Não é não, talvez é não. Não é sedução, é violação.

11-10-2015
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O avesso do avesso Não é não, talvez é não. Não é sedução, é violação. 04.07.2014 às 8h00 333 Facebook Twitter Email Whatsapp Mais Google+ Linkedin Pinterest Link: Mariana Mortágua "Não se vislumbra como é possível considerar o ato de agarrar a cabeça como traduzindo o uso de violência de modo a constranger alguém à prática de um ato contra a sua vontade" (...) "Para que o empurrão na ofendida integrasse o conceito de violência, visada como elemento objetivo do crime de violação, teria de traduzir um 'plus' relativamente à força física normalmente utilizada na prática de um ato sexual".As citações são excertos do acórdão do Tribunal da Relação do Porto que absolveu um psiquiatra, em julgamento por violar uma paciente, grávida de 9 meses. Não foi por falta de provas que este violador foi absolvido. Foi a lei que o fez inocente porque, aos olhos da lei, um 'não' não basta, e um 'talvez' basta ainda menos. Aos olhos da lei não basta a uma mulher dizer que não quer, ela tem de provar que não quer, resistindo até à inconsciência. Se não o fizer é porque, provavelmente, estava a pedi-las. Se não o fizer é porque, como no acórdão do Porto, gosta de empurrões. Se não o fizer é porque, indesculpavelmente, não defendeu a sua honra com a vida. Aos olhos da lei, sexo sem consentimento, por si só, não é crime, não constitui uma violação da liberdade, não é uma violência. É permitido e é legal, as mulheres podem ser obrigadas a ter relações sexuais.O Código Penal é claro. Só é violador quem "por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa". Depois há uma situação considerada menos grave, com penas até 3 anos, para quem constrange outro "abusando de autoridade resultante de uma relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho".Aos olhos da lei, pode acontecer que um pai, um patrão, um padrasto use a sua relação de dominação para violar uma filha, uma empregada, uma enteada. Mas, porque é pai, patrão ou padrasto; porque o terror é psicológico e não físico, ou porque é físico mas não à inconsciência, é considerado menos grave. Nem é bem uma violação e, na verdade, nem sempre garante uma ida para a prisão. A lei não considera o abuso de uma relação de poder como uma agravante à violação, mas como uma atenuante. É como se, afinal, aquele homem tivesse esse direito sobre a sua mulher.Aos olhos da lei, atos de violação dentro do casamento ou de relações conjugais não existem. Podem até ser violência doméstica, mas não configuram um crime sexual. Aos olhos da lei, cabe à vítima a capacidade de romper com a dependência, com a humilhação, com a violência agravada e denunciar o agressor. Como se a sociedade nada tivesse a dizer, como se o Estado não tivesse o dever de a proteger. Como se a autodeterminação e a liberdade sexual não fossem direitos humanos. Aos olhos da lei, os agressores são violentos desconhecidos. Segundo os dados do Relatório Anual de Segurança Interna, a maioria dos violadores são conhecidos ou familiares. Mais, segundo o mesmo relatório (e vários outros estudos), a violação é um crime quase sempre heterossexual, de homens contra mulheres, seja qual for a idade. Os dados dizem também que, aqui como no Reino Unido ou na Alemanha, a taxa de denúncia destes crimes não ultrapassa os 10%.  Descobri, ao debater e estudar este tema, que a lei feita para olhar por mim, para me proteger, vê-me com os olhos de um machista. Descobri que o meu 'não' de mulher não chega, e que o meu 'talvez' não é um 'não', não basta. Percebi, com a indignação de alguém que redescobre a injustiça, que tenho pressa. Pressa para mudar a lei e dar ao 'não' de uma mulher o poder de ser não. Pressa para fazer da violação crime público, atribuindo ao Estado o dever de proteger e respeitar os direitos humanos destas mulheres, retirando-lhes de cima a humilhação, o risco e a culpa da denúncia.São estas as propostas que vão estar em debate final na Assembleia da República num futuro muito próximo. São estas as propostas que esta indignação, e estou certa de que não é só minha, devia tornar lei. E não nos digam que a sociedade não está ainda preparada para defender os direitos das mulheres. Temos pressa!  Palavras-chave feminismo Mariana Mortágua direitos humanos Facebook Twitter Email Whatsapp Mais Google+ Linkedin Pinterest Link:

O avesso do avesso Não é não, talvez é não. Não é sedução, é violação. 04.07.2014 às 8h00 333 Facebook Twitter Email Whatsapp Mais Google+ Linkedin Pinterest Link: Mariana Mortágua "Não se vislumbra como é possível considerar o ato de agarrar a cabeça como traduzindo o uso de violência de modo a constranger alguém à prática de um ato contra a sua vontade" (...) "Para que o empurrão na ofendida integrasse o conceito de violência, visada como elemento objetivo do crime de violação, teria de traduzir um 'plus' relativamente à força física normalmente utilizada na prática de um ato sexual".As citações são excertos do acórdão do Tribunal da Relação do Porto que absolveu um psiquiatra, em julgamento por violar uma paciente, grávida de 9 meses. Não foi por falta de provas que este violador foi absolvido. Foi a lei que o fez inocente porque, aos olhos da lei, um 'não' não basta, e um 'talvez' basta ainda menos. Aos olhos da lei não basta a uma mulher dizer que não quer, ela tem de provar que não quer, resistindo até à inconsciência. Se não o fizer é porque, provavelmente, estava a pedi-las. Se não o fizer é porque, como no acórdão do Porto, gosta de empurrões. Se não o fizer é porque, indesculpavelmente, não defendeu a sua honra com a vida. Aos olhos da lei, sexo sem consentimento, por si só, não é crime, não constitui uma violação da liberdade, não é uma violência. É permitido e é legal, as mulheres podem ser obrigadas a ter relações sexuais.O Código Penal é claro. Só é violador quem "por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa". Depois há uma situação considerada menos grave, com penas até 3 anos, para quem constrange outro "abusando de autoridade resultante de uma relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho".Aos olhos da lei, pode acontecer que um pai, um patrão, um padrasto use a sua relação de dominação para violar uma filha, uma empregada, uma enteada. Mas, porque é pai, patrão ou padrasto; porque o terror é psicológico e não físico, ou porque é físico mas não à inconsciência, é considerado menos grave. Nem é bem uma violação e, na verdade, nem sempre garante uma ida para a prisão. A lei não considera o abuso de uma relação de poder como uma agravante à violação, mas como uma atenuante. É como se, afinal, aquele homem tivesse esse direito sobre a sua mulher.Aos olhos da lei, atos de violação dentro do casamento ou de relações conjugais não existem. Podem até ser violência doméstica, mas não configuram um crime sexual. Aos olhos da lei, cabe à vítima a capacidade de romper com a dependência, com a humilhação, com a violência agravada e denunciar o agressor. Como se a sociedade nada tivesse a dizer, como se o Estado não tivesse o dever de a proteger. Como se a autodeterminação e a liberdade sexual não fossem direitos humanos. Aos olhos da lei, os agressores são violentos desconhecidos. Segundo os dados do Relatório Anual de Segurança Interna, a maioria dos violadores são conhecidos ou familiares. Mais, segundo o mesmo relatório (e vários outros estudos), a violação é um crime quase sempre heterossexual, de homens contra mulheres, seja qual for a idade. Os dados dizem também que, aqui como no Reino Unido ou na Alemanha, a taxa de denúncia destes crimes não ultrapassa os 10%.  Descobri, ao debater e estudar este tema, que a lei feita para olhar por mim, para me proteger, vê-me com os olhos de um machista. Descobri que o meu 'não' de mulher não chega, e que o meu 'talvez' não é um 'não', não basta. Percebi, com a indignação de alguém que redescobre a injustiça, que tenho pressa. Pressa para mudar a lei e dar ao 'não' de uma mulher o poder de ser não. Pressa para fazer da violação crime público, atribuindo ao Estado o dever de proteger e respeitar os direitos humanos destas mulheres, retirando-lhes de cima a humilhação, o risco e a culpa da denúncia.São estas as propostas que vão estar em debate final na Assembleia da República num futuro muito próximo. São estas as propostas que esta indignação, e estou certa de que não é só minha, devia tornar lei. E não nos digam que a sociedade não está ainda preparada para defender os direitos das mulheres. Temos pressa!  Palavras-chave feminismo Mariana Mortágua direitos humanos Facebook Twitter Email Whatsapp Mais Google+ Linkedin Pinterest Link:

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