destruídas; derrocadas de arribas (relembre-se Albufeira); lagunas e estuários afectados com perda de terrenos agrícolas, salinização dos aquíferos, etc. Há anos que se alerta para a nossa insegurança costeira e se brama contra a forma irracional de ocupação do litoral. Nada acontece. Veja-se o caso da Costa de Caparica: gastam-se em média cinco milhões de euros por ano a deitar areia em S. João da Caparica para impedir que o mar avance paulatinamente. Mas é deitar açúcar num copo de água: rapidamente o efeito se desfaz. Entretanto, alheio a tudo isto, a proposta do Polis prevê o aumento do número de fogos com vistas para o mar - de melhor qualidade do que o degradado parque de campismo, sem dúvida, mas com que futuro frente ao mar? À custa de abusarmos das frentes marítimas, acabará o mar por abusar das frentes urbanas. O que Copenhaga nos mostrou nas suas incipientes conclusões foi justamente a importância das medidas de adaptação às inevitáveis mudanças climáticas - por isso, é preciso começar a agir já no nosso litoral - ou seja, recuar construções e não deixar construir lá novas. Mais uma vez, o que temos de melhor é leis, leis, leis. A recentemente aprovada Estratégia para a Gestão Integrada da Zona Costeira traria algumas soluções, mas, tal como os outros planos deste país, tornou-se mais um adorno de biblioteca. Leis, leis, leis...

Sim, leis, temos muitas. Será por isso que vão para o lixo tão depressa? A recente lei de benefícios fiscais para abate dos automóveis obsoletos, geralmente muito poluentes e energeticamente ineficientes o que vai dar ao mesmo, cessa de vigorar no final deste mês de Dezembro. Há uns anos Portugal encheu-se de carros velhos e baratos, importados directamente de países europeus que já não os queriam, originando uma autêntica fábrica ambulante de toxicidade ambiental a espalhar dano pelas ruas e pelas estradas. Então táxis, autocarros e camionetas, são uma desgraça ambiental diária. Em plena crise económica, e perante as alterações climáticas, num país em que tudo anda sobre rodas menos o que devia, a suspensão deste benefício fiscal vai condenar-nos a mais poluição e irracionalidade energética. Tal como a propaganda diz, somos um país de tradição e modernidade. O problema é que algumas das nossas tradições são como o litoral e a sucata rolante; e algumas das nossas modernidades são como esta lei: duram apenas um instante... Solstício de inverno, ou talvez não

O solstício também é um instante. No caso do Inverno, é o momento em que estamos mais longe do sol, mas em Portugal estamos ainda mais longe. O benefício fiscal para a instalação de painéis para a água quente solar nas casas, que cobria metade do custo dos equipamentos a instalar na casa e ainda abatia o IRS, poderá acabar em 2010. Ainda mal a opinião pública começara a perceber a mensagem e as suas vantagens, e... já não vale. Para mais, a medida estava a começar a ser um sucesso e, convém relembrar, que só temos ainda cerca de 230 mil m2 de painéis solares instalados, quando o objectivo do Programa E4, aprovado em 2001, era de um milhão... Espera-se, pois, um novo vigor nesta tão enérgica lei. É que, independentemente do que aconteceu em Copenhaga, a aposta na eficiência e autonomia energéticas bem como nas fontes renováveis e infinitas, é absolutamente prioritária. Texto publicado na edição do Expresso de 9 de Janeiro de 2010 A paisagem da corrupção Luísa Schimdt (www.expresso.pt) 0:01 Quarta feira, 2 de dezembro de 2009 Urgência. Parecem coisas distantes uma da outra, mas que o 'Pacote Cravinho' volte a ser assumido no Parlamento é o mais significativo sinal de esperança para o ambiente e ordenamento do território no país que há anos tropeça no desleixo. Nunca tanto como agora o tema da corrupção esteve na ordem do dia. A onda de fundo começou a partir da década de 90. Fiscalistas, magistrados juristas, deputados, jornalistas, comentadores e até um ex-presidente da CIP... foram apontando para a existência de uma espécie de mistério informe que parecia contaminar a sociedade portuguesa de uma ponta à outra. Justamente por ser misterioso e informe criou as mais desvairadas suspeitas. Começava a parecer que todo país era um caos fétido de corrupções passivas e activas, grandes e pequenas. Rapidamente alguns ângulos do polígono da corrupção mostraram os seus bicos: disparidades grosseiras entre ostentação de consumo e declarações de impostos; propensões sistemáticas para os mesmos adjudicatários de concursos; circulação contínua entre lugares políticos e empresas; desvios constantes entre orçamentos aprovados e custos finais nas obras públicas... Enfim, o invisível estava à vista apenas escondido pela banalidade da sua generalização. Alguns pontos inflamatórios da doença surgiam com insistência: obras públicas, adjudicações, decisões autárquicas, empresas públicas, SAD, consultorias, contas dos partidos. A grande máquina da corrupção assentava afinal no clientelismo generalizado em rede. E o clientelismo assentava numa tradição antiga de fragilidade da sociedade civil e no seu jogo de protecções. A dinâmica à escala nacional da agora tão falada corrupção traduz os mais profundos impedimentos ao sucesso do país em todos os seus grandes objectivos. E há um que tem sido a face visível de muitos outros e que põe em xeque aspectos determinantes do futuro de todos nós. Trata-se da cadeia viciosa do ordenamento do território/ infra-estruturas públicas/caos urbanístico/imobiliário/administração local e central. João Cravinho, que ocupara a pasta do Ministério do Equipamento, Planeamento e Administração do Território, percebeu bem este verdadeiro carrossel de vícios pelo qual circula o veneno da corrupção de que agora tanto se fala e que se pretende finalmente atalhar. Enquanto deputado propôs por duas vezes, em 2006, fazer aprovar um conjunto de regras e um pacto geral contra a corrupção. Não conseguiu. Posteriormente, lá foi saindo uma ou outra medida solta, tal como o Conselho de Prevenção da Corrupção entregue, em boa hora, a Guilherme d'Oliveira Martins. Mas só agora, pela primeira vez desde a proposta de Cravinho, existe um aparente consenso entre todas as forças políticas para se avançar a sério. O tempo que demorou nos quadros políticos portugueses de todos os quadrantes a integrar a necessidade daquilo que ainda há três anos fizeram reprovar no Parlamento, dá bem medida da profundidade vascular que o problema alcançou no nosso país. Ora, quem ler o 'Pacote Cravinho' percebe que não se trata de um conjunto de medidas radicais como se fez constar com óbvias intenções de boicote e manipulação da opinião pública. O ponto central assumia que a corrupção se instalara em rede (ou em teia) ligando administração pública, partidos, empresas públicas e privadas. Logo, a questão de partida é menos de polícia do que de política e, portanto, remete para a responsabilidade do Governo e do Parlamento. Estes teriam de apreciar e deliberar os relatórios e propostas de uma Comissão para a Prevenção da Corrupção independente a funcionar junto da Assembleia da República (AR) e também explicar-se perante o insucesso das suas próprias medidas. A Procuradoria Geral da República teria de reportar à AR os temas da corrupção a tratar prioritariamente. Como actividade de risco agravado identificava-se, entre outras, a gestão urbanística. O Pacote não pretendia reeducar a cidadania portuguesa. Os seus objectivos eram prudentes e realistas, preventivos e dissuasores e não propriamente um sonho irrealizável. Precisamente por isso ficou como um fantasma na consciência a assombrar a classe política portuguesa e hoje todos falam dele e procuram um processo não embaraçoso de o retomar. Felizmente o Conselho liderado por Oliveira Martins já adoptou algumas medidas. E está hoje nas mãos de Vera Jardim fazer vingar muitas das regras anteriormente chumbadas e mais algumas (incluindo o enriquecimento ilícito dos titulares de cargos públicos). O desgaste profundo que uma velha e já insuportável cultura política interna ao aparelho dos partidos provocou na estatura moral da sociedade civil, tem agora a oportunidade de se restaurar. Esta é uma mudança que já não pode recuar. Disso dependem todos os futuros do país e, em particular o futuro dos seus martirizados valores ambientais que a ruína e desleixo das paisagens a cada passo denunciam. Foi pena o tempo que se perdeu; há que não perder mais nenhum. Ministério Público e do Ambiente em união de facto

Por falar em necessidade de mudança e num regime mais salutar, transparente e funcional da administração pública, destaque-se o Protocolo estabelecido antes das últimas legislativas entre o Ministério do Ambiente e o Ministério Público, promovido por João Ferrão, então secretário de Estado do Ordenamento do Território e das Cidades. O objectivo é fornecer apoio técnico mútuo; colaborar em acções de formação; debater conjuntamente matérias relevantes no domínio do ordenamento do território e, sobretudo, suscitar a fiscalização efectiva pelo Ministério Público sempre que as comissões de coordenação regionais (CCDR) e a Direcção-Geral de Ordenamento e Urbanismo (DGOTDU) detectem incompatibilidades e desconformidades entre os planos municipais de ordenamento do território e os planos regionais, sectoriais e especiais. Além destas vantagens, tem também a de instalar uma pedagogia assente numa cooperação mútua. Deste protocolo espera-se ainda não só maior clareza no funcionamento das autarquias locais, as quais adquiriram legalmente nos últimos dois anos maior responsabilidade na gestão territorial, como um reflexo pedagógico continuado e progressivo envolvendo a administração central e local. Estamos ainda longe do modelo de Espanha, onde o Ministério Público criou um corpo interdisciplinar de peritos para tratar do crime ambiental e urbanístico - este último, aliás, nem sequer tem figura jurídica entre nós. Mas foi um passo. É urgente que seja activado tanto pelo Ministério Público como pelo Ministério do Ambiente, não o remetendo para as gavetas fundas do costume. Bruxelas esmiúça barragens

Por falar em pedagogia, há lições a retirar do embaraçoso relatório de 400 páginas que a Comissão Europeia (CE) enviou ao Governo português sobre o seu Programa Nacional de Barragens. Eis algumas dessas lições. 1ª) Ser teimoso não comprova ter razão. O Plano de Barragens do Governo pode ter propostas muito interessantes, mas o que ele não pode ser é um documento blindado ao confronto com outros argumentos. 2ª) Ter intenções não garante resultados - as contas que cada vez mais entidades e especialistas fazem aos ganhos e perdas do Programa de Barragens na sua globalidade divergem das contas optimistas que o Governo fez. Não é vergonha, em democracia, levar em linha de conta outras opiniões e rever algumas decisões. 3ª) A pedagogia da participação pública é uma construção difícil e lenta mas necessária. Ora, não se activa nenhuma participação cívica eficaz desmobilizando processos de consulta, desencorajando informação e notícia, empatando dados, ignorando em absoluto o esforço participativo da sociedade civil, tratando até com alguma soberba as ONG. Afinal, o parecer delas, tal como o do CNADS, tinha merecido ser ponderado a tempo e horas, poupando talvez ao Governo o embaraço de receber da CE um relatório em vários aspectos bem mais severo. Veja-se a atenção que Bruxelas deu às questões centrais dos caudais mínimos não assegurados, da redução da qualidade da água, da afectação dos peixes, do desconsiderado impacto das alterações climáticas e ao modo como estes factos podem pôr em causa a própria rentabilidade de muitas destas obras. Como nalguns casos já foram criados compromissos, ainda vamos ser todos nós a pagar algumas indemnizações por má gestão oficial do assunto. Era bom que o Governo reagisse com abertura e se debatesse seriamente os prós e os contras de todos e de cada um destes investimentos e os motivos. Tanto mais que as dúvidas estão instaladas. Lisboa em consulta

