Antologias: Tarefa tão íntima em mão anónima

20-01-2012
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Tarefa tão íntima em mão anónima via O que eu andei ... de João B. Serra em 02/04/09 Quando ouviu dizer que eu ia à cidade, Vovó Nzdima emitiu as maiores suspeitas:- E vai ficar em cada de quem?- Fico no hotel, avó.- Hotel? Mas é casa de quem?Explicar como? Ainda assim, ensaiei: de ninguém, ora. A velha fermentou nova desconfiança: uma casa de ninguém?- Ou melhor, avó: é de quem paga - palavreei para a tranquilizar.Porém, só agravei - um lugar de quem paga? E que espíritos guardam uma casa como essa?A mim me tinha cabido um prémio do Ministério. Eu tinha sido o melhor professor rural. E o prémio era visitar a grande cidade. Quando, em casa, anunciei a boa nova, a minha mais-velha não se impressionou com o meu orgulho. E franziu a voz:- E, lá, quem te faz o prato?- Um cozinheiro, avó.- Como se chama esse cozinheiro?Ri, sem palavra. Mas, para ela, não havia riso nem motivo. Cozinhar é o mais privado e arriscado acto. No alimento se coloca ternura ou ódio. Na panela se verte tempero ou veneno. Quem assegura a pureza da peneira e do pilão? Como podia eu deixar essa tarefa, tão íntima, ficar em mão anónima? Nem pensar, nunca tal se viu, sujeitar-se a um cozinhador de quem nem o rosto se conhece.- Cozinhar não é um serviço, meu neto - disse ela - Cozinhar é um modo de amar os outros.Mia Couto, O Fio das Missangas. Contos.3ª ed. Lisboa, Caminho, 2004. p. 127-128


Tarefa tão íntima em mão anónima via O que eu andei ... de João B. Serra em 02/04/09 Quando ouviu dizer que eu ia à cidade, Vovó Nzdima emitiu as maiores suspeitas:- E vai ficar em cada de quem?- Fico no hotel, avó.- Hotel? Mas é casa de quem?Explicar como? Ainda assim, ensaiei: de ninguém, ora. A velha fermentou nova desconfiança: uma casa de ninguém?- Ou melhor, avó: é de quem paga - palavreei para a tranquilizar.Porém, só agravei - um lugar de quem paga? E que espíritos guardam uma casa como essa?A mim me tinha cabido um prémio do Ministério. Eu tinha sido o melhor professor rural. E o prémio era visitar a grande cidade. Quando, em casa, anunciei a boa nova, a minha mais-velha não se impressionou com o meu orgulho. E franziu a voz:- E, lá, quem te faz o prato?- Um cozinheiro, avó.- Como se chama esse cozinheiro?Ri, sem palavra. Mas, para ela, não havia riso nem motivo. Cozinhar é o mais privado e arriscado acto. No alimento se coloca ternura ou ódio. Na panela se verte tempero ou veneno. Quem assegura a pureza da peneira e do pilão? Como podia eu deixar essa tarefa, tão íntima, ficar em mão anónima? Nem pensar, nunca tal se viu, sujeitar-se a um cozinhador de quem nem o rosto se conhece.- Cozinhar não é um serviço, meu neto - disse ela - Cozinhar é um modo de amar os outros.Mia Couto, O Fio das Missangas. Contos.3ª ed. Lisboa, Caminho, 2004. p. 127-128

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