Tão explosivo como Watergate

09-07-2011
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Esta história envolve a prática metódica de crimes ao longo de anos. Abriu uma crise institucional e política na Grã-Bretanha, pondo em causa a imprensa, a polícia e o primeiro-ministro, David Cameron. E roda em torno de um dos mais poderosos impérios mediáticos do mundo - a News Corporation, do magnata Rupert Murdoch. A bomba explodiu sobre o News of the World (NoW), um tablóide dominical, fundado em 1843 e que vende 2,8 milhões de exemplares. Na terça-feira, a News International (NI), o braço britânico da companhia de Murdoch, entregou à polícia documentos sobre o suborno de agentes. No dia seguinte, Murdoch anunciou a extinção do NoW. Ontem, foi preso Andy Coulson, antigo director do jornal e ex-director de comunicação de Cameron. Outras detenções se aguardam.

Um pequeno click fez detonar o mecanismo. Em 2002, o NoW entrou no voice mail de uma adolescente raptada, Milly Dowler, encontrada morta meses depois. O jornalista, através do detective contratado, não só destruiu provas como deu falsas esperanças à família. O escândalo foi multiplicado pela revelação de que o jornal escutara famílias de vítimas dos atentados terroristas de 7 de Julho de 2005 e de militares mortos no Iraque e no Afeganistão.

O efeito ultrapassou a comoção pública, dando liberdade de acção à polícia. As escutas e outras práticas ilegais estão sob investigação desde Janeiro, por uma brigada chefiada pela comissária Sue Alkers, investigadora-chefe do Crime Organizado e Redes Criminosas. Ela fala em quatro mil pessoas escutadas.

Além de dois inquéritos policiais, haverá um inquérito judicial em que as testemunha deporão sob juramento. E, certamente, mais investigação jornalística.

Coulson era director do NoW, em 2007, quando um jornalista e um detective foram presos e condenados por escutas a membros da família real. Alegou desconhecer os factos. Logo a seguir foi contratado por Cameron. Durante o caso Dowler, o jornal era dirigido por Rebecca Brooks, actual administradora da NI. Declarou-se "horrorizada" com o caso Dowler e garantiu ignorar as práticas dos seus jornalistas.

A polícia está "furiosa", reporta The Guardian. Calcula que a NI tenha destruído uma "quantidade maciça" de e-mails. Em Dezembro, um responsável da companhia declarou à polícia não haver arquivo, que este teria sido transferido para a Índia.

Há um risco para Murdoch. Tanto Coulson como Brooks funcionam como fusível e designados bodes expiatórios. O jornalista americano Jack Shafer apontava ontem a possibilidade de um deles seguir o exemplo de John Dean, conselheiro de Nixon, e fazer um acordo com a polícia.

Este é o resumo da intriga. Começa depois a crise institucional, que põe à prova o sistema britânico. Estão em causa a credibilidade e o papel da imprensa. É a "constatação de falência" da imprensa, assinala Peter Osborne da revista Spectator. Ao desvalorizar as notícias sobre o tablóide de Murdoch, os jornais de referência "deram a entender que fazem parte do mesmo sistema. (...) Apenas The Guardian e, tardiamente, The Independent cobriram a história com rigor e integridade."

A entidade reguladora, Press Complaints Comission, não funcionou. A seguir, está em causa a polícia. O problema maior não é a corrupção de agentes, incluindo oficiais, que receberam dinheiro em troca de informações. É que, desde 2005, os chefes da polícia não se preocuparam com o suborno de agentes e muito menos com os delitos do jornal - aparentemente porque os governos, que sempre temeram Murdoch, também o não estavam. As investigações foram "abafadas".

O ingrediente mais explosivo é o das conexões entre Murdoch e Cameron. Isto obriga a falar das suas relações com a política. O magnata nunca assumiu uma preferência partidária. Apoia ou destrói políticos consoante os interesses do seu império. Prefere ser amigo de quem está no Governo. Apoiou Thatcher, mais tarde Blair e agora Cameron. Pelo caminho, "assassinou" alguns políticos, como o trabalhista Neil Kinnock. "Ele é demasiado perigoso" e, por isso, todos o temiam e cortejavam, optando por não o contrariar.

