365 forte

15-08-2015
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David Crisóstomo

Recebi esta manhã um e-mail do Jorge Pinto, cabeça-de-lista do LIVRE/Tempo de Avançar pelo círculo eleitoral da Europa às próximas eleições legislativas, de que transcrevo o seguinte parágrafo:

"Talvez não saibas, mas votar no estrangeiro não é propriamente fácil. Contrariamente ao que acontece em território nacional, onde o recenseamento é automático e obrigatório, assim que se altera o local de residência para o estrangeiro, perde-se imediatamente a capacidade eleitoral, seja em Portugal, seja no país de acolhimento. Não sendo possível votar nos círculos eleitorais nacionais tendo-se a residência no estrangeiro, restam os círculos da emigração – Europa e Fora da Europa. No entanto, para poder votar nestes círculos, é necessário proceder ao recenseamento eleitoral que deve obrigatoriamente ser feito de forma presencial no Consulado da área de residência. Mais, o recenseamento fecha 60 dias antes da data das eleições, ou seja, no dia 5 de Agosto."

Num caso mais real, um amigo meu, Luís Valente, cidadão nacional que recentemente mudou a sua residência para Heidelberga, na Alemanha, decidiu há umas semanas, quando se encontrava em Lisboa, ir à conservatória alterar a sua morada legal, pensando até no facto de talvez não poder se deslocar a Portugal no próximo ato eleitoral. Na conservatória alteram-lhe a morada e quando perguntou como se procedia à mudança do recenseamento eleitoral do círculo de Lisboa para o círculo da Europa, foi lhe dito "achavam" que a transferência se procedia automaticamente. Mais tarde veio a saber que não, que achavam mal, que não era de todo automático, que teria que (até 5 de Agosto) perder um dia de trabalho e deslocar-se ao consulado mais próximo - neste caso, Estugarda - para solicitar a alteração de círculo eleitoral. Não tendo capacidade para tal nestas semanas, decidiu que tentaria mesmo ir a Lisboa, mais precisamente a Carcavelos, no fim-de-semana de 4 de Outubro para votar na mesa-de-voto onde se julgava inscrito. Mas também não, não poderá - ao consultar o site www.recenseamento.mai.gov.pt verificou que não só não poderia exercer o seu direito de voto no círculo eleitoral onde reside, como também não o poderia fazer no círculo onde se achava então recenseado (Lisboa) - nem lá nem em lado nenhum, pois a conservatória de Lisboa, ao proceder à sua mudança de morada, também o retirou dos cadernos de Lisboa, sem assegurar a sua transferência ou posterior inscrição nos cadernos de um outro círculo eleitoral. O Luís, cidadão maior de idade da República Portuguesa e da União Europeia, é pois, à semelhança de muitos emigrantes nossos que de boa fé alteram as suas moradas legais sem realizarem um pedido de recenseamento eleitoral (seja por falta de informação, tempo ou, vamos lá ver, representação diplomática portuguesa a uma distância razoável [experimentem ser um emigrante luso a viver na Arménia, na Guatemala ou no Vietname, onde nem embaixada portuguesa há]) sem capacidade eleitoral, sem poder ser eleito ou votar em qualquer acto eleitoral português. Ao tomar conhecimento disto, o meu espanto era tal que recorri a dois outros amigos meus residentes em Bruxelas para me confirmarem se isto era relativamente comum - e ambos me confirmaram que outrora também foram, durante uns meses, cidadãos portugueses sem direito a eleger e serem eleitos, até conseguirem corrigir a situação no consulado.

Ora, o que diz a lei sobre esta "particularidade"? Comecemos pela Constituição.