E a propósito de participação, o PDM de Lisboa está em fase final de elaboração e a CML, manifestando-se aberta e disponível, criou uma nova modalidade prévia à consulta pública para os cidadãos pedirem informações e formularem sugestões. As propostas estão disponíveis online (pdm.cm-lisboa.pt). Entretanto, até 28 de Dezembro, está patente no Atrium do ministério das Finanças ao Terreiro do Paço uma exposição sobre os projectos e planos propostos para a cidade. Aterro da Boavista, Parque Hospitalar Oriente, Parque Mayer, Alcântara... está lá tudo. Vale a pena ver pormenorizadamente os Planos de Pormenor - alguns levantam muito sérias preocupações. É participar! É participar! Texto publicado na edição do Expresso de 28 de Novembro de 2009 A lógica invertida Luisa Schimdt (www.expresso.pt) 9:00 Domingo, 1 de novembro de 2009 É urgente uma mudança de era na administração local que acabe com a viciosa articulação entre o financiamento das autarquias e os negócios do imobiliário. Enquanto as iluminações de Natal não vierem varrer de vez os emplastros publicitários das eleições, estes pelo menos ainda nos vão lembrando que há bem pouco tempo o país foi a votos para a administração local. Se esta é importante pela história e pela muito invocada proximidade aos cidadãos, no futuro sê-lo-á ainda mais. Aliás, maugrado os muitos casos deprimentes, pode dizer-se que os melhores governos a que o país tem assistido têm-se exercido em autarquias. É uma tradição que se iniciou logo a seguir ao 25 de Abril com o generalizado reconhecimento público da competência de gestão autárquica de algumas câmaras da CDU que fez época e criou padrões de referência. Évora era sempre dada como o melhor exemplo e, não por acaso, foi das primeiras autarquias a fazer um PDM, muito antes da lei o obrigar, e lançou mecanismos de transparência e participação, criando uma comissão da cidade composta por notáveis de várias filiações partidárias e sectores profissionais. Felizmente o exemplo foi seguido pelas outras formações partidárias, e só é pena que esta excelência das gestões autárquicas continue tão tristemente excepcional no mapa nacional. Gerir uma autarquia implica hoje competências exigentes e uma grande atenção à sobreposição de várias escalas: internacional, comunitária, nacional, regional... Tudo servido por novas estruturas de comunicação e de informação. Por seu lado, os munícipes também já não são o que eram há 30 anos e, cada vez mais, uma autarquia tem de governar para os seus residentes e para todos os outros que lhe atravessam o território num mundo em circulação. Por isso, chega a ser confrangedor assistir ao polígono de vícios que condenam a vida autárquica a negar-se a si mesma e a reproduzir indefinidamente os erros que era suposto ter corrigido há muito tempo. Dois aspectos são particularmente graves. Um, pelas consequências desastrosas que tem no já muito escangalhado ordenamento do território. Outro, pela corrosão que traz aos valores da democracia. O primeiro decorre da já insuportável perpetuação do financiamento das autarquias a reboque dos negócios do imobiliário, um vício que por toda a Europa já foi praticamente resolvido. Que eficácia pode ter uma política de ordenamento do território quando, ao nível autárquico, a principal fonte de receitas é a compra e venda de casas? E quando as mais-valias geradas por decisão administrativa revertem na sua totalidade para o mediador que conseguiu 'convencer' uma autarquia a tornar urbano um terreno que ele comprou barato - porque era rural - a quem, por vezes, nem a sua própria casa lá conseguia construir? O que vale o ordenamento quando todos os espacinhos livres de uma cidade, incluindo logradouros, são cobiçados para empilhar andares? O que vale o ordenamento do território sem uma lei de solos e sem um cadastro? No futuro, a gestão autárquica terá de ficar desembaraçada desta subordinação ao imobiliário. A situação é de tal modo insuportável que até já os próprios autarcas protestam contra esta patologia que, além do mais, como é do conhecimento público, se liga a um vasto circuito de corrupção, nepotismo e clientelismos. O segundo aspecto grave prende-se com o afastamento dos munícipes face à vida local. A negligente informação, a sobranceria de atitude e a velha cultura aparelhista partidária que se transfere para os elencos autárquicos leva-os a cuidar mais das suas redes internas do que daquilo que verdadeiramente importava, que é a interacção com os cidadãos. Já hoje, e cada vez mais no futuro, a participação é um critério essencial da qualidade governativa. Para a activar, é necessário ter a paciência e a persistência - sem contar com a coragem - de informar com clareza e eficácia os munícipes sobre o que se faz, o que aconteceu, o que se projecta, o modo como se utilizaram os recursos públicos. Esta é a única maneira de ir a pouco e pouco interessando as pessoas. Não é nenhum mistério, mas exige treino... A Agenda Local 21 (AL21) e o Orçamento Participativo (OP) são hoje dois instrumentos fundamentais para iniciar o processo de gestão autárquica do futuro. O primeiro leva a autarquia a trabalhar com os munícipes na definição partilhada de um Plano de Acção Local que integre de forma equilibrada imperativos sociais, económicos e ambientais. O segundo permite-lhes ajudar a decidir o destino dos orçamentos municipais e seus investimentos prioritários. Inúmeros estudos comprovam que tanto a AL21 como o OP são mecanismos eficazes para reduzir a abstenção e aumentar o nível de desenvolvimento nas localidades que as praticam. Nas próximas eleições, cerca de metade dos autarcas serão obrigatoriamente substituídos. O processo, tal como o futuro, começa já. A rolha que rói o rato Em pleno Largo do Rato, no lado oposto à sede do 'partido do Governo' nasceu um caso que se arrisca a ficar, não só para a história da cidade, como da relação entre os promotores privados e os poderes públicos. O que está em causa é a supina perversidade com que o Rato e a capital do país ficaram reféns de um projecto imobiliário. O edifício proposto tem uma dimensão brutal que rebenta com a escala do Largo (para dizer o menos). Mas, para já, centremo-nos no processo. Um promotor que dá pelo sublime nome de Artepura consegue em 2005 (nos tempos de Santana Lopes e Eduarda Napoleão) fazer aprovar um conjunto de metros quadrados de construção traduzidos agora num projecto de imóvel para o Largo do Rato, no gaveto entre a rua do Salitre e a Alexandre Herculano. Quando se discutiu o licenciamento, em 2008, com outra vereação, inúmeros problemas legais se levantaram. Entre outros, falta um Plano de Pormenor; o projecto não cumpre o regulamento de urbanização (REGEU) no que respeita às cérceas e não só. Também foi invocada a falta de integração arquitectónica no Largo que, não sendo um requisito legal, é muito grave. Perante isto, a obra não foi licenciada; a maioria dos vereadores votou contra. O promotor, com um direito que nunca deveria ter adquirido, e contestando o chumbo ao licenciamento, veio pedir uma indemnização de dezoito milhões de euros, a ratear pelos onze vereadores que lhe chumbaram o licenciamento (ou seja, 1,6 milhões de euros por cabeça e directamente ao bolso de cada um) ao abrigo da nova lei da responsabilidade extracontratual, que responsabiliza directamente os decisores pelos seus actos quando esteja em causa erro grosseiro ou outras formas de culpa. Depois de ter intimidado os vereadores, num gesto da mais depurada arte, a Artepura mostra-se graciosamente disposta a 'negociar' algumas alterações ao projecto e retirar as acções, desde que os vereadores se despachem a licenciar, invertendo a decisão anterior. Não é isto um inaceitável acto de chantagem sobre pessoas que estão a defender o interesse público? Como se pode cumprir funções públicas coagido por uma ameaça directa aos bens pessoais e familiares? Uma decisão política deverá poder estar sujeita à segurança patrimonial privada? A resultar, este caso abre um precedente perigosíssimo - porque faz pensar que, a partir de agora, basta ameaçar com uma acção judicial e os responsáveis públicos recuam. A nova vereação tem aqui a sua primeira prova de fogo - e de carácter. O interesse público não pode ceder a chantagens. E se é justo que as decisões administrativas não vivam entrincheiradas no arbítrio e na irresponsabilidade, também não é aceitável que a correcção desse vício se faça por intimidação directa. Ainda por cima, com base numa lei que foi criada para limitar erros graves, e não decisões de boa fé em defesa do interesse público. Nenhuma administração deve agir sob coacção. Casos como este mostram como é cada vez mais essencial a participação pública e a transparência informativa. Voltaremos. Está mal? Paciência... O fantástico resultado da sindicância que, a pedido da própria CML, foi feita aos serviços de urbanismo da autarquia, resultou na identificação de um número de casos suspeitos incrivelmente elevado. Vários projectos assinados sempre pelos mesmos arquitectos; ligações obscuras entre funcionários públicos e interesses privados; e muitas aprovações que infringem leis e regulamentos. São mais de mil. Perante isto, levantou-se o problema da exequibilidade da justiça, pois, segundo a CML, só para reanalisar os processos, a autarquia entraria em paralisia geral de funcionamento. Compreende-se o argumento. Mas pode-se aceitar com tamanho à-vontade que a justiça não se faça? E isso não tem custos também? Sim, e enormes! Seria um péssimo sinal se a autarquia decidisse, por questões de pragmatismo, passar uma esponja sobre tudo o que está errado nos processos que mandou examinar e que lhe compete supervisionar e levar até ao fim. Resta saber se não há soluções técnicas alternativas que permitam honrar a justiça sem bloquear a câmara. Por favor, expliquem muito bem aos lisboetas como são tomadas estas decisões. De preferência, antes de as tomarem. Texto publicado na edição do Expresso de 31 de Outubro de 2009 Pág. 2 de 3 « ... | 1 | 2 | 3 | ... » Ver 10, 20, 50 resultados por pág.

Pág. 2 de 3 « ... | 1 | 2 | 3 | ... » Ver 10, 20, 50 resultados por pág. Tempos que correm... Luisa Schimdt (www.expresso.pt) 9:00 Quarta feira, 4 de agosto de 2010 Sociologia. Entre as sequelas do 'climategate', os problemas sociais das economias emergentes e da Europa e os grandes interesses a adquirirem terra arável e água em países pobres, um congresso refletiu sobre um mundo em dificuldades. Os tempos que correm não estão para graças. O Congresso Mundial de Sociologia que decorreu este mês na Suécia deu um destaque indesmentível às questões ambientais, sobretudo às alterações climáticas, à sustentabilidade e aos processos de governança em tempos de crises uniformemente aceleradas. O mote foi logo abordado de início por Craig Calhoun, que passou o desfile das várias crises que se encavalitam e multiplicam e confluem na crise ambiental. O pior, todavia, é a persistência cega em negá-la. Uma cegueira que, como pudemos ouvir com espanto, não hesita em chegar ao crime. O célebre 'climategate' deslindou-se e passou, mas deixou marcas. Sabemos hoje que os cientistas da Universidade de East Anglia (UEA) estavam certos. O que não sabíamos era que os interesses fundamentalistas do gate chegaram ao ponto de ameaçar individualmente os cientistas e suas famílias. Soubemo-lo por narrativas impressionantes de Tim O'Riordan, da UEA, bem como de Riley Dunlap, para outros casos nos Estados Unidos. É assustador pensar na vulnerabilidade política do trabalho científico, mesmo nos contextos que julgaríamos mais lúcidos e mais livres. Sim, as condições sociais da produção do saber científico são-lhe decisivas a muitos títulos, como lembrou Steven Yearley, da Universidade de Edimburgo. E, acrescentaríamos, as condições éticas do trabalho jornalístico também. Por exemplo, factos enormes conseguem invisibilidades mágicas. Saskia Sassen, da Columbia University, alinhou uma coleção de factos monstruosos que têm deslizado discretamente para a realidade sem que a comunicação social tivesse dado pela sua dimensão. Lembro alguns, todos ligados à aquisição de extensões colossais de territórios por grandes interesses económicos, visando assegurar para si blocos de recursos essenciais: espaço, água e solo arável. No dia do apocalipse, salvam-se os condóminos destes resorts de sobrevivência; dos seus 'portões' para fora a humanidade sucumbe. A Coca-Cola adquiriu na América Latina, em Chiapas, duas grandes reservas montanhosas de água potável, um recurso cada vez mais escasso. Os Emirados Árabes compraram já vastas terras aráveis ao Sudão para assegurar o cultivo de cereais. Companhias indianas fizeram-no noutros países africanos. Empresas sauditas e de outros países árabes negociaram no Paquistão centenas de milhares de hectares para a produção de alimentos e, no pacote, os serviços de 100 mil soldados do Exército local para protegerem o corredor da sua exportação. Os chineses e várias companhias europeias têm adquirido territórios nos países africanos para produção de biodiesel. Há muitos interesses económicos a negar as alterações climáticas, mas, como vemos, há ainda mais a levá-las muito a sério e a tratar de reservar um 'salva-vidas'. Pelo sim e pelo não, e mesmo que isso signifique espoliar e deslocar as populações à força. A ciência climática pode ter as suas heroicas incertezas, mas as dimensões sociais e humanas dos problemas ambientais, essas, rodeiam-na e atravessam-na por todos os lados de forma cada vez mais apertada: são factos sociais que estão no agravamento do atual efeito de estufa; são factos sociais as suas dramáticas consequências; são factos sociais que desencadeiam as dinâmicas de toda a crise. Em nenhuma situação se observa melhor a condição social dos problemas ambientais do que nas catástrofes. Nelas encontramos um recurso para avaliar e preparar a resposta à nossa futura e já presente, aliás, condição ambiental. Numa comunicação inspiradora, Raymond Murphy, da Universidade de Otava, lembrou o que podemos aprender sobre liderança pública em situações de catástrofe (usando casos como o do furacão 'Katrina' ou o do ainda vivo derrame da BP no Golfo do México). E por falar em catástrofe, recordemos o sábio alerta de Tim O'Riordan para o erro sistemático na avaliação da nossa economia insustentável. É preciso começar a fazer as contas ao contrário. Fala-se sempre com dificuldade nas célebres "externalidades", mas elas ganham uma clareza adstringente quando se calcula o custo em tratamentos hospitalares e em trabalho não prestado pelas vítimas de uma afetação ambiental gerada por uma atividade que se autodispensou de avaliar as suas consequências. E não é só a saúde pública; são os próprios custos sociais. Em Inglaterra já há cálculos sobre o preço a que se eleva a produção de uma juventude rejeitada e lançada à celebração cultural das próprias abjeções onde é obrigada a viver. A sustentabilidade é isto também: não gerar custos sociais incomportáveis a pensar que, um dia mais tarde, as entidades públicas - com polícias, prisões e hospitais - virão fazer o 'trabalho sanitário social'. Da China e da Índia as comunicações foram inúmeras: problemas sociais, ambientais e de saúde pública em crescendo. As consequências já as vivemos todos. A ocidentalização dos padrões de vida de centenas de milhões de cidadãos destes países pressiona os recursos naturais a um ponto de não retorno, como demonstrou Marina Fischer-Kowalski, da Universidade de Klagenfurt. Ouvindo as reflexões de tantos cientistas e pensadores nestes oito dias intensivos de Congresso, é inevitável pensar no nosso país, na sua queda para a asneira e no trabalho a fazer já. Enquanto os tempos que correm ainda nos dão tempo. Cidades e contrastes

Gotemburgo fica na Suécia. É uma cidade marítima e portuária e foi nela que decorreu o Congresso Internacional de Sociologia. Chegados de avião, à saída do aeroporto, foi surpreendente constatar o modo como a vasta floresta protagoniza muito mais a paisagem do que as instalações aeroportuárias. Para quem vem da Portela de Sacavém, o contraste não podia ser mais marcante. A cidade desenvolve-se numa valsa permanente com os seus próprios parques. Alguns, imensos, chegam a interromper o contínuo urbano (como aquele onde se inclui o célebre Jardim Botânico). Mas, de resto, por toda a parte existem espaços verdes, ondulados e tranquilos, no seu estatuto de jardins urbanos. Para quem vem de Lisboa e do velho disco quebrado do seu 'Corredor Verde' que nunca mais fica totalmente verde, o contraste não podia ser mais marcante. E é curioso, o negócio do imobiliário também deve funcionar na Suécia, mas por alguma razão não vandaliza nem o ambiente, nem o espaço público, nem a paisagem urbana. O contraste com Lisboa não podia ser mais marcante. Por exemplo, Haga, o velho bairro de pescadores com as suas casas de madeira, esteve para ir todo abaixo, mas as pessoas mobilizaram-se para o salvar e foram ouvidas. O bairro acabou por ser recuperado em vez de demolido e é hoje um dos mais simpáticos lugares de passeio, de pequeno comércio e de convivialidade urbana. Vida urbana amigável