Em 2007, mal Coulson foi forçado a demitir-se do NoW, imediatamente Cameron o contratou para director de comunicação. Por coincidência, também o chefe da oposição trabalhista, Ed Miliband, foi buscar para a mesma função um outro homem de Murdoch.

O magnata tem neste momento uma prioridade: comprar a totalidade da televisão por satélite BSkyB, de que detém 39 por cento, o que lhe daria um quase completo domínio do panorama mediático britânico. Para isso precisa do "sim" do Governo. A primeira consequência da "bomba" desta semana foi adiar a operação. Os analistas económicos e as bolsas são pessimistas sobre o seu êxito.

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Cameron está em xeque, mas tem aqui uma "oportunidade dourada" para se libertar - a si e à política britânica - da tutela de Murdoch. Durante anos, os deputados viveram "aterrorizados pela imprensa de Murdoch", declara o jornalista britânico Simon Hoggart. "Mas isto mudou. A News Corporation passou a linha vermelha e os deputados - como os presos políticos depois do tirano ser condenado à morte num tribunal popular - sentem-se finalmente livres." Para Cameron, diz um politólogo, o magnata tornou-se "companhia tóxica".

Ao fechar o NoW, Murdoch não assinou a rendição. Tentou, como sempre fez, retomar a iniciativa e o controlo do calendário para redispor as peças no tabuleiro e salvaguardar o negócio da BSkyB, escreve o analista americano Bob Garfield. Mas não lhe augura grande futuro.

"Neste drama, a pobre Milly Dowlar é Mohammed Bouazizzi", o tunisino que se imolou pelo fogo e fez despertar uma cólera contida durante décadas que depressa varreu o regime de Ben Ali e contagiou o mundo árabe. Os árabes serão os jornalistas e os políticos. A ser verdade, seria uma explosão maior do que a de Watergate. E, como no tempo de Nixon, tudo se deveria a um velho e rigoroso jornal impresso - The Guardian. Ao menos isso.

Esta história envolve a prática metódica de crimes ao longo de anos. Abriu uma crise institucional e política na Grã-Bretanha, pondo em causa a imprensa, a polícia e o primeiro-ministro, David Cameron. E roda em torno de um dos mais poderosos impérios mediáticos do mundo - a News Corporation, do magnata Rupert Murdoch. A bomba explodiu sobre o News of the World (NoW), um tablóide dominical, fundado em 1843 e que vende 2,8 milhões de exemplares. Na terça-feira, a News International (NI), o braço britânico da companhia de Murdoch, entregou à polícia documentos sobre o suborno de agentes. No dia seguinte, Murdoch anunciou a extinção do NoW. Ontem, foi preso Andy Coulson, antigo director do jornal e ex-director de comunicação de Cameron. Outras detenções se aguardam.

Um pequeno click fez detonar o mecanismo. Em 2002, o NoW entrou no voice mail de uma adolescente raptada, Milly Dowler, encontrada morta meses depois. O jornalista, através do detective contratado, não só destruiu provas como deu falsas esperanças à família. O escândalo foi multiplicado pela revelação de que o jornal escutara famílias de vítimas dos atentados terroristas de 7 de Julho de 2005 e de militares mortos no Iraque e no Afeganistão.

O efeito ultrapassou a comoção pública, dando liberdade de acção à polícia. As escutas e outras práticas ilegais estão sob investigação desde Janeiro, por uma brigada chefiada pela comissária Sue Alkers, investigadora-chefe do Crime Organizado e Redes Criminosas. Ela fala em quatro mil pessoas escutadas.

Além de dois inquéritos policiais, haverá um inquérito judicial em que as testemunha deporão sob juramento. E, certamente, mais investigação jornalística.

Coulson era director do NoW, em 2007, quando um jornalista e um detective foram presos e condenados por escutas a membros da família real. Alegou desconhecer os factos. Logo a seguir foi contratado por Cameron. Durante o caso Dowler, o jornal era dirigido por Rebecca Brooks, actual administradora da NI. Declarou-se "horrorizada" com o caso Dowler e garantiu ignorar as práticas dos seus jornalistas.