No artigo 113.º, nº. 2, podemos ler que "o recenseamento eleitoral é oficioso, obrigatório, permanente e único para todas as eleições por sufrágio directo e universal, sem prejuízo do disposto nos n.os 4 e 5 do artigo 15.º e no n.º 2 do artigo 121.º." O artigo 15.º é referente aos cidadãos estrangeiros, logo não é relevante para esta temática. Já o artigo 121.º, refere-se à eleição do Presidente da República e, no n.º2, clarifica que "a lei regula o exercício do direito de voto dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro, devendo ter em conta a existência de laços de efectiva ligação à comunidade nacional". Relembremos que até 2010 a Lei Eleitoral do Presidente da República negava o direito ao voto aos portugueses residentes no círculo da Europa há mais de 15 anos e há mais de 10 anos nos países do círculo de Fora da Europa (excepção feita aos territórios de Macau e Timor-Leste), bem como aos cidadãos portugueses residentes fora de Portugal que detinham dupla nacionalidade.

Continuemos. O n.º 12 do artigo 115.º nota que "nos referendos são [também] chamados a participar cidadãos residentes no estrangeiro, regularmente recenseados ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 121.º, quando recaiam sobre matéria que lhes diga também especificamente respeito." Não existe uma definição do que é "matéria que diga também especificamente respeito" aos emigrantes [enfim], mas, a título de exemplo, o Tribunal Constitucional considerou no ano passado que um eventual referendo sobre a adopção ou a co-adopção por casais, casados ou unidos de facto do mesmo sexo não poderia nunca excluir os cidadãos portugueses residentes no estrangeiro do universo eleitoral.

Por fim, consideremos o artigo 14.º, "Portugueses no Estrangeiro", onde se lê que "os cidadãos portugueses que se encontrem ou residam no estrangeiro gozam da protecção do Estado para o exercício dos direitos e estão sujeitos aos deveres que não sejam incompatíveis com a ausência do país".

Do que se poderia concluir desta leitura constitucional, relativamente à capacidade eleitoral (activa e passiva) dos cidadãos portugueses residentes além-fronteiras?

1.º - Que no nosso regime eleitoral, o recenseamento obedece a quatro princípios basilares, gerais e fundamentais: oficiosidade, obrigatoriedade, permanência e unicidade e é válido para todos os actos eleitorais. São especificadas excepções, mas nenhuma delas define que os cidadãos portugueses residentes fora do território nacional deverão ser excepcionados de todos os direitos e deveres consequentes destes princípios nas eleições para a Assembleia da República, para o Parlamento Europeu e para os órgãos autárquicos e regionais, admitindo apenas que no caso do exercício do direito de voto (e não o de irem a votos) para os portugueses emigrados em eleições presidenciais possa existir limitações. Como referi, o legislador abdicou em 2010 da possibilidade de existirem limitações para este ato eleitoral.

2.º - Que no caso dos referendos a Constituição admite a possibilidade de estes, em determinadas temáticas que lhes sejam externas, excluírem do universo eleitoral os cidadãos nacionais que residam fora de Portugal. Se isto aconteceu, por exemplo, no caso dos dois referendos sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, o Tribunal Constitucional não aceitou que tal se repetisse num putativo referendo sobre a possibilidade de adopção ou co-adopção de casais, casados ou unidos de facto do mesmo sexo.

3.º - Como é natural, a Constituição nota que os cidadãos que residam no estrangeiro gozam da protecção do Estado para o exercício dos seus direitos e estão sujeitos aos deveres que não sejam incompatíveis com a ausência do país. Como existem dois círculos eleitorais para a diáspora, Europa e Fora da Europa, com mesas-de-voto em todas as representações diplomáticas portuguesas e como o exercício do voto nas eleições para a Assembleia da República é feito por correspondência postal para os cidadãos recenseados nos círculos exteriores ao território nacional, não me parece que nenhum dos direitos e deveres relacionados com estes sufrágios sejam incompatíveis com ausência de Portugal - como tal, continua a ser obrigação do Estado português garantir a sua protecção.