A velha universidade de Gotemburgo é imponente, mas encontra-se inteligentemente distribuída por toda a cidade: em vez de ter sido remetida para um gueto artificial nalgum canto exterior, até anima o próprio tecido urbano. E animação é o que não falta nesta cidade. Às vezes até demais, com as suas sextas-feiras e sábados à noite de carrões e motas a acelerar... O velho cliché da 'naite' também por lá existe. Mas por toda a parte, fora esses momentos, a vida social parece fluir calmamente no espaço público, sem ruídos histéricos nem pressas ansiosas de trânsito. A mobilidade é tão bem organizada que, em pleno dia de semana, nalgumas ruas chega a parecer feriado. O contraste com Lisboa não podia ser mais marcante. A nossa cidade sofre terrivelmente de ruído e ansiedade rodoviária. Sem ansiedade é como parece decorrer a vida da população que faz os seus trajetos a pé, de bicicleta ou em bons transportes públicos. Por toda a parte se veem carrinhos de bebé, muitos até. Parece que ser mãe ou pai na Suécia não suscita o frenesi que por cá se impõe às jovens famílias. E não é só para os carrinhos de bebé e para as crianças. Trata-se de uma cidade verdadeiramente inclusiva, onde uma cadeira de rodas parece ter uma cidadania óbvia em toda a parte. Não há passeio ou edifício sem uma acessibilidade cuidada. Aliás, ninguém parece desconfortável nesta cidade e basta ver os muitos idosos que também circulam, aliás, com aspeto bem desportivo em ótima forma física. O contraste com Lisboa não podia ser mais marcante. Na nossa cidade, ser velho é um castigo urbano que se soma aos problemas da idade. Não se anda nas ruas atravancadas de carros, desconfortáveis, cheias de buracos e de obstáculos. Dir-se-ia que em Gotemburgo há mais sol do que em Lisboa, de tal modo a rua é usada e as esplanadas vividas. Bem sabemos que era verão, uma estação curta que é preciso aproveitar bem naquelas bandas da Europa. Mas não conseguimos deixar de pensar como o nosso espaço público tem andado desleixado e desaproveitado em cidades com tanto potencial como as nossas. São assim coisas simples que fazem da vida urbana uma vantagem excecional e do civismo uma atividade natural. É proverbial a civilidade sueca. Gostamos muito de falar da nossa extraordinária hospitalidade. Ao sentir a dos suecos não achamos a nossa menor, mas talvez não seja tão extraordinária assim. Texto publicado na edição do Expresso de 31 de Julho de 2010 Descubra as diferenças Luisa Schimdt (www.expresso.pt) 9:00 Quarta feira, 30 de junho de 2010 Planos ou voam alto, longe dos cidadãos, ou aterram em cima deles; situação deixa muito a desejar. Imagine-se a história assim. Num dado país, o governo tomava uma iniciativa e anunciava: "Estamos a preparar uma nova estratégia de planeamento nacional para um futuro de baixo carbono. Para isso contamos muito com o seu contributo e opinião, pois sabemos que nunca conseguiremos atingir objetivos económicos, ambientais e sociais nesta matéria se não envolvermos os diversos agentes e comunidades". Considera-se que o mais importante no apelo à participação cívica é, desde logo, que a consulta pública ocorra numa fase precoce do processo onde "ainda vá a tempo de influenciar as políticas". Considera-se que "os documentos facultados sobre os temas propostos para consulta deverão ser claros" e que "o documento final deverá refletir com clareza as propostas dos participantes". Toda a informação deverá ser "aberta, explicativa, sem reservas e acessível a todos aqueles que se pretende envolver no debate". As consultas deverão sê-lo efetivamente: as respostas, sugestões e opiniões deverão ser "analisadas com todo o cuidado e delas será dada informação posterior aos participantes", de modo a que eles sintam que foi útil o esforço com que se empenharam em participar. Estas regras de boas práticas de participação fazem parte da introdução ao documento apresentado para discussão pública porque, neste país, participar, ser ativo e até mesmo ativista é encarado como uma atividade normal, saudável e altamente respeitada em democracia. Não como um despropósito malcriado ou uma insolência. Imagine-se a história assim, como se houvesse um país de fantasia, onde a democracia funcionava e os planos eram construídos e sustentados por processos participativos, leais e efetivos. País de fantasia? Não. País bem real e bem próximo - trata-se da Inglaterra e o documento existe. É a parte inicial do "Planning for a Low Carbon Future in a Changing Climate", que esteve em consulta até 1 de Junho. O que mais chama a atenção, neste caso, é a distância abissal que separa as duas culturas políticas: a deles e a nossa. Já passámos, é certo, o tempo dos editais afixados na porta da Junta, ou publicados em letra microscópica no obituário dos jornais. Mas a nossa situação ainda deixa muito a desejar. Em Portugal prevalecem três grandes regras nos processos de consulta pública. A 1ª reza assim: nunca envolver as pessoas a montante na produção dos documentos iniciais, mesmo quando residem nos lugares a que o projeto de planeamento diz respeito. Os documentos apresentados vão para discussão pública praticamente em versão final sem margem para incluir eventuais resultados da suposta consulta. Os exemplos não faltam. Nos Planos dos Parques Naturais, as pessoas são um mero apontamento passageiro, mesmo sabendo-se que sem elas não haverá conservação da natureza que resista. Veja-se o recente caso do sudoeste alentejano - mal se ouviram as gentes e os agentes locais e, de repente, aparece um plano feito e pronto. O resultado será provavelmente idêntico ao que se passou na Arrábida: depois de meses de desentendimento e revolta, foi necessário a intervenção de uma equipa externa que ainda está a resolver a situação. Mas porquê sempre os mesmos erros? Mesmo nos Planos de Gestão de Bacia, onde se esperava que as novas instituições - as ARH - funcionassem com uma cultura renovada de abertura à participação, salvo uma ou outra exceção, tudo indica que vamos ter mais do mesmo. A começar logo pelos Conselhos de Região Hidrográfica compostos maioritariamente por representantes da administração. E isto apesar da Diretiva Quadro da Água definir claramente que a participação pública tem de ser efetiva. A 2ª regra reza assim: ignorar sempre todos os que fazem o esforço cívico de redigir contributos. As mais das vezes a administração nem sequer se dá ao trabalho de dar resposta, quanto mais ao de integrar sugestões. Os exemplos também são muitos: a LPN entregou um parecer de 200 páginas sobre o Proder (Programa de Desenvolvimento Rural do Continente); nem resposta obteve. O mesmo se passou com os pareceres das várias ONGA e de agentes da comunidade científica sobre o Plano Nacional de Barragens; e com inúmeros EIA (estudos de impacto ambiental) de obras públicas... A 3ª regra é clara: não levar em conta, muito menos incorporar, seja o que for sugerido durante o processo de consulta. Com este golpe final, não só não se estimula a participação como se consegue dissuadir, por desespero, os mais ativos cidadãos. Felizmente há exceções, mais a nível local do que central (como foi o PNPOT - programa nacional de ordenamento do território, ou o PROTAlgarve). Mas, em geral, o que nos é sempre apresentado como a grande competência e eficácia é o modelo de gestão hierárquica de cima para baixo, tipo modelo empresarial obsoleto, e como se não houvesse diferença nenhuma entre uma empresa e uma república. É por isso que, por cá, os planos são mais 'aeroplanos': ora voam lá muito alto longe dos cidadãos e da prática; ou então aterram pesada e ruidosamente em cima deles. Por este caminho não haverá nem governação eficaz nem democracia responsável. Mobilizar para repovoar

A contrastar com a crónica indigência dos nossos processos de participação, saúda-se o Programa Local de Habitação de Lisboa promovido pela vereadora com o pelouro da habitação, Helena Roseta, e sua equipa. Este programa tem por lema principal "(Re)Habitar Lisboa" e o seu objetivo é contribuir para inverter a grave perda de habitantes da capital (10 mil por ano) e atrair uma nova população, facilitando o acesso à habitação numa cidade onde existem hoje mais de 50 mil alojamentos devolutos. Ao mesmo tempo, pretende-se identificar zonas críticas e melhorar a qualidade da habitação - logo, de vida - de muitos lisboetas. A intenção e os objetivos são da maior importância, mas o que é francamente novo é o modo como o processo foi - e está - a ser conduzido: reuniões regulares nos bairros municipais dirigidas a moradores, organizações e juntas de freguesia (e incluindo a Gebalis), numa ação política de proximidade, debatendo carências sociais e urbanísticas e propostas de solução. O processo começou há dois anos e depois de inúmeras reuniões e validado o Programa passou-se à fase de identificação dos 50 Bairros-Zonas de Intervenção Prioritária (BIP-ZIP) onde a CML irá empenhar-se em melhorar a qualidade das habitações e do espaço urbano. Uma verba de 1 milhão de euros anuais será disponibilizada para intervenções específicas nesses bairros durante os 15 anos de vigência do futuro PDM (Plano Diretor Municipal), segundo uma metodologia de orçamento participativo. O país não é de facto avesso à democracia nem as pessoas são inertes. Basta não as tomar por parvas chamando-as ao engano para meros simulacros de participação. Participar nos orçamentos

E por falar em participação e em Lisboa, não deixe de intervir no Orçamento Participativo da cidade. Largamente divulgado em outdoors por toda a cidade e no sitío da CML, é uma ótima oportunidade para os munícipes, individualmente ou através de associações cívicas, participarem em concreto nas decisões anuais de investimento da autarquia. Trata-se, sem dúvida, de uma importante inovação democrática na governação da cidade, envolvendo e empenhando os cidadãos e aproximando governantes e governados num projeto comum! Claro que o que está em causa é apenas uma limitada fatia do orçamento camarário (5 milhões por ano). Mas não é despiciendo. A medida, lançada há 2 anos, vai na sua 3ª edição e, desta vez, alargou o prazo e ampliou os meios de mobilização: além da Internet, realizaram-se Assembleias Participativas. O processo tem duas fases: numa primeira apresentam-se as propostas (até 30 de junho!) que, numa segunda fase, serão votadas. As medidas propostas pelos cidadãos que forem mais votadas passarão à prática. (Aproveite também para participar nas sessões de divulgação sobre o PDM de Lisboa, atualmente a ser revisto, com a promessa do presidente da CML de facilitar toda a informação, como disse há dias numa sessão pública onde apelou à participação de todos). Mexa-se!

E por falar em participação, aqui ficam alguns endereços e contactos úteis para que faça ouvir a sua voz: para os atentados ambientais - lixo atirado às bermas, despejos em linhas de água, ruído fora de horas, abate de árvores, construções clandestinas e abusivas... - escreva ou ligue ao Serviço Especial de Conservação da Natureza e do Ambiente da GNR (808200520). Se for caso de negligência no abastecimento de água, saneamento urbano ou recolha e tratamento de lixo, recorra à ERSAR - tem um site claro, amigável e informativo, com uma secção de reclamações específica. Lá tem também a possibilidade de ver se na sua localidade a água da torneira foi analisada nos parâmetros legais e se está em condições de ser consumida. Se o problema for a qualidade do ar, vá ao Qualar - base de dados online sobre qualidade do ar - e veja como estão os níveis de poluição na sua zona de residência (www.apa.pt); inscreva-se no sistema de alerta sobre as excedências de ozono troposférico, prejudiciais à saúde e recorrentes no verão. Se pretende saber o estado e classificação das praias marítimas ou fluviais, consulte o site da Associação Bandeira Azul da Europa (www.abae.pt ). Texto publicado na edição do Expresso de 26 de Junho de 2010 Eficiência inteligente Luisa Schimdt (www.expresso.pt) 9:00 Quarta feira, 2 de junho de 2010 Dia Mundial da Energia A eficiência energética é um indicador invulgarmente seguro de progresso. E é também um objectivo inevitável. Ainda há poucos anos um automóvel normal gastava 20 litros aos 100 km. Hoje, que algumas belas 'máquinas' desenvolvem altas potências gastando menos de 5 litros, ninguém tem dúvidas sobre as enormes vantagens da inovação tecnológica nos motores dos automóveis. Gastar menos energia para fins idênticos é obviamente um importante sinal de desenvolvimento da civilização. Pelo contrário, os elevados consumos de energia estão agora associados ao que é antigo e quase sempre obsoleto. Hoje, que celebramos o Dia Mundial da Energia, esta verdade é mais actual do que nunca. Seja nos carros, nos computadores, nos electrodomésticos ou nas casas, os equipamentos mais desenvolvidos, mais modernos e de melhor desempenho mostram sempre gastos energéticos altamente eficientes. A eficiência energética é, por isso, um indicador invulgarmente seguro de progresso. E não só um indicador seguro como um objectivo inevitável, sobretudo num mundo onde os equipamentos eléctricos são cada vez mais indispensáveis. A solução é procurar mais e mais eficiência energética e não, cegamente, mais e mais produção de energia (note-se que, neste ano de chuva e vento, algumas centrais termoeléctricas chegaram a estar vários meses paradas). Como dizia Vinicius de Moraes, é melhor "ser alegre que ser triste". O que, em termos de energia, quer dizer: é melhor ir para a frente do que ir para trás. E a ir para a frente vamos muito mais longe, gastando muito menos energia. São coisas destas que o sofisma de uns e a má-fé de outros tentam esconder. E logo neste país que tão boa figura tem feito internacionalmente noutros sectores de modernização energética, como seja a produção de energias renováveis. Por vezes, medidas simples podem ter um impacto importante: a mudança de lâmpadas reduziu os consumos de electricidade, tanto nas casas como nas ruas. Também a substituição do sistema tradicional de semáforos por LED em algumas zonas de Lisboa permitiu poupar 'apenas' 90% do consumo de electricidade. Portugal precisa como de pão para a boca de aumentar a sua eficiência energética. Apesar das renováveis, ainda somos um país que, para uma produtividade baixíssima, gasta energia como se fosse uma grande nação industrial. O que, por sua vez, contribui para aumentar exponencialmente a maldita dívida externa. Há estudos sobre Lisboa e Porto, levados a cabo pelas respectivas agências de energia, que permitiram identificar coisas muito curiosas sobre o nosso perfil de consumo. Por exemplo, da totalidade de energia primária consumida por cada uma destas cidades, em Lisboa os edifícios são responsáveis por 46% desse consumo (30% pelos de serviços e 16% pelos residenciais), enquanto no Porto consomem 58% (32% pelos de serviços e 26% pelos residenciais), sendo que quase 80% desse consumo são sob a forma de electricidade. O consumo de electricidade por habitante no Porto é cerca de 30% superior ao verificado no resto do país. A razão é histórica: o Porto nunca foi dotado de uma rede de gás porque tinha em seu redor a rede de hidroeléctricas construídas no Douro durante o Estado Novo. Já Lisboa, demasiado distante das hidroeléctricas de então, teve de se dotar de gás, o que a coloca hoje numa situação de alguma vantagem. Estes números genéricos permitem também constatar o facto de os nossos edifícios gastarem demasiada energia, seja pelo que consomem, seja pelo que deixam perder. E isto faz convergir muitas das questões da eficiência energética para o modo como construímos e equipamos os prédios. Foi a importância desta questão que levou as agências de energia das duas grandes cidades a desenvolverem programas de eficiência energética dos edifícios, muito para lá da chamada 'certificação energética' que tem, aliás, muito a melhorar. Trata-se de instalar um programa que ajude a dotar os edifícios de reais meios de poupança, sobretudo na climatização e na produção autónoma de alguma energia. A eficiência energética terá, além da sua própria vantagem óbvia, uma outra da maior importância: a percepção directa pelos habitantes do real aumento do conforto térmico das casas - mais frescas no Verão, menos frias no Inverno. É neste contexto que se inscreve o Pacto dos Autarcas com objectivos ambiciosos: aumentar a eficiência e reduzir os valores absolutos das emissões de dióxido de carbono (CO2), através da intervenção directa a dois níveis: nos transportes públicos, mais eficientes e limpos; e no ordenamento do território, o que passa necessariamente pela reabilitação urbana - a tal que irá criar emprego e reduzir o escandaloso número de casa devolutas. A eficiência energética é também o problema do ordenamento do território. As boas medidas permitem ao cidadão comum ganhar em todas as frentes: mais conforto, menos despesa, melhor ambiente, mais qualidade de vida, mais produtividade. 46% da totalidade de energia primária que Lisboa gasta são consumidos pelos edifícios, responsáveis também por 45% das emissões de CO2 do concelho 58% é a percentagem de consumo de energia primária que no Porto é da responsabilidade dos edifícios (a das emissões de CO2 é de 55%) Há petróleo no Beato?