A polícia está "furiosa", reporta The Guardian. Calcula que a NI tenha destruído uma "quantidade maciça" de e-mails. Em Dezembro, um responsável da companhia declarou à polícia não haver arquivo, que este teria sido transferido para a Índia.

Há um risco para Murdoch. Tanto Coulson como Brooks funcionam como fusível e designados bodes expiatórios. O jornalista americano Jack Shafer apontava ontem a possibilidade de um deles seguir o exemplo de John Dean, conselheiro de Nixon, e fazer um acordo com a polícia.

Este é o resumo da intriga. Começa depois a crise institucional, que põe à prova o sistema britânico. Estão em causa a credibilidade e o papel da imprensa. É a "constatação de falência" da imprensa, assinala Peter Osborne da revista Spectator. Ao desvalorizar as notícias sobre o tablóide de Murdoch, os jornais de referência "deram a entender que fazem parte do mesmo sistema. (...) Apenas The Guardian e, tardiamente, The Independent cobriram a história com rigor e integridade."

A entidade reguladora, Press Complaints Comission, não funcionou. A seguir, está em causa a polícia. O problema maior não é a corrupção de agentes, incluindo oficiais, que receberam dinheiro em troca de informações. É que, desde 2005, os chefes da polícia não se preocuparam com o suborno de agentes e muito menos com os delitos do jornal - aparentemente porque os governos, que sempre temeram Murdoch, também o não estavam. As investigações foram "abafadas".

O ingrediente mais explosivo é o das conexões entre Murdoch e Cameron. Isto obriga a falar das suas relações com a política. O magnata nunca assumiu uma preferência partidária. Apoia ou destrói políticos consoante os interesses do seu império. Prefere ser amigo de quem está no Governo. Apoiou Thatcher, mais tarde Blair e agora Cameron. Pelo caminho, "assassinou" alguns políticos, como o trabalhista Neil Kinnock. "Ele é demasiado perigoso" e, por isso, todos o temiam e cortejavam, optando por não o contrariar.

Em 2007, mal Coulson foi forçado a demitir-se do NoW, imediatamente Cameron o contratou para director de comunicação. Por coincidência, também o chefe da oposição trabalhista, Ed Miliband, foi buscar para a mesma função um outro homem de Murdoch.

O magnata tem neste momento uma prioridade: comprar a totalidade da televisão por satélite BSkyB, de que detém 39 por cento, o que lhe daria um quase completo domínio do panorama mediático britânico. Para isso precisa do "sim" do Governo. A primeira consequência da "bomba" desta semana foi adiar a operação. Os analistas económicos e as bolsas são pessimistas sobre o seu êxito.

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Cameron está em xeque, mas tem aqui uma "oportunidade dourada" para se libertar - a si e à política britânica - da tutela de Murdoch. Durante anos, os deputados viveram "aterrorizados pela imprensa de Murdoch", declara o jornalista britânico Simon Hoggart. "Mas isto mudou. A News Corporation passou a linha vermelha e os deputados - como os presos políticos depois do tirano ser condenado à morte num tribunal popular - sentem-se finalmente livres." Para Cameron, diz um politólogo, o magnata tornou-se "companhia tóxica".

Ao fechar o NoW, Murdoch não assinou a rendição. Tentou, como sempre fez, retomar a iniciativa e o controlo do calendário para redispor as peças no tabuleiro e salvaguardar o negócio da BSkyB, escreve o analista americano Bob Garfield. Mas não lhe augura grande futuro.

"Neste drama, a pobre Milly Dowlar é Mohammed Bouazizzi", o tunisino que se imolou pelo fogo e fez despertar uma cólera contida durante décadas que depressa varreu o regime de Ben Ali e contagiou o mundo árabe. Os árabes serão os jornalistas e os políticos. A ser verdade, seria uma explosão maior do que a de Watergate. E, como no tempo de Nixon, tudo se deveria a um velho e rigoroso jornal impresso - The Guardian. Ao menos isso.

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