Analisada a lei fundamental do país, voltemos-nos agora para a Lei do Recenseamento Eleitoral, de 1999, alterada em 2002, 2005 e 2008. Começamos por notar que o artigo 1.º é praticamente um copy-paste do n.º2 do 113.º da Constituição. O artigo 2.º e o 3.º clarificam o que se entende por universalidade e obrigatoriedade e oficiosidade, respectivamente. Que "o recenseamento eleitoral abrange todos os que gozem de capacidade eleitoral activa"; que "a inscrição no recenseamento implica a presunção de capacidade eleitoral activa"; que "todos os eleitores têm o direito e o dever de promover a sua inscrição no recenseamento, bem como de verificar se estão inscritos e, em caso de erro ou omissão, requerer a respectiva rectificação" e que tais actos "são obrigatórios para os cidadãos nacionais residentes no território nacional maiores de 18 anos". Com a especificação "residentes no território nacional" começamos a compreender o que se seguirá no artigo 4.º, que decide criar um novo principio para o recenseamento eleitoral: o da voluntariedade. Se se entende este princípio do abrigo das excepções constitucionalmente previstas para os cidadãos estrangeiros residentes em Portugal, notamos logo na primeira alínea que o legislador de 1999 decidiu também que o "recenseamento é voluntário para os cidadãos nacionais residentes no estrangeiro" sabe lá Deus porquê. Sem justificar a sua opção mais à frente na lei, os deputados da Assembleia da República decidiram em 1999 que um cidadão que possua a singularidade de residir fora do condado portucalense não é abrangido pelo princípio da obrigatoriedade e pode, como tal, não deter o direito e o dever de votar. Seja por sua opção, seja por via dum abuso ou negligência burocrática. Que um cidadão da República, por via da sua localidade de residência (contrariando assim também o principio da universalidade), possa assim ser excluído ou excluir-se do direito de ser eleito e de eleger os seus representantes nacionais e europeus. E que nem tinha que ser claramente notificado disto. Em 2011, deputados das bancadas parlamentares do CDS-PP, PCP e BE apresentaram projectos-de-lei, com o intuito de emendar a lei actual e obrigar a Direcção-Geral da Administração Interna a notificar os cidadãos eleitores de qualquer eventual alteração ao seu recenseamento eleitoral - infelizmente, com a dissolução do parlamento em Março desse ano, os três projectos caducaram e não foram retomados na actual legislatura. Na actual legislatura, que agora finda e onde ora se incentivou à emigração ora se glorificou os sacrifícios dos cidadãos portugueses que residem fora do território da República, nenhum deputado notou alguma falha neste regime legal, nem sequer os quatro deputados eleitos pelos círculos extra-nacionais (Paulo Pisco, do PS, e Carlos Alberto Gonçalves, Carlos Páscoa Gonçalves e Maria João Ávila, do PSD), nada, nem sequer requereram que os cidadãos que representam tivessem que ser obrigatoriamente informados se alguma conservatória cá da terra decidisse retirar-lhes o direito a participarem em eleições, por via de já não por cá viverem. Nem sequer o actual Secretário de Estado das Comunidades, e deputado eleito (com mandato suspenso) pelo círculo de Fora da Europa e novamente cabeça-de-lista a este círculo pelo PSD, José Cesário, notou nenhuma anormalidade nesta legislação. Há 16 anos que está em vigor uma lei que determina que se um munícipe de Elvas decide mudar-se para Badajoz, o Estado retirar-lhe o direito a votar no até então seu círculo eleitoral (Portalegre), não o transfere para o círculo da sua nova área de residência (Europa), contrariamente ao que faria automaticamente caso o cidadão tivesse tido a felicidade de se mudar para Vila Viçosa (Évora), e nem sequer o informa que, doravante, já não é um cidadão detentor de capacidade eleitoral aos olhos da República Portuguesa.

Numa altura em que notamos que somos o país da União Europeia com a maior comunidade de nacionais expatriados, em que frequentemente referimos e analisamos os trágicos números crescentes da emigração, agora a níveis similares aos de anos anteriores a Abril, seria talvez nobre e digno que também nos começássemos a preocupar com a forma como estes cidadãos, portugueses e europeus de pleno direito, em quase tudo iguais aos olhos da Constituição a qualquer cidadão residente em qualquer parte do país, podem continuar envolvidos na nossa comunidade, como podem continuar a fazer parte dela, como podem não passar a ser cidadãos de condição menor. O direito e dever ao voto (e à eleição) poderão talvez ser dos mais básicos que devemos assegurar poderem ser plenamente exercidos pelos compatriotas cuja residência passou a ser fora das nossas fronteiras.