Paulatinamente o Golfo do México vai-se enchendo de petróleo. A partir do fundo do mar, lá onde estoirou a válvula do poço de petróleo, emerge uma mancha cujos danos ambientais, económicos e alimentares são de tal modo vastos que é difícil avaliá-los. Há, contudo, uma coisa fácil de calcular: os critérios de segurança que presidem às perfurações petrolíferas no mar nunca mais poderão vir a ser o que eram. O assunto estoirou no Golfo do México, mas também pode estoirar noutros lugares, incluindo no litoral português. É que, com o mais do que previsível aumento do preço do petróleo, começa a parecer rentável explorá-lo ao largo da costa portuguesa, nomeadamente no Algarve. Mas isso agora já não se poderá fazer pelas contas de uma segurança barata. Não queremos imaginar o que aconteceria se o mesmo problema ocorresse nas nossas recentemente hiperclusterizadas águas costeiras. Todo o cuidado é pouco. O rápido sai caro

E por falar em cautelas e em eficiência energética, convinha acautelar bem os parâmetros de eficiência energética dos renovados edifícios escolares - tanto por questões económicas óbvias, como por razões pedagógicas. A notável medida de renovação dos edifícios e dos equipamentos escolares, adaptando-os a várias normas europeias (acessibilidades, comunicações, conforto, arranjo exterior, etc.), tem sido conduzida a toque de caixa. Claro que as cadências dos anos lectivos não recomendam lentidão, mas há pressas que podem hipotecar os efeitos positivos. Integrar critérios de eficiência energética agora é uma oportunidade que não pode ser perdida para o futuro, e já há casos em que esta cautela com a eficiência energética não foi tomada. Resultado: belos edifícios, por vezes com fraca sustentabilidade, incluindo os próprios custos de operação e consequentes aumentos das facturas de electricidade (ventilação e ar condicionado sobretudo). Até agora renovaram 21. Fica o alerta para os próximos 205. Good news

As boas notícias vêm de algumas autarquias que assinaram há um ano o chamado Pacto dos Autarcas, uma iniciativa do Comité das Regiões da UE. Águeda, Almada, Aveiro, Cascais, Ferreira do Alentejo, Lisboa, Moura, Oeiras, Palmela, Ponta Delgada, Porto e Vila Nova de Gaia fizeram parte dos cerca de mil municípios que por todo o mundo se comprometeram, até 2020, a reduzir em 20% as emissões de gases com efeito de estufa (GEE); a aumentar em 20% a produção de energia com fontes renováveis e a melhorar a eficiência energética também em 20%. Para isso, elaboraram um plano de acção de energia sustentável para os sectores da construção, das infra-estruturas públicas (aquecimento, iluminação, resíduos, limpeza urbana, etc.), dos transportes (o sector que representa o maior consumo de energia do país) e do planeamento urbano. As vantagens deste Pacto são inúmeras e revertem a favor de todos os cidadãos do mundo: a redução de GEE prevista nas cidades que aderiram é equivalente à plantação de árvores numa área semelhante Hungria em cada ano, ou à retirada de mais de 35 milhões de carros das estradas. Isto para além da poupança na importação de combustíveis fósseis. Por cá, são as agências de energia que protagonizam este Pacto. A título de exemplo, a AdePorto irá equipar os bairros sociais com 5 mil m2 de painéis de água quente solar (25% do parque de habitação social); elaborou guias de referência para a reabilitação urbana do centro histórico; e criou um observatório para que todos os edifícios novos e grandes reabilitados passem a obedecer a exigências de desempenho energético. A Lisboa E-Nova tem apostado em medidas de poupança de energia: além de equipar os semáforos com LED, a regulação automática da iluminação pública em função da luminosidade do dia já permitiu poupar 200 mil euros por ano. Acresce a instalação de sistemas solares térmicos em edifícios novos ou renovados; dotar a cidade de pontos de carregamento para veículos eléctricos e promover a reutilização de águas residuais para lavagens de ruas e regas - acabando com o desperdício de usar águas tratadas e potáveis para estes serviços. O pior continua a ser a frota de autocarros e sobretudo de táxis. Adaptação imediata! Luisa Schimdt (www.expresso.pt) 9:00 Quarta feira, 5 de maio de 2010 Alterações climáticas Estratégia nacional de adaptação corre o risco de ficar como mais uma bela peça legislativa, sem mudar nada no terreno. Pensámos que era mentira. Saiu a 1 de Abril a Estratégia Nacional de Adaptação às Alterações Climáticas (ENAAC). Afinal é verdade. Embora mais tarde do que outros países europeus, Portugal começa a acordar para a indesmentível realidade das alterações climáticas. Ao contrário das turbulências passageiras da opinião pública, que conhecidos interesses económicos atiçam a seu proveito (como lembra o economista Paul Krugman num artigo recente), os Estados, com responsabilidades maiores e mais profundas, tratam de encarar o problema. Não é preciso, nem possível, esperar pela certeza exacta e absoluta de todas as vertentes das alterações climáticas para reconhecer os seus impactos, sendo essencial tomar medidas de forma coordenada à escala transnacional, já que o clima é o fenómeno menos parado e menos paroquial que existe na natureza. Depois de Copenhaga, o sentido ficou definido. É pena que se tenha retirado esperança e energia às medidas de redução das emissões dos tais gases que andam a contribuir para isto tudo. Mas é provável que no México e noutras reuniões internacionais a redução das emissões venha a ter mais importância, sobretudo por causa dos apertos energéticos. A verdade é que, desde Copenhaga, do que se fala é de "adaptação", ou seja, assumir que as alterações climáticas não são traváveis e que os seus efeitos vão ter interferências profundas em todos os aspectos da vida dos países. Não há memória de, a uma escala tão vasta e publicamente tão reconhecida, um fenómeno da natureza impor transformações voluntárias à sociedade. E as transformações urgem. Não se trata de exortar à salvação das almas, mas ao salvamento das vidas e bens; e isso requer medidas, metas, planos de acção, estratégias concertadas, antecipação e um acordo amplo sobre características essenciais do fenómeno. A ENAAC, que entrará hoje em vigor, estrutura-se em quatro objectivos: informação e conhecimento (sobre previsões, indicadores e cenários); redução da vulnerabilidade e aumento da capacidade de resposta (em particular a fenómenos meteorológicos extremos: tempestades, cheias e secas); participação, sensibilização e divulgação (de tudo a todos); cooperação a nível internacional (União Europeia e Comunidade de Países de Língua Portuguesa). Estes objectivos projectam-se sobre nove sectores-chaves que serão altamente afectados: ordenamento do território e cidades; recursos hídricos; segurança de pessoas e bens; saúde; energia e indústria; biodiversidade; agricultura, florestas e pescas; turismo; e zona costeira. O que se preconiza para todos estes sectores serão acções designadas "no regrets" - daquelas que quando chega o balanço não haverá nada a lamentar; antes pelo contrário, trarão sempre vantagens ao país. O documento, que é da maior importância e utilidade, prevê um período para o seu desenvolvimento (demasiado longo: 21 meses) e uma comissão interministerial para a sua condução. Corre, no entanto, o risco de definhar por quatro razões. Por um lado, as alterações climáticas não aconteceram; estão a acontecer e desenvolvem-se. As ciências que as estudam precisam de continuidade, articulação e reforço. Portugal, que começou de forma pioneira com o projecto SIAM1 e SIAM2, interrompeu em 2006 o apoio e a programação desta investigação, quando era tão importante dar-lhe a continuidade que permitisse chegar ao ponto seguinte, que é o da monitorização. De repente, ficámos num vazio institucional da ciência, o que é um risco inaceitável, justamente quando o problema é 'risco'. Outro aspecto tem que ver com urbanismo. O documento reflecte-o, é certo, mas deveria ser muito mais desdobrado e específico. Quando olhamos para a previsão dos impactos das alterações climáticas em Portugal, vemos o potencial catastrófico de duas vulnerabilidades que infelizmente entre nós se cruzam: a do litoral (tanto pela subida do mar e erosão costeira, como pelas cheias dos rios) e a vulnerabilidade física do parque habitacional. A ineficácia das políticas de ordenamento do território abriu um terrível alçapão social que as alterações climáticas vêm expor e agravar. Particularmente neste tema, é preciso muito mais e depressa. Por outro lado, não tendo um plano de acção imediato e viável e sobretudo um orçamento definido, a ENAAC corre o risco de se ficar, como é tão frequente em Portugal, como mais uma bela peça legislativa que honrará mais tarde a memória dos seus autores, mas sem mudar nada no real e no terreno. Por fim, chegamos à mais embaraçosa das questões quando se trata de políticas de mudança social. A estratégia fala em sensibilização e participação. Mas tudo isso tem de ser traduzido em acções de informação, de educação, de mobilização... recortadas segundo as diferenças sociais, e elas são muitas. É caricato julgar que se mobiliza uma sociedade para a mudança com documentos em papel ou 'disponibilizados' na Net. Mobilizar começa por aprender a ouvir. Está quase tudo por fazer neste campo. A ENAAC a 1 de Abril parecia mentira; a 1 de Maio, mãos à obra, que é trabalho. Nuvem, moral e proveito

A erupção vulcânica da Islândia é um tema inesgotável. De repente a atmosfera ficou infrequentável e todas as atenções se concentraram nela. Dependemos dela para muito mais do que respirar. Pelo menos o Presidente da República já está bem ciente do facto. Na longa viagem rodoviária que o trouxe de Praga a Belém, terá seguramente meditado sobre a nossa condição atmosférica e decerto isto lhe reforçará a sensibilidade às questões ambientais. Questões essas que se parecem cada vez mais com histórias de moral e de proveito. Não se luta contra a natureza aos murros e pontapés. Só com inteligência, ciência e cultura - e vamos precisar cada vez mais de as usar. Água vem, areia vai

Murros e daqueles que fazem sobretudo doer as mãos de quem os dá será, por exemplo, gastar este ano 100 milhões de euros a tentar segurar, sem esperança, a linha da nossa costa. Se há sítios onde algumas intervenções podem fazer sentido e, ainda assim, permitem ao país ganhar tempo para corrigir erros passados, noutros a despesa é um desespero total. Total e anual. Despejar toneladas de areia em muitas das nossas praias lembra rituais arcaicos em que se ofereciam tesouros para aplacar forças negativas e transcendentes. No caso de S. João da Caparica, já vão anos consecutivos de areia despejada que a água vai levando (mesmo que não na totalidade). Manda o bom senso, e sobretudo a experiência de outros países, que se pense em recuar do litoral em risco os edifícios, casas, estabelecimentos... que se sabe serem claramente inviáveis a médio prazo. São essas as verdadeiras medidas de adaptação à erosão costeira. Ora se isto já parece evidente para o caso da Fuseta, onde a retirada das casas dos pescadores começou agora a ser feita pelo Polis, porque é que não o é para muitos outros sítios do Algarve? Continuam a prever-se grande cargas de areia para as praias de Albufeira (entre Peneco e Forte de S. João), D. Ana (em Lagos) e troço Forte Novo/Quarteira-Garrão (em Loulé). Sabemos quais são as razões e até podemos compreender algumas destas decisões. Mas é importante que elas sejam publicamente pensadas e debatidas. Se as recargas são insustentáveis a curto prazo pela sua própria natureza, que sustentação cívica pode a decisão ter hoje? Expor e debater problemas destes é que é civicamente construtivo; e toda a resposta de adaptação às alterações climáticas passa pela reconstrução da dimensão cívica que, entre nós, sempre foi tão fraquinha. Factos e contradições na AML

E a propósito de responsabilidade pública na nossa vulnerabilidade ambiental extrema, o que não se compreende mesmo é que, enquanto se aprovam estratégias de adaptação às alterações climáticas e se discutem políticas preventivas de recuo, se continue a deixar construir mais empreendimentos, casas, fábricas, armazéns, centros comerciais... em leitos de cheia e outros lugares de risco. Reflicta-se sobre dados recentes de um levantamento realizado pelo Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (coordenado por José Luís Zêzere) a propósito da carta multirriscos da Área Metropolitana de Lisboa (AML). Nela mostram-se vários factos cruciais a encarar seriamente. A erosão do litoral não pára: só na Cova do Vapor/S. João da Caparica o recuo foi de 10 m por ano nos últimos 40 anos. A susceptibilidade às cheias progressivas afecta 12% do conjunto do território da AML, chegando em concelhos como Vila Franca de Xira a atingir 70% e em Alcochete e Moita 40%. Já as cheias rápidas afectam 1,5% do total da região, com uma incidência de 10% em Odivelas, Loures e Oeiras. Quanto aos designados 'movimentos de massa' ou deslizamentos de terras, só no último Inverno ocorreram na AML cerca de 400, contando com o escandaloso caso da CREL. Contudo, apesar de tudo isto, a edificação urbana foi crescendo inexoravelmente nas zonas de risco. Entre 1995 e 2007 registou-se um incremento de 22,6% de áreas edificadas na faixa litoral dos 500 metros; um incremento de 51% de edificações em áreas inundáveis por cheia progressiva e 39% em áreas afectadas por situação de cheia rápida (entre casas, fábricas, centros comerciais...). Para as mesmas datas aumentaram em 72% as construções em "vertentes perigosas"... Os concelhos onde a situação é mais gravosa são Loures, Mafra, Odivelas e Vila Franca de Xira - para onde, mesmo assim, continuam a ser planeadas e aprovadas mais construções em leito de cheia. Quem boa cama fizer... Texto publicado na edição do Expresso de 1 de Maio de 2010 Vamos limpar as ideias Luísa Schmidt (www.expresso.pt) 12:28 Quarta feira, 7 de abril de 2010 O lixo e o preconceito levaram uma grande limpeza. Há que aproveitar a campanha 'Vamos Limpar Portugal' para levar a varredela mais longe... 100 mil voluntários recolheram 70 mil toneladas de lixo em 13 mil lixeiras Manuel Teles/Lusa Decorreu há 15 dias uma operação, cujo significado ultrapassa muito o episódico do seu acontecimento. A campanha 'Vamos Limpar Portugal' (VLP) limpou de facto muito, mas sobretudo expôs muito mais. Afinal há mesmo imenso para limpar ainda. Ficou à vista neste dia, abreviado pelo mau tempo, a quantidade assustadora de lixos acumulados por bermas e matas, afundados nas ribeiras, enterrados nas florestas, atirados a eito para os barrancos e arribas... - sintoma de um país desesperado à procura de um "fora" para onde deitar as sobras e os dejectos da sua vida. O país que vive entrincheirado nas suas vidas privadas, rodeado dessa "terra de ninguém" que para ele são os outros que não conhece nem quer conhecer. No dia VLP ficou, enfim, à vista que o verdadeiro culpado de todo este lixo é, afinal, o próprio país. Não foi o "eixo do mal" que espalhou lixo por toda a parte, nem o Estado, nem os inimigos, nem os invejosos do costume. Portugal está sujo, profundamente sujo, pelos próprios portugueses. O dia VLP foi um verdadeiro festival de populismo às avessas. Directa e indirectamente, todos somos responsáveis pela situação. E, finalmente, a solução desencadeou-se a partir de dentro do problema: a sociedade civil manifestou uma verdadeira e sincera vontade de limpar. De se limpar... energicamente. Cem mil pessoas participaram, apesar da chuva. E não foi nenhuma ONG, nenhuma coligação de partidos, nenhuma seita, nenhum clube de futebol. Foram 100 mil cidadãos a trabalhar num sábado, a terem a revelação do lixo e a expô-la a todos os outros. Fez-se o saldo aflitivo da condição ambiental das nossas tão celebradas belezas paisagísticas. Portugal afinal é um extenso tapete para debaixo do qual se varrem todas as porcarias. Nada ficará como dantes depois desta data. Este dia não foi um dia; ele inaugurou uma consciência pública do desleixo profundo a que votamos os nossos valores naturais e paisagísticos, sem contar com a própria saúde. A desatenção a que em Portugal está votado o espaço público colectivo dá também para avaliar o estado da democracia que vivemos. Mesmo que as autoridades tenham um papel crucial e valha sempre a pena chamar a inspecção do ambiente (IGAOT) e o serviço especial de ambiente da GNR (SEPNA), nada supre a acção individual e colectiva. Ninguém está dispensado. Duas semanas depois, as ironias são inevitáveis. Com que então estava resolvido o problema das lixeiras em Portugal? Trinta e tal anos de políticas ambientais revelam que o país é todo ele uma sucata difusa - só pelo networking, com o apoio da Universidade de Aveiro, localizaram-se 13 mil focos. Não basta fechar e selar as mais óbvias lixeiras urbanas; vai ser preciso ir buscar o lixo aos fundos onde ele foi metido e escondido - como foram os mergulhadores às ribeiras, ou os rafters às escarpas... ou os que andaram a vasculhar os solos. E descobriu-se de tudo: muitos frigoríficos e outros electrodomésticos; peças e carcaças de automóveis; pneus; muito - mesmo muito - entulho de obras. Encontrou-se também lixo doméstico, sacos de plástico cheios de lixos a despontar por debaixo de tapetes de folhas secas em frondosas matas... Até algum lixo tóxico foi encontrado a "temperar" as belas águas que, mais abaixo, nas fontes, parecem puras e cristalinas... O dia VLP teve um tamanho enorme para trás e para diante. Para trás, porque lembrou os milhares de avisos que há tantos anos algumas pessoas têm feito, para serem acusadas de desmancha-prazeres das maravilhas turísticas de Portugal. Para a frente, porque a responsabilidade de todos agora é manifesta. Estas experiências, mesmo que de um só dia, são duradouras: os 100 mil que limparam, mais os milhões que viram o resultado dessa limpeza pelas televisões... ficaram decerto mais atentos e terão outro cuidado para que se não suje mais. O espaço público, ou melhor, o espaço cívico da democracia coincidiu com o território. É um feito. Agora só a incúria da Administração Pública pode destruí-lo, ao não lhe dar continuidade e ânimo. Quanto mais não seja por gratidão, já que a iniciativa poupou ao Estado dezenas de milhões de euros e anos de trabalho, e a ministra do Ambiente, que é especialista no assunto, sabe-o bem. Por fim, note-se o modo como as redes sociais funcionaram para estimular a vida cívica portuguesa, que, após décadas, primeiro, de proibição e repressão e, depois, de desencorajamento, afinal quer viver e manifestar-se. A cidadania em Portugal não é um caso desesperado de desânimo a 'justificar' tentações autoritárias. Antes pelo contrário, o potencial de entusiasmo e de mobilização é enorme. Não o aproveitar será uma estupidez culposa. O programa de limpeza e descontaminação do país, palmo a palmo, é urgente. Por todas as razões e mais algumas. Comboio da biodiversidade Pouca terra, pouca terra, pouca terra... Ela pouca não é e, se não a estragassem, nela tudo se criava. Uma das zonas mais férteis e biologicamente mais ricas do país dá a volta a toda a Área Metropolitana de Lisboa (AML). Olhá-la, apreciá-la, atravessá-la e conhecer melhor os valores que aí temos, os que estragámos e os que precisamos de conservar e recuperar, foi o grande objectivo do já justamente célebre "comboio da biodiversidade". Numa iniciativa do Museu de História Natural e do Centro de Biologia Ambiental da Universidade de Lisboa (UL), este foi o primeiro dos muitos "Bioeventos 2010" que se anunciam. Atrelou-se um comboio e deu-se a volta de Lisboa ao Carregado e do Carregado a Setúbal, passando pela antiga ponte Rainha D. Amélia... Espalhados pelas carruagens, uma mão-cheia de especialistas de diversas área científicas da UL foram explicando e debatendo o interesse dos lugares por onde íamos passando. Das "paisagens suburbanas mais violentas", como disse o geógrafo João Ferrão, às mais férteis terras da lezíria, passando pela desolação contaminada do Tejo - que levou o biólogo Jorge Palmeirim a chamar a atenção do valor económico da biodiversidade -, seguindo por alguns dos mais belos trechos desta paisagem horizontal e incerta, onde voam flamingos e ecoa a memória dos "Gaibéus". O passeio culminou, agora já de autocarro, com a visita à grande serra da Arrábida - cuja candidatura a Património Mundial da UNESCO mereceu uma conferência de imprensa. Durante todo este trajecto algumas questões acutilantes ficaram gravadas na memória de todos: como se destruiu o valor económico da produção de ostras do Tejo? Como se condenou tanta gente à condição de uma vida suburbana sem qualidade? Como se destruiu (e destrói) a estratégica Reserva Agrícola Nacional? Como se mutilou a paisagem única e quase sagrada da Arrábida? A experiência foi verdadeiramente extraordinária pela revelação constante da biodiversidade, mesmo no meio da adversidade suburbana. Uma biodiversidade que só encontrou paralelo na diversidade extrema da "fauna humana que povoava as carruagens: cientistas e artistas; empresários e responsáveis políticos; associativos e jornalistas; magistrados e autarcas... Interessante, divertidíssimo e cheio de esperança. A viagem foi também um lançar de pontes (em linguagem chique diz-se bridging) entre competências, interesses e pessoas.

Ciência ao vivo no parlamento E por falar em bridging, o Ciência Viva organizou um Café de Ciência na Assembleia da República para pôr em diálogo cientistas de várias áreas disciplinares e deputados, mais uma vez, sobre o tema da biodiversidade. Orquestrados por Alexandre Quintanilha, e com a participação de Manuel Heitor, secretário de Estado da Ciência, compareceram muitos cientistas, embora, infelizmente, não tantos deputados - apesar dos que lá foram estarem genuinamente interessados. Três minutos de intervenção para cada um - o que não é um exercício fácil para uma vida de investigação -, mas conseguiu-se deixar informações-chave, que ainda hoje custam a fazer passar: A biodiversidade sustenta importantes recursos económicos do país - da farmacopeia ao turismo, da agricultura ao mar. É por isso urgente monitorizar as mudanças e avaliar as perdas; estimular as cautelas e aprofundar o(s) saber(es) e, sobretudo, investir seriamente na sua investigação e garantir seriamente a sua protecção. A simples existência da natureza e das paisagens na sua diversidade é um serviço valiosíssimo que pode e deve ser quantificado e entrar nas contas públicas. E não apenas ser considerada um fundo anónimo onde toda a gente pode ir tirar coisas e despejar lixo. Os danos que ela sofre e os valores que produz têm de ser avaliados e cobrados. As paisagens constroem-se, restauram-se e conservam-se, e, se a conservação tem custos, muito mais caro sai não o fazer. Até para a saúde pública. Como dizia Manuel Carrageta, presidente da Fundação Portuguesa de Cardiologia, a este jornal na semana passada, a propósito de um recente estudo do Instituto Ricardo Jorge sobre a distribuição nacional das patologias do aparelho circulatório, "a Grande Lisboa é um factor de risco. Está provado que olhar para uma paisagem bonita liberta endorfinas boas para as artérias". E olhar para uma paisagem feia, o que libertará? Texto publicado na edição do Expresso de 2 de Abril de 2010 A-Mar ou desperdiçar Luisa Schimdt (www.expresso.pt) 9:00 Quarta feira, 3 de março de 2010 Várias iniciativas têm dado consistência à ideia de colocar o mar no fulcro da nossa consciência de país com um futuro a construir. Poucos países terão usado o mar de forma tão ornamental e negligente como nós. Passadas as eras heróicas e os actos de bravura conhecidos, o mar acabou por se tornar um motivo para os nossos patriotismos de altifalante, sobretudo quando se trata de apontar, com olhos sonhadores e piegas, razões sentimentais e imprecisas para justificar a nossa existência no meio dos outros. E, contudo, ao longo dos anos, apesar da negligência, foi possível fazer sobreviver e continuar neste país iniciativas económicas, científicas e tecnológicas em torno do mar com elevados níveis de qualidade. A grande mudança assinala-se em meados dos anos 90, e é publicamente consagrada pela Expo-98 dedicada aos "Oceanos - um património para o futuro", com o objectivo de sensibilizar para os problemas dos oceanos, estimular a investigação científica e reactivar as indústrias e sectores ligados aos recursos marinhos. Por alguma razão o seu Oceanário continua a ser hoje uma das maiores atracções científicas, culturais e recreativas da cidade e do país. A ele devemos a recordação de que a Expo-98 não foi, como agora por vezes parece, o nome de uma agência imobiliária, mas uma grande exposição internacional dedicada aos oceanos. Ao Oceanário devemos também um contributo para a instalação de uma cultura pública de sensibilidade à vida marinha, à beleza dos seus ecossistemas e à nossa ligação umbilical a eles, como todas as noites nos lembrava o Aquamatrix durante a Expo. Entretanto, de 1998 para cá, várias iniciativas têm vindo a dar progressiva consistência à ideia de colocar o mar no fulcro da nossa consciência de país com um futuro a desenhar e a construir. É este processo recente, da última dúzia de anos, que tem permitido projectar finalmente os grandes contributos científicos e estratégicos de algumas figuras discretas mas muito persistentes. Pensamos sobretudo em Mário Ruivo, como cientista e cidadão, cuja envergadura e antevisão era mais do que reconhecida por várias organizações internacionais ligadas ao mar e que hoje vê finalmente o fruto do seu trabalho, mesmo quando o seu nome é tão sistematicamente omitido. É assim por felicidade que, no meio destes abismos da crise e de quezílias políticas que a todos envergonham, alguma coisa luminosa e com horizonte tem vindo a ser politicamente proposta, ou seja, orientada por objectivos e articulada em programas. Mesmo que tenhamos de lhe suportar o desconfortável inglesismo de cluster, saudemos o chamado "hypercluster da economia do mar" - qualquer coisa que teria feito sorrir tanto o rei D. Carlos como Fernando Pessoa, tanto o almirante Tenreiro como o "Xico das Caldeiradas"... Trata-se de um clarividente documento produzido pela equipa de Ernâni Lopes, que o coordenou, que apresenta uma nova visão para o sector do mar, articulando as vertentes económica, ambiental, social e de governação do sector. Com uma fortíssima componente científica ancorada em universidades e institutos de investigação e com uma capacidade de aplicação tecnológica claramente adequada aos recursos do país, o hypercluster do mar parece a chave exacta do cadeado que nos tem trazido trancados na nossa miséria pedincha. Contemplando simultaneamente o turismo e a actividade portuária; as redes de comunicação e os desportos náuticos; as energias renováveis (eólicas em offshore e biocombustíveis de microalgas a usar na aviação civil); as pescas; as aquiculturas, sobretudo as de mar aberto; as áreas protegidas marinhas; a transformação do pescado e a inovação das fontes hidrotermais... - as ideias são inúmeras e as possibilidades imensas (www.saer.pt). Algumas já vêm fazendo o seu caminho em muitos centros universitários e instituições públicas de investigação - das universidades dos Açores, Aveiro, Algarve e Lisboa, ao IPIMAR, ao ancestral Instituto Hidrográfico... - que só precisam de reforço e continuidade. Outras têm de ser verdadeiramente incentivadas, como a criação de uma rede de novas áreas protegidas marinhas, as quais são estratégicas para o alargamento da nossa ZEE (Zona Económica Exclusiva). Outras passam por uma revitalização, como as áreas marinhas que já existem no continente. Questão crucial para tudo isto será o ordenamento das bacias hidrográficas e, por maioria de razão, o ordenamento do território, em particular o do litoral. Sem isso não haverá hypercluster que chegue ao mar. Eis, portanto, uma ideia onde fazemos um sentido que nos reconcilia com a história e com as nossas melhores qualidades, incluindo nelas a capacidade sonhadora - não a alucinada mas sim a construtiva e sobretudo criativa. Depois de termos ouvido até à náusea o mar apontado como destino ideológico de um país caduco. Depois de termos assistido à tradução da vocação marítima em urbanismo litoral caótico. Depois de nos termos confrontado com o refluxo costeiro das poluições que vazámos (e vazamos) para o mar... Eureka! Assim haja capacidade e ânimo para sair das águas doentias do pântano para as águas sadias do mar. Áreas marinhas e ZEE

Uma das propostas do hypercluster do mar é incentivar as actuais - e criar novas - áreas marinhas protegidas (AMP) de modo a constituir uma rede de grande interesse natural e diversidade biológica. Às AMP atribui-se um valor económico ou, muito prosaicamente, um valor 'monetário'. A chamada 'monetarização' das áreas marinhas passa por contabilizar os serviços por elas prestados na melhoria dos recursos: mais conservação resulta em mais espécies piscícolas, maiores e mais variadas, com reflexo no aumento de stocks e na exportação de larvas. Resulta também em actividades de turismo sustentável e de lazer, como seja a prática do mergulho e a observação dos cetáceos e da avifauna marinha e, tudo isto, significa também mais emprego. Por sua vez, existe um manancial de serviços bioquímicos ligados à investigação de componentes farmacêuticas; além de que a protecção de recifes aumenta a capacidade de assimilação de poluentes e a resistência às tempestades e erosão costeira. Acresce ainda que estas zonas marinhas, através dos seus planos de gestão, contribuirão para ampliar os nossos direitos para além das 200 milhas da ZEE. Mas para que tudo isto seja viável, é preciso uma gestão adequada, ou seja, capaz de planear, gerir e monitorizar, a prazo; com estabilidade financeira que assegure continuidade, com novos fluxos de receitas e instrumentos fiscais; e contando com o envolvimento e empenho das comunidades locais, fornecendo-lhes oportunidades e incentivos. No ano internacional da biodiversidade, é urgente criar mais áreas marinhas em alto mar e na costa, bem como dotar as que já existem - Arrábida, Berlengas, Litoral Norte - com os meios de que necessitam e merecem. MarGov

E a propósito do envolvimento das comunidades locais no conhecimento e gestão das áreas protegidas, o Plano de Ordenamento do Parque Natural da Arrábida aprovado em 2005 esqueceu-se, como aliás praticamente todos os planos das áreas protegidas (AP), desse pormenor chamado "as pessoas". Aumentaram assim as animosidades contra o Parque por parte de quem nele habita ou trabalha. Como nada fora explicado nem debatido com as populações e sobretudo com os pescadores, não admira a contestação e o boicote de que o plano foi alvo. Entretanto, para superar esta situação de crispação e de conflito, foi lançado um projecto - MarGov (liderado por Lia Vasconcelos) - que está a ensaiar no terreno uma metodologia participativa, minimizando os danos sociais e económicos de um plano mal engendrado e sociologicamente analfabeto. Será desta que o ICNB reconhece o erro de planeamento em que tem laborado e que a todos sai caro? (E, a propósito, a consulta pública do Plano de Ordenamento do Parque Natural da Costa Vicentina e Sudoeste Alentejano decorrerá entre 18 de Março e 30 de Abril). Laurissilva, património único

Entre os vários factores a ponderar numa situação tão complexa e tão dramática como a que se vive na Madeira, dois factos ficaram nítidos. O primeiro é que os acontecimentos climáticos extremos, tal como previsto, repetir-se-ão com mais frequência. O segundo é que o ordenamento do território é um factor-chave para evitar a destruição material e a tragédia humana. Seja a desflorestação das montanhas, seja as construções em leito de cheia, tanto nas ilhas como no continente, mais do que uma imprudência, são um convite à catástrofe. Os trágicos acontecimentos na Madeira tolhem-nos hoje de falar disso, mas é impossível não pensar na importância crucial da sua floresta de laurissilva. Trata-se de uma preciosidade natural única - a que já se chama a nossa 'Amazónia' - que foi classificada pela UNESCO, primeiro como Reserva Biogenética e depois como Património da Humanidade, em 1999. Esta verdadeira relíquia já resistiu a muitas variações climáticas e constitui um reservatório genético ímpar com um potencial de futuro à espera de ser investigado. Por tudo isso, o pretendido projecto de construção de um teleférico para o Rabaçal, em plena floresta de laurissilva - que já desencadeou contra ele uma petição de 5 mil assinaturas e levou a UNESCO a deslocar-se ao local - mais do que um atentado paisagístico, significa a inversão simultânea dos valores ambientais e do ordenamento do território. Tanto mais quanto se revela urgente acautelar a floresta na Madeira e refazê-la em inúmeros lugares. Texto publicado na edição do Expresso de 27 de Fevereiro de 2010 Bioadversidade Luisa Schimdt (www.expresso.pt) 11:20 Sexta feira, 5 de fevereiro de 2010 2010, o ano da biodiversidade aponta um programa claro: restaurar o que deixámos estragar e criar condições para o futuro da nossa riqueza natural. Eis o Ano Internacional da Biodiversidade. Ou seja, o ano internacional da comida que ingerimos, da água que bebemos, do ar que respiramos, dos remédios que nos curam. Basicamente o ano internacional da sobrevivência da espécie humana. É certo que, entre nós, ainda há quem pense que isto da biodiversidade é coisa de passarinhos e relvados. Alguns até são altos responsáveis políticos, empresários, enfim, elites... Declarado este mês pela ONU, o ano de 2010 tem por objectivo chamar a atenção da humanidade para a forma ruinosa como tem conduzido a sua história recente. Ruinosa para a própria vida humana, já que esta assenta na conjugação de uma quantidade imensa de formas diferentes de vida terrestre e marinha. É essa quantidade imensa que se chama biodiversidade. As vastas destruições de toda esta variedade da vida criaram uma situação alarmante, contra a qual a ONU vai este ano batalhar. Nisto da biodiversidade, Portugal é um curioso caso de laboratório. Desde há mais de dois séculos que o país é considerado como um verdadeiro tesouro. Cientistas de grandes universidades europeias e portuguesas estudaram lugares preciosos como Monchique, Buçaco, Gerês, serra da Estrela, Madeira e Açores. Devido à nossa localização geográfica reúnem-se aqui condições de riqueza excepcionais. Infelizmente, gerações sucessivas de incultura pública e de incompetência administrativa conseguiram - e conseguem ainda - vandalizar muita dessa riqueza, cujas perdas nunca são contabilizadas. Nas últimas décadas, uma dinâmica intermitente, mas ainda assim persistente, foi conseguindo - mesmo contra as oposições mais obtusas - fazer valer alguma conservação desse notável património. O serviço de parques e a demarcação da maior parte das áreas protegidas datam de finais dos anos 70; as reservas agrícola e ecológica nacionais (RAN e REN) do início de 80; a Rede Natura dos anos 90. Infelizmente nunca se conseguiu que estes instrumentos fossem administrados com equilíbrio. Oscilaram sempre entre os excessos de um radicalismo afunilado e a perversidade das medidas de excepção. A falta de visão estratégica para este património, num país com poucos recursos, prolonga a incapacidade de compreender a sua valia económica, social e cultural. Há três anos ainda se tentou dar a ideia do magnífico recurso económico que a biodiversidade pode representar para Portugal. Mas, esmiuçando, acabou tudo resumido a uma letra aposta a uma sigla - um 'B' a seguir ao 'ICN', a entidade que gere este manancial... Sem recursos, sem programa, sem ambição e sem visão, aquilo a que assistimos por parte do Estado, foram respostas tímidas, parcelares e episódicas, sempre intimidadas pelo argumento todo-poderoso do pseudodesenvolvimento. O país parece condenado a uma espécie de milagre das rosas ao contrário: em vez dos pães para os pobres transformados em rosas, esfrangalhamos as rosas para obtermos míseras carcaças... Com dualismos destes não vamos longe. Apesar da destruição e da negligência, temos muito que restaurar requalificar, reabilitar, reforçar, reflorestar, despoluir... e o potencial a aproveitar ainda é enorme - tanto em terra como no mar. Hernâni Lopes, que foi mais ouvido em dias do que Mário Ruivo em anos, tem evidenciado, e bem, a importância do hiper-cluster do mar. A este tema dedicaremos um próximo artigo. Mas há também o hipercluster da terra. Pensemos só nas variedades autóctones (flora e fauna) em todas as frentes: comerciais, laboratoriais, alimentares, medicinais... Seja a nível de particulares, seja através do Banco de Germoplasma de Braga, guardar, estudar, desenvolver este património deveria ser uma das heranças do ano da biodiversidade em Portugal. Havia também que incentivar os programas agro-ambientais e silvo-ambientais, e toda a fileira dos produtos certificados que lhes estão associados. Outro objectivo deveria ser a reabilitação dos rios, esses autênticos cordões sinópticos da biodiversidade. A saúde dos rios é a saúde do território e salta aos olhos o valor económico, social e cultural de ter cursos de água sãos... E que dizer do restauro dos quadros de paisagem e de uma cultura cívica em torno dela? Isso sim é que serviria um verdadeiro turismo sustentável e de alta qualidade. Um turismo de excelência como sublinhava, no último sábado, um artigo do jornal "The Times", referindo-se ao 'outro Algarve' - o da Costa Vicentina - chamando a atenção para a identidade e os valores naturais únicos desse Parque. 2010? Tudo menos passar o ano a tocar a velha cantiga de sensibilização e da sua poesia para embalar. O nosso ano internacional deveria ser o do restauro das nossas biodiversidades. GUARDAS DA NATUREZA EM VIAS DE EXTINÇÃO

O Parque Natural do Douro Internacional não tem actualmente um único vigilante para cuidar dos seus 81.150 hectares. Criado em Maio de 1998, previa contratar sete técnicos e oito vigilantes, mas, ao cabo de uma dúzia de anos, tem só quatro técnicos mal equipados... Este é apenas um exemplo do muito que se passa, ou não se passa, nas nossas áreas (des)protegidas. Três anos depois da reforma do Instituto de Conservação da Natureza, ao qual se acrescentou um 'B' (de Biodiversidade), nada a registar a não ser a fragilização da sua estrutura de funcionamento. O 'B' não trouxe bravura, nem brilho, nem brio às áreas protegidas (AP). Agrupadas agora por tipologias, e não por proximidade territorial, a mesma equipa de gestão anda aos ziguezagues da Serra da Estrela para a de S. Mamede e desta para a da Malcata, para dar só um exemplo... É certo que também há medidas positivas, como o Projecto Lince, resultante de uma contrapartida dos impactos negativos da barragem de Odelouca no Algarve. Mas acabam por ser avulsas e não compensam a precariedade em que vivem as AP, sem funcionários, sem força, sem ânimo. Nem compensam os atentados impunes que continuam: estradas (veja-se a Mata dos Medos, na Arriba Fóssil da Costa de Caparica, ou os IC na Serra da Estrela), projectos PIN e até alguns excessos das eólicas. Nos tempos de António Guterres, as áreas protegidas chegaram a ser consideradas estratégicas. Uma Resolução do Conselho de Ministros de 1998 decretava que as populações nelas residentes deveriam ser alvo prioritário de investimentos que melhorassem a sua qualidade de vida (na saúde, educação, cultura, ciência...) Na altura nada se fez. Que tal ressuscitar esta importante medida e dar-lhe finalmente aplicação no ano da biodiversidade? Só mobilizando as populações locais - antigas ou novas - se conseguirá conservar a natureza... RIOS TINTOS...

E a propósito do empenho das populações, vários inquéritos mostram que a água dos rios é uma das principais preocupações ambientais manifestadas pelos portugueses. Os rios são bioindicadores da nossa saúde ambiental; a água é o bem mais precioso do século XXI. O Relatório do Millennium Ecosystem Assessment recentemente publicado mostra como cerca de 40% dos nossos cursos de água estão em mau estado e 70% dos peixes de água doce estão ameaçados. Tudo isto, ao cabo de vários milhões de fundos europeus investidos no sistema de saneamento básico e despoluição. Outra das conquistas do ano deveria ser restaurar os rios e devolvê-los à sua vida própria e às populações. A ROM NÃO SE FEZ NUM DIA

E por falar em populações, aquilo que, apesar de tudo, vai mexendo em termos de conservação da natureza no país é alguma sociedade civil organizada localmente. O caso da Reserva Ornitológica do Mindelo (ROM) é exemplar. Situada na Área Metropolitana do Porto, concelho de Vila do Conde, a ROM foi uma das primeiras áreas naturais a ser classificada no país, em 1957, quando ainda não havia sequer regime legal para isso. Tudo resultou da coragem e entusiasmo do cientista e ornitólogo Santos Júnior, que se apercebeu da riqueza paisagística e natural da zona. Mais tarde, em 1987, houve uma proposta para a ROM entrar na rede de áreas protegidas. Mas as manobras políticas dos interesses económicos foram enormes, ou não se tratasse de uma zona litoral na AMP... Choveram os projectos urbanísticos e as pressões. Contra tudo isso, um movimento de cidadãos organizados - PROMindelo - conseguiu reunir 7 mil assinaturas e demonstrar, através de um inquérito, que mais de 80% dos cidadãos locais queriam a protecção da área. Conhecimento, comunicação, envolvimento, entusiasmo e convicção - foram as palavras-chave que conseguiram que o movimento liderado por Pedro Macedo levasse ao reconhecimento oficial da ROM. Em finais de 2009, a Assembleia Metropolitana do Porto aprovou por unanimidade e aclamação a Paisagem Protegida Litoral de Vila do Conde e ROM. Tudo devido à qualidade científica do projecto associada à persistência cívica na luta pela qualidade de vida - um exemplo de sustentabilidade. Texto publicado na edição do Expresso de 30 de Janeiro de 2010 Copenhaga Solução-Titanic Luisa Schimdt (www.expresso.pt) 13:04 Quarta feira, 13 de janeiro de 2010 (Des)acordo Passado um mês sobre a Cimeira, as alterações climáticas continuam a alterar o mundo - um mundo que não soube ser global para resolver problemas globais. 2010 dirá. Projectada para concertar à escala global um problema global, a Cimeira de Copenhaga acabou por desglobalizar a questão das alterações climáticas e teve duas consequências maiores. Primeiro, confirmou a importância, extensão e gravidade do próprio fenómeno. Depois de Copenhaga não restam dúvidas sobre a dimensão e estrutura do problema: as alterações climáticas existem e teremos de contar com elas nos cenários mais agravados. Segundo, recusou a oportunidade que o problema global abria a uma solução global de cooperação. Prevaleceu a velha regra cínica que tanto tem amaldiçoado a vida humana: o salve-se quem puder! Vamos ao primeiro ponto. As alterações climáticas, com o seu vasto cortejo de implicações ambientais nos recursos; na biodiversidade; nos territórios, são incontestáveis e os seus efeitos fazem-se sentir mais depressa e mais profundamente do que chegámos a esperar: degelo, subida do mar, tempestades, secas, doenças tropicais fora dos trópicos, refugiados... As suas causas, essas, assume-se que são múltiplas - naturais e antrópicas. Entre estas últimas, destacam-se as concentrações inéditas de metano e de dióxido de carbono (CO2), este último em comprovado aumento contínuo desde o século XVIII devido ao consumo de combustíveis fósseis nos países industrializados. Esta associação entre o actual processo das alterações climáticas e os gases com efeito de estufa (com destaque para o CO2), reforça a necessidade de mudar o paradigma energético. Ou seja, substituir os combustíveis fósseis (sobretudo petróleo e carvão) em que têm assentado todos os processos de desenvolvimento, o que envolve uma mudança científica e tecnológica rápida que nos liberte da sua dependência. Questões económicas e geoestratégicas sublinham esta recomendação. Mas mudar o paradigma energético não é fácil nem barato e, por isso, só quem já é desenvolvido e rico está em condições de pagar o encantador luxo de "descarbonizar a sua economia" como agora se diz. A questão não é, claro, assim tão linear porque os países e as sociedades também não são simples e homogéneas. Mas, em geral, o que resulta é que, na visão dos países pobres, não há outro caminho praticável para sair da pobreza que não seja poluente. A menos que, num gesto decente e até interesseiro, os países mais ricos transferissem para os mais pobres não só as tecnologias necessárias como os meios económicos que os dispensassem de prosseguir no modelo produtivo baseado em combustíveis fósseis, recursos que alguns deles têm, aliás, com abundância. A mudança de paradigma energético, tem assim um significado muito diferente, conforme se trate de um país pouco, muito ou medianamente desenvolvido. Esta diferença entre países não é só de desenvolvimento. É também de vulnerabilidade. Os países menos desenvolvidos, quase todos do hemisfério sul, estão muito mais expostos às consequências das alterações climáticas. Seja por razões naturais como a localização; seja por ressaca da sua história recente; seja pelos efeitos de utilização desequilibrada e intensiva dos seus recursos, seja pela incapacidade de resposta organizada aos fenómenos extremos, as suas populações sofrerão de forma mais drástica todos os impactos negativos das alterações climáticas - das tempestades às secas, da submersão costeira ao degelo, das crises sanitárias às alimentares. Vamos ao segundo ponto. Copenhaga, num cenário de tantas desigualdades, podia ter escolhido equilibrá-las, mas preferiu transformar o problema em dilema e optar pela solução-Titanic: o salva-vidas é para a primeira classe. Quer isto dizer que, cientes da gravidade das alterações climáticas, os governantes do mundo decidiram promover acima de tudo o cínico paradigma da 'adaptação', deixando às diferentes dinâmicas dos diversos países a suposta liberdade de se adaptarem mais depressa ou mais devagar, melhor ou pior, à mudança climática, e, em coerência com isto, a liberdade para reduzirem mais ou menos as suas emissões de GEE. Como os países desenvolvidos são os únicos que estão em condições de explorar as possibilidades de um novo paradigma energético e como são também os únicos que têm dinheiro, ciência e tecnologia para reagir às consequências das alterações climáticas e diminuir os seus efeitos calamitosos, ficarão a chorar no salva-vidas os pobres desgraçados que se afogam em seu redor. Um mês depois da Cimeira, ainda é cedo para ponderar todas as suas consequências, mas já James Lovelock num livro recente - comparando o confortável mundo ocidental a um barco onde o capitão e oficiais têm que decidir quantos e quais refugiados podem aceitar - alertava para o risco de desumanização da humanidade que a actual situação comporta. Copenhaga parece estar a dar-lhe razão e, a ser verdade, está a abrir-se um ciclo vicioso. É que o mundo não é esférico por convenção ou por decreto e não é possível imunizar uma fracção do planeta àquilo que se passa com o restante. Mesmo que se queira explorar a desigualdade a nosso favor, o problema fará a sua própria circum-navegação. Os desafios das alterações climáticas não acabaram no reino da Dinamarca. Perdeu-se uma oportunidade, mas não se perdeu a última oportunidade. 2010 o dirá! O mar enrola na terra

Independentemente do que aconteceu em Copenhaga, a subida do nível do mar - que resulta da fusão das calotes polares e da dilatação da água - é um facto incontestado. Por sua vez, o recuo da linha de costa não se dá apenas porque o copo está mais cheio de água; é também porque o copo está mais agitado: maior ímpeto das tempestades marítimas implica maior impacto físico sobre o litoral. No caso português, a situação é clara. Alveirinho Dias, geólogo da Universidade do Algarve, há muito que estuda o assunto: se entre 1920 e 1990 a taxa média de subida do nível do mar foi de 1,7mm/ano, entre 1990 e 2000 foi de 2,5mm/ano. Os impactos também são claros: galgamentos com forte redução de área costeira, recuo da linha de costa, erosão dunar, desaparecimento de praias, infra-estruturas costeiras destruídas; derrocadas de arribas (relembre-se Albufeira); lagunas e estuários afectados com perda de terrenos agrícolas, salinização dos aquíferos, etc. Há anos que se alerta para a nossa insegurança costeira e se brama contra a forma irracional de ocupação do litoral. Nada acontece. Veja-se o caso da Costa de Caparica: gastam-se em média cinco milhões de euros por ano a deitar areia em S. João da Caparica para impedir que o mar avance paulatinamente. Mas é deitar açúcar num copo de água: rapidamente o efeito se desfaz. Entretanto, alheio a tudo isto, a proposta do Polis prevê o aumento do número de fogos com vistas para o mar - de melhor qualidade do que o degradado parque de campismo, sem dúvida, mas com que futuro frente ao mar? À custa de abusarmos das frentes marítimas, acabará o mar por abusar das frentes urbanas. O que Copenhaga nos mostrou nas suas incipientes conclusões foi justamente a importância das medidas de adaptação às inevitáveis mudanças climáticas - por isso, é preciso começar a agir já no nosso litoral - ou seja, recuar construções e não deixar construir lá novas. Mais uma vez, o que temos de melhor é leis, leis, leis. A recentemente aprovada Estratégia para a Gestão Integrada da Zona Costeira traria algumas soluções, mas, tal como os outros planos deste país, tornou-se mais um adorno de biblioteca. Leis, leis, leis...

Sim, leis, temos muitas. Será por isso que vão para o lixo tão depressa? A recente lei de benefícios fiscais para abate dos automóveis obsoletos, geralmente muito poluentes e energeticamente ineficientes o que vai dar ao mesmo, cessa de vigorar no final deste mês de Dezembro. Há uns anos Portugal encheu-se de carros velhos e baratos, importados directamente de países europeus que já não os queriam, originando uma autêntica fábrica ambulante de toxicidade ambiental a espalhar dano pelas ruas e pelas estradas. Então táxis, autocarros e camionetas, são uma desgraça ambiental diária. Em plena crise económica, e perante as alterações climáticas, num país em que tudo anda sobre rodas menos o que devia, a suspensão deste benefício fiscal vai condenar-nos a mais poluição e irracionalidade energética. Tal como a propaganda diz, somos um país de tradição e modernidade. O problema é que algumas das nossas tradições são como o litoral e a sucata rolante; e algumas das nossas modernidades são como esta lei: duram apenas um instante... Solstício de inverno, ou talvez não

O solstício também é um instante. No caso do Inverno, é o momento em que estamos mais longe do sol, mas em Portugal estamos ainda mais longe. O benefício fiscal para a instalação de painéis para a água quente solar nas casas, que cobria metade do custo dos equipamentos a instalar na casa e ainda abatia o IRS, poderá acabar em 2010. Ainda mal a opinião pública começara a perceber a mensagem e as suas vantagens, e... já não vale. Para mais, a medida estava a começar a ser um sucesso e, convém relembrar, que só temos ainda cerca de 230 mil m2 de painéis solares instalados, quando o objectivo do Programa E4, aprovado em 2001, era de um milhão... Espera-se, pois, um novo vigor nesta tão enérgica lei. É que, independentemente do que aconteceu em Copenhaga, a aposta na eficiência e autonomia energéticas bem como nas fontes renováveis e infinitas, é absolutamente prioritária. Texto publicado na edição do Expresso de 9 de Janeiro de 2010 A paisagem da corrupção Luísa Schimdt (www.expresso.pt) 0:01 Quarta feira, 2 de dezembro de 2009 Urgência. Parecem coisas distantes uma da outra, mas que o 'Pacote Cravinho' volte a ser assumido no Parlamento é o mais significativo sinal de esperança para o ambiente e ordenamento do território no país que há anos tropeça no desleixo. Nunca tanto como agora o tema da corrupção esteve na ordem do dia. A onda de fundo começou a partir da década de 90. Fiscalistas, magistrados juristas, deputados, jornalistas, comentadores e até um ex-presidente da CIP... foram apontando para a existência de uma espécie de mistério informe que parecia contaminar a sociedade portuguesa de uma ponta à outra. Justamente por ser misterioso e informe criou as mais desvairadas suspeitas. Começava a parecer que todo país era um caos fétido de corrupções passivas e activas, grandes e pequenas. Rapidamente alguns ângulos do polígono da corrupção mostraram os seus bicos: disparidades grosseiras entre ostentação de consumo e declarações de impostos; propensões sistemáticas para os mesmos adjudicatários de concursos; circulação contínua entre lugares políticos e empresas; desvios constantes entre orçamentos aprovados e custos finais nas obras públicas... Enfim, o invisível estava à vista apenas escondido pela banalidade da sua generalização. Alguns pontos inflamatórios da doença surgiam com insistência: obras públicas, adjudicações, decisões autárquicas, empresas públicas, SAD, consultorias, contas dos partidos. A grande máquina da corrupção assentava afinal no clientelismo generalizado em rede. E o clientelismo assentava numa tradição antiga de fragilidade da sociedade civil e no seu jogo de protecções. A dinâmica à escala nacional da agora tão falada corrupção traduz os mais profundos impedimentos ao sucesso do país em todos os seus grandes objectivos. E há um que tem sido a face visível de muitos outros e que põe em xeque aspectos determinantes do futuro de todos nós. Trata-se da cadeia viciosa do ordenamento do território/ infra-estruturas públicas/caos urbanístico/imobiliário/administração local e central. João Cravinho, que ocupara a pasta do Ministério do Equipamento, Planeamento e Administração do Território, percebeu bem este verdadeiro carrossel de vícios pelo qual circula o veneno da corrupção de que agora tanto se fala e que se pretende finalmente atalhar. Enquanto deputado propôs por duas vezes, em 2006, fazer aprovar um conjunto de regras e um pacto geral contra a corrupção. Não conseguiu. Posteriormente, lá foi saindo uma ou outra medida solta, tal como o Conselho de Prevenção da Corrupção entregue, em boa hora, a Guilherme d'Oliveira Martins. Mas só agora, pela primeira vez desde a proposta de Cravinho, existe um aparente consenso entre todas as forças políticas para se avançar a sério. O tempo que demorou nos quadros políticos portugueses de todos os quadrantes a integrar a necessidade daquilo que ainda há três anos fizeram reprovar no Parlamento, dá bem medida da profundidade vascular que o problema alcançou no nosso país. Ora, quem ler o 'Pacote Cravinho' percebe que não se trata de um conjunto de medidas radicais como se fez constar com óbvias intenções de boicote e manipulação da opinião pública. O ponto central assumia que a corrupção se instalara em rede (ou em teia) ligando administração pública, partidos, empresas públicas e privadas. Logo, a questão de partida é menos de polícia do que de política e, portanto, remete para a responsabilidade do Governo e do Parlamento. Estes teriam de apreciar e deliberar os relatórios e propostas de uma Comissão para a Prevenção da Corrupção independente a funcionar junto da Assembleia da República (AR) e também explicar-se perante o insucesso das suas próprias medidas. A Procuradoria Geral da República teria de reportar à AR os temas da corrupção a tratar prioritariamente. Como actividade de risco agravado identificava-se, entre outras, a gestão urbanística. O Pacote não pretendia reeducar a cidadania portuguesa. Os seus objectivos eram prudentes e realistas, preventivos e dissuasores e não propriamente um sonho irrealizável. Precisamente por isso ficou como um fantasma na consciência a assombrar a classe política portuguesa e hoje todos falam dele e procuram um processo não embaraçoso de o retomar. Felizmente o Conselho liderado por Oliveira Martins já adoptou algumas medidas. E está hoje nas mãos de Vera Jardim fazer vingar muitas das regras anteriormente chumbadas e mais algumas (incluindo o enriquecimento ilícito dos titulares de cargos públicos). O desgaste profundo que uma velha e já insuportável cultura política interna ao aparelho dos partidos provocou na estatura moral da sociedade civil, tem agora a oportunidade de se restaurar. Esta é uma mudança que já não pode recuar. Disso dependem todos os futuros do país e, em particular o futuro dos seus martirizados valores ambientais que a ruína e desleixo das paisagens a cada passo denunciam. Foi pena o tempo que se perdeu; há que não perder mais nenhum. Ministério Público e do Ambiente em união de facto

Por falar em necessidade de mudança e num regime mais salutar, transparente e funcional da administração pública, destaque-se o Protocolo estabelecido antes das últimas legislativas entre o Ministério do Ambiente e o Ministério Público, promovido por João Ferrão, então secretário de Estado do Ordenamento do Território e das Cidades. O objectivo é fornecer apoio técnico mútuo; colaborar em acções de formação; debater conjuntamente matérias relevantes no domínio do ordenamento do território e, sobretudo, suscitar a fiscalização efectiva pelo Ministério Público sempre que as comissões de coordenação regionais (CCDR) e a Direcção-Geral de Ordenamento e Urbanismo (DGOTDU) detectem incompatibilidades e desconformidades entre os planos municipais de ordenamento do território e os planos regionais, sectoriais e especiais. Além destas vantagens, tem também a de instalar uma pedagogia assente numa cooperação mútua. Deste protocolo espera-se ainda não só maior clareza no funcionamento das autarquias locais, as quais adquiriram legalmente nos últimos dois anos maior responsabilidade na gestão territorial, como um reflexo pedagógico continuado e progressivo envolvendo a administração central e local. Estamos ainda longe do modelo de Espanha, onde o Ministério Público criou um corpo interdisciplinar de peritos para tratar do crime ambiental e urbanístico - este último, aliás, nem sequer tem figura jurídica entre nós. Mas foi um passo. É urgente que seja activado tanto pelo Ministério Público como pelo Ministério do Ambiente, não o remetendo para as gavetas fundas do costume. Bruxelas esmiúça barragens

Por falar em pedagogia, há lições a retirar do embaraçoso relatório de 400 páginas que a Comissão Europeia (CE) enviou ao Governo português sobre o seu Programa Nacional de Barragens. Eis algumas dessas lições. 1ª) Ser teimoso não comprova ter razão. O Plano de Barragens do Governo pode ter propostas muito interessantes, mas o que ele não pode ser é um documento blindado ao confronto com outros argumentos. 2ª) Ter intenções não garante resultados - as contas que cada vez mais entidades e especialistas fazem aos ganhos e perdas do Programa de Barragens na sua globalidade divergem das contas optimistas que o Governo fez. Não é vergonha, em democracia, levar em linha de conta outras opiniões e rever algumas decisões. 3ª) A pedagogia da participação pública é uma construção difícil e lenta mas necessária. Ora, não se activa nenhuma participação cívica eficaz desmobilizando processos de consulta, desencorajando informação e notícia, empatando dados, ignorando em absoluto o esforço participativo da sociedade civil, tratando até com alguma soberba as ONG. Afinal, o parecer delas, tal como o do CNADS, tinha merecido ser ponderado a tempo e horas, poupando talvez ao Governo o embaraço de receber da CE um relatório em vários aspectos bem mais severo. Veja-se a atenção que Bruxelas deu às questões centrais dos caudais mínimos não assegurados, da redução da qualidade da água, da afectação dos peixes, do desconsiderado impacto das alterações climáticas e ao modo como estes factos podem pôr em causa a própria rentabilidade de muitas destas obras. Como nalguns casos já foram criados compromissos, ainda vamos ser todos nós a pagar algumas indemnizações por má gestão oficial do assunto. Era bom que o Governo reagisse com abertura e se debatesse seriamente os prós e os contras de todos e de cada um destes investimentos e os motivos. Tanto mais que as dúvidas estão instaladas. Lisboa em consulta

E a propósito de participação, o PDM de Lisboa está em fase final de elaboração e a CML, manifestando-se aberta e disponível, criou uma nova modalidade prévia à consulta pública para os cidadãos pedirem informações e formularem sugestões. As propostas estão disponíveis online (pdm.cm-lisboa.pt). Entretanto, até 28 de Dezembro, está patente no Atrium do ministério das Finanças ao Terreiro do Paço uma exposição sobre os projectos e planos propostos para a cidade. Aterro da Boavista, Parque Hospitalar Oriente, Parque Mayer, Alcântara... está lá tudo. Vale a pena ver pormenorizadamente os Planos de Pormenor - alguns levantam muito sérias preocupações. É participar! É participar! Texto publicado na edição do Expresso de 28 de Novembro de 2009 A lógica invertida Luisa Schimdt (www.expresso.pt) 9:00 Domingo, 1 de novembro de 2009 É urgente uma mudança de era na administração local que acabe com a viciosa articulação entre o financiamento das autarquias e os negócios do imobiliário. Enquanto as iluminações de Natal não vierem varrer de vez os emplastros publicitários das eleições, estes pelo menos ainda nos vão lembrando que há bem pouco tempo o país foi a votos para a administração local. Se esta é importante pela história e pela muito invocada proximidade aos cidadãos, no futuro sê-lo-á ainda mais. Aliás, maugrado os muitos casos deprimentes, pode dizer-se que os melhores governos a que o país tem assistido têm-se exercido em autarquias. É uma tradição que se iniciou logo a seguir ao 25 de Abril com o generalizado reconhecimento público da competência de gestão autárquica de algumas câmaras da CDU que fez época e criou padrões de referência. Évora era sempre dada como o melhor exemplo e, não por acaso, foi das primeiras autarquias a fazer um PDM, muito antes da lei o obrigar, e lançou mecanismos de transparência e participação, criando uma comissão da cidade composta por notáveis de várias filiações partidárias e sectores profissionais. Felizmente o exemplo foi seguido pelas outras formações partidárias, e só é pena que esta excelência das gestões autárquicas continue tão tristemente excepcional no mapa nacional. Gerir uma autarquia implica hoje competências exigentes e uma grande atenção à sobreposição de várias escalas: internacional, comunitária, nacional, regional... Tudo servido por novas estruturas de comunicação e de informação. Por seu lado, os munícipes também já não são o que eram há 30 anos e, cada vez mais, uma autarquia tem de governar para os seus residentes e para todos os outros que lhe atravessam o território num mundo em circulação. Por isso, chega a ser confrangedor assistir ao polígono de vícios que condenam a vida autárquica a negar-se a si mesma e a reproduzir indefinidamente os erros que era suposto ter corrigido há muito tempo. Dois aspectos são particularmente graves. Um, pelas consequências desastrosas que tem no já muito escangalhado ordenamento do território. Outro, pela corrosão que traz aos valores da democracia. O primeiro decorre da já insuportável perpetuação do financiamento das autarquias a reboque dos negócios do imobiliário, um vício que por toda a Europa já foi praticamente resolvido. Que eficácia pode ter uma política de ordenamento do território quando, ao nível autárquico, a principal fonte de receitas é a compra e venda de casas? E quando as mais-valias geradas por decisão administrativa revertem na sua totalidade para o mediador que conseguiu 'convencer' uma autarquia a tornar urbano um terreno que ele comprou barato - porque era rural - a quem, por vezes, nem a sua própria casa lá conseguia construir? O que vale o ordenamento quando todos os espacinhos livres de uma cidade, incluindo logradouros, são cobiçados para empilhar andares? O que vale o ordenamento do território sem uma lei de solos e sem um cadastro? No futuro, a gestão autárquica terá de ficar desembaraçada desta subordinação ao imobiliário. A situação é de tal modo insuportável que até já os próprios autarcas protestam contra esta patologia que, além do mais, como é do conhecimento público, se liga a um vasto circuito de corrupção, nepotismo e clientelismos. O segundo aspecto grave prende-se com o afastamento dos munícipes face à vida local. A negligente informação, a sobranceria de atitude e a velha cultura aparelhista partidária que se transfere para os elencos autárquicos leva-os a cuidar mais das suas redes internas do que daquilo que verdadeiramente importava, que é a interacção com os cidadãos. Já hoje, e cada vez mais no futuro, a participação é um critério essencial da qualidade governativa. Para a activar, é necessário ter a paciência e a persistência - sem contar com a coragem - de informar com clareza e eficácia os munícipes sobre o que se faz, o que aconteceu, o que se projecta, o modo como se utilizaram os recursos públicos. Esta é a única maneira de ir a pouco e pouco interessando as pessoas. Não é nenhum mistério, mas exige treino... A Agenda Local 21 (AL21) e o Orçamento Participativo (OP) são hoje dois instrumentos fundamentais para iniciar o processo de gestão autárquica do futuro. O primeiro leva a autarquia a trabalhar com os munícipes na definição partilhada de um Plano de Acção Local que integre de forma equilibrada imperativos sociais, económicos e ambientais. O segundo permite-lhes ajudar a decidir o destino dos orçamentos municipais e seus investimentos prioritários. Inúmeros estudos comprovam que tanto a AL21 como o OP são mecanismos eficazes para reduzir a abstenção e aumentar o nível de desenvolvimento nas localidades que as praticam. Nas próximas eleições, cerca de metade dos autarcas serão obrigatoriamente substituídos. O processo, tal como o futuro, começa já. A rolha que rói o rato Em pleno Largo do Rato, no lado oposto à sede do 'partido do Governo' nasceu um caso que se arrisca a ficar, não só para a história da cidade, como da relação entre os promotores privados e os poderes públicos. O que está em causa é a supina perversidade com que o Rato e a capital do país ficaram reféns de um projecto imobiliário. O edifício proposto tem uma dimensão brutal que rebenta com a escala do Largo (para dizer o menos). Mas, para já, centremo-nos no processo. Um promotor que dá pelo sublime nome de Artepura consegue em 2005 (nos tempos de Santana Lopes e Eduarda Napoleão) fazer aprovar um conjunto de metros quadrados de construção traduzidos agora num projecto de imóvel para o Largo do Rato, no gaveto entre a rua do Salitre e a Alexandre Herculano. Quando se discutiu o licenciamento, em 2008, com outra vereação, inúmeros problemas legais se levantaram. Entre outros, falta um Plano de Pormenor; o projecto não cumpre o regulamento de urbanização (REGEU) no que respeita às cérceas e não só. Também foi invocada a falta de integração arquitectónica no Largo que, não sendo um requisito legal, é muito grave. Perante isto, a obra não foi licenciada; a maioria dos vereadores votou contra. O promotor, com um direito que nunca deveria ter adquirido, e contestando o chumbo ao licenciamento, veio pedir uma indemnização de dezoito milhões de euros, a ratear pelos onze vereadores que lhe chumbaram o licenciamento (ou seja, 1,6 milhões de euros por cabeça e directamente ao bolso de cada um) ao abrigo da nova lei da responsabilidade extracontratual, que responsabiliza directamente os decisores pelos seus actos quando esteja em causa erro grosseiro ou outras formas de culpa. Depois de ter intimidado os vereadores, num gesto da mais depurada arte, a Artepura mostra-se graciosamente disposta a 'negociar' algumas alterações ao projecto e retirar as acções, desde que os vereadores se despachem a licenciar, invertendo a decisão anterior. Não é isto um inaceitável acto de chantagem sobre pessoas que estão a defender o interesse público? Como se pode cumprir funções públicas coagido por uma ameaça directa aos bens pessoais e familiares? Uma decisão política deverá poder estar sujeita à segurança patrimonial privada? A resultar, este caso abre um precedente perigosíssimo - porque faz pensar que, a partir de agora, basta ameaçar com uma acção judicial e os responsáveis públicos recuam. A nova vereação tem aqui a sua primeira prova de fogo - e de carácter. O interesse público não pode ceder a chantagens. E se é justo que as decisões administrativas não vivam entrincheiradas no arbítrio e na irresponsabilidade, também não é aceitável que a correcção desse vício se faça por intimidação directa. Ainda por cima, com base numa lei que foi criada para limitar erros graves, e não decisões de boa fé em defesa do interesse público. Nenhuma administração deve agir sob coacção. Casos como este mostram como é cada vez mais essencial a participação pública e a transparência informativa. Voltaremos. Está mal? Paciência... O fantástico resultado da sindicância que, a pedido da própria CML, foi feita aos serviços de urbanismo da autarquia, resultou na identificação de um número de casos suspeitos incrivelmente elevado. Vários projectos assinados sempre pelos mesmos arquitectos; ligações obscuras entre funcionários públicos e interesses privados; e muitas aprovações que infringem leis e regulamentos. São mais de mil. Perante isto, levantou-se o problema da exequibilidade da justiça, pois, segundo a CML, só para reanalisar os processos, a autarquia entraria em paralisia geral de funcionamento. Compreende-se o argumento. Mas pode-se aceitar com tamanho à-vontade que a justiça não se faça? E isso não tem custos também? Sim, e enormes! Seria um péssimo sinal se a autarquia decidisse, por questões de pragmatismo, passar uma esponja sobre tudo o que está errado nos processos que mandou examinar e que lhe compete supervisionar e levar até ao fim. Resta saber se não há soluções técnicas alternativas que permitam honrar a justiça sem bloquear a câmara. Por favor, expliquem muito bem aos lisboetas como são tomadas estas decisões. De preferência, antes de as tomarem. Texto publicado na edição do Expresso de 31 de Outubro de 2009 Pág. 2 de 3 « ... | 1 | 2 | 3 | ... » Ver 10, 20, 50 resultados por pág.

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