Numa altura em que já pagamos impostos online, não se entende como se obriga um emigrante a fazer horas de viajem num dia útil para poder garantir que continua a poder, um dia, votar em eleições. Numa altura em que todos nos inquietamos com os valores da abstenção, não se entender como insistimos em dificultar (ou impossibilitar) a milhões de portugueses o direito a elegerem e a serem eleitos. Numa altura em que só podemos fazer estimativas do que nos custarão estas vagas de emigração recente, não se entende como não é urgente dar a todos os portugueses "lá de fora" o máximo de condições para poderem continuar a participar no nosso destino nacional.

Adenda: o Luís Valente, via Shyznogud, conta-vos ali ao lado mais desenvolvimentos sobre um drama comum a milhares de emigrantes portugueses.

David Crisóstomo

Recebi esta manhã um e-mail do Jorge Pinto, cabeça-de-lista do LIVRE/Tempo de Avançar pelo círculo eleitoral da Europa às próximas eleições legislativas, de que transcrevo o seguinte parágrafo:

"Talvez não saibas, mas votar no estrangeiro não é propriamente fácil. Contrariamente ao que acontece em território nacional, onde o recenseamento é automático e obrigatório, assim que se altera o local de residência para o estrangeiro, perde-se imediatamente a capacidade eleitoral, seja em Portugal, seja no país de acolhimento. Não sendo possível votar nos círculos eleitorais nacionais tendo-se a residência no estrangeiro, restam os círculos da emigração – Europa e Fora da Europa. No entanto, para poder votar nestes círculos, é necessário proceder ao recenseamento eleitoral que deve obrigatoriamente ser feito de forma presencial no Consulado da área de residência. Mais, o recenseamento fecha 60 dias antes da data das eleições, ou seja, no dia 5 de Agosto."

Num caso mais real, um amigo meu, Luís Valente, cidadão nacional que recentemente mudou a sua residência para Heidelberga, na Alemanha, decidiu há umas semanas, quando se encontrava em Lisboa, ir à conservatória alterar a sua morada legal, pensando até no facto de talvez não poder se deslocar a Portugal no próximo ato eleitoral. Na conservatória alteram-lhe a morada e quando perguntou como se procedia à mudança do recenseamento eleitoral do círculo de Lisboa para o círculo da Europa, foi lhe dito "achavam" que a transferência se procedia automaticamente. Mais tarde veio a saber que não, que achavam mal, que não era de todo automático, que teria que (até 5 de Agosto) perder um dia de trabalho e deslocar-se ao consulado mais próximo - neste caso, Estugarda - para solicitar a alteração de círculo eleitoral. Não tendo capacidade para tal nestas semanas, decidiu que tentaria mesmo ir a Lisboa, mais precisamente a Carcavelos, no fim-de-semana de 4 de Outubro para votar na mesa-de-voto onde se julgava inscrito. Mas também não, não poderá - ao consultar o site www.recenseamento.mai.gov.pt verificou que não só não poderia exercer o seu direito de voto no círculo eleitoral onde reside, como também não o poderia fazer no círculo onde se achava então recenseado (Lisboa) - nem lá nem em lado nenhum, pois a conservatória de Lisboa, ao proceder à sua mudança de morada, também o retirou dos cadernos de Lisboa, sem assegurar a sua transferência ou posterior inscrição nos cadernos de um outro círculo eleitoral. O Luís, cidadão maior de idade da República Portuguesa e da União Europeia, é pois, à semelhança de muitos emigrantes nossos que de boa fé alteram as suas moradas legais sem realizarem um pedido de recenseamento eleitoral (seja por falta de informação, tempo ou, vamos lá ver, representação diplomática portuguesa a uma distância razoável [experimentem ser um emigrante luso a viver na Arménia, na Guatemala ou no Vietname, onde nem embaixada portuguesa há]) sem capacidade eleitoral, sem poder ser eleito ou votar em qualquer acto eleitoral português. Ao tomar conhecimento disto, o meu espanto era tal que recorri a dois outros amigos meus residentes em Bruxelas para me confirmarem se isto era relativamente comum - e ambos me confirmaram que outrora também foram, durante uns meses, cidadãos portugueses sem direito a eleger e serem eleitos, até conseguirem corrigir a situação no consulado.

Ora, o que diz a lei sobre esta "particularidade"? Comecemos pela Constituição.

No artigo 113.º, nº. 2, podemos ler que "o recenseamento eleitoral é oficioso, obrigatório, permanente e único para todas as eleições por sufrágio directo e universal, sem prejuízo do disposto nos n.os 4 e 5 do artigo 15.º e no n.º 2 do artigo 121.º." O artigo 15.º é referente aos cidadãos estrangeiros, logo não é relevante para esta temática. Já o artigo 121.º, refere-se à eleição do Presidente da República e, no n.º2, clarifica que "a lei regula o exercício do direito de voto dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro, devendo ter em conta a existência de laços de efectiva ligação à comunidade nacional". Relembremos que até 2010 a Lei Eleitoral do Presidente da República negava o direito ao voto aos portugueses residentes no círculo da Europa há mais de 15 anos e há mais de 10 anos nos países do círculo de Fora da Europa (excepção feita aos territórios de Macau e Timor-Leste), bem como aos cidadãos portugueses residentes fora de Portugal que detinham dupla nacionalidade.

Continuemos. O n.º 12 do artigo 115.º nota que "nos referendos são [também] chamados a participar cidadãos residentes no estrangeiro, regularmente recenseados ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 121.º, quando recaiam sobre matéria que lhes diga também especificamente respeito." Não existe uma definição do que é "matéria que diga também especificamente respeito" aos emigrantes [enfim], mas, a título de exemplo, o Tribunal Constitucional considerou no ano passado que um eventual referendo sobre a adopção ou a co-adopção por casais, casados ou unidos de facto do mesmo sexo não poderia nunca excluir os cidadãos portugueses residentes no estrangeiro do universo eleitoral.

Por fim, consideremos o artigo 14.º, "Portugueses no Estrangeiro", onde se lê que "os cidadãos portugueses que se encontrem ou residam no estrangeiro gozam da protecção do Estado para o exercício dos direitos e estão sujeitos aos deveres que não sejam incompatíveis com a ausência do país".

Do que se poderia concluir desta leitura constitucional, relativamente à capacidade eleitoral (activa e passiva) dos cidadãos portugueses residentes além-fronteiras?

1.º - Que no nosso regime eleitoral, o recenseamento obedece a quatro princípios basilares, gerais e fundamentais: oficiosidade, obrigatoriedade, permanência e unicidade e é válido para todos os actos eleitorais. São especificadas excepções, mas nenhuma delas define que os cidadãos portugueses residentes fora do território nacional deverão ser excepcionados de todos os direitos e deveres consequentes destes princípios nas eleições para a Assembleia da República, para o Parlamento Europeu e para os órgãos autárquicos e regionais, admitindo apenas que no caso do exercício do direito de voto (e não o de irem a votos) para os portugueses emigrados em eleições presidenciais possa existir limitações. Como referi, o legislador abdicou em 2010 da possibilidade de existirem limitações para este ato eleitoral.

2.º - Que no caso dos referendos a Constituição admite a possibilidade de estes, em determinadas temáticas que lhes sejam externas, excluírem do universo eleitoral os cidadãos nacionais que residam fora de Portugal. Se isto aconteceu, por exemplo, no caso dos dois referendos sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, o Tribunal Constitucional não aceitou que tal se repetisse num putativo referendo sobre a possibilidade de adopção ou co-adopção de casais, casados ou unidos de facto do mesmo sexo.

3.º - Como é natural, a Constituição nota que os cidadãos que residam no estrangeiro gozam da protecção do Estado para o exercício dos seus direitos e estão sujeitos aos deveres que não sejam incompatíveis com a ausência do país. Como existem dois círculos eleitorais para a diáspora, Europa e Fora da Europa, com mesas-de-voto em todas as representações diplomáticas portuguesas e como o exercício do voto nas eleições para a Assembleia da República é feito por correspondência postal para os cidadãos recenseados nos círculos exteriores ao território nacional, não me parece que nenhum dos direitos e deveres relacionados com estes sufrágios sejam incompatíveis com ausência de Portugal - como tal, continua a ser obrigação do Estado português garantir a sua protecção.

Analisada a lei fundamental do país, voltemos-nos agora para a Lei do Recenseamento Eleitoral, de 1999, alterada em 2002, 2005 e 2008. Começamos por notar que o artigo 1.º é praticamente um copy-paste do n.º2 do 113.º da Constituição. O artigo 2.º e o 3.º clarificam o que se entende por universalidade e obrigatoriedade e oficiosidade, respectivamente. Que "o recenseamento eleitoral abrange todos os que gozem de capacidade eleitoral activa"; que "a inscrição no recenseamento implica a presunção de capacidade eleitoral activa"; que "todos os eleitores têm o direito e o dever de promover a sua inscrição no recenseamento, bem como de verificar se estão inscritos e, em caso de erro ou omissão, requerer a respectiva rectificação" e que tais actos "são obrigatórios para os cidadãos nacionais residentes no território nacional maiores de 18 anos". Com a especificação "residentes no território nacional" começamos a compreender o que se seguirá no artigo 4.º, que decide criar um novo principio para o recenseamento eleitoral: o da voluntariedade. Se se entende este princípio do abrigo das excepções constitucionalmente previstas para os cidadãos estrangeiros residentes em Portugal, notamos logo na primeira alínea que o legislador de 1999 decidiu também que o "recenseamento é voluntário para os cidadãos nacionais residentes no estrangeiro" sabe lá Deus porquê. Sem justificar a sua opção mais à frente na lei, os deputados da Assembleia da República decidiram em 1999 que um cidadão que possua a singularidade de residir fora do condado portucalense não é abrangido pelo princípio da obrigatoriedade e pode, como tal, não deter o direito e o dever de votar. Seja por sua opção, seja por via dum abuso ou negligência burocrática. Que um cidadão da República, por via da sua localidade de residência (contrariando assim também o principio da universalidade), possa assim ser excluído ou excluir-se do direito de ser eleito e de eleger os seus representantes nacionais e europeus. E que nem tinha que ser claramente notificado disto. Em 2011, deputados das bancadas parlamentares do CDS-PP, PCP e BE apresentaram projectos-de-lei, com o intuito de emendar a lei actual e obrigar a Direcção-Geral da Administração Interna a notificar os cidadãos eleitores de qualquer eventual alteração ao seu recenseamento eleitoral - infelizmente, com a dissolução do parlamento em Março desse ano, os três projectos caducaram e não foram retomados na actual legislatura. Na actual legislatura, que agora finda e onde ora se incentivou à emigração ora se glorificou os sacrifícios dos cidadãos portugueses que residem fora do território da República, nenhum deputado notou alguma falha neste regime legal, nem sequer os quatro deputados eleitos pelos círculos extra-nacionais (Paulo Pisco, do PS, e Carlos Alberto Gonçalves, Carlos Páscoa Gonçalves e Maria João Ávila, do PSD), nada, nem sequer requereram que os cidadãos que representam tivessem que ser obrigatoriamente informados se alguma conservatória cá da terra decidisse retirar-lhes o direito a participarem em eleições, por via de já não por cá viverem. Nem sequer o actual Secretário de Estado das Comunidades, e deputado eleito (com mandato suspenso) pelo círculo de Fora da Europa e novamente cabeça-de-lista a este círculo pelo PSD, José Cesário, notou nenhuma anormalidade nesta legislação. Há 16 anos que está em vigor uma lei que determina que se um munícipe de Elvas decide mudar-se para Badajoz, o Estado retirar-lhe o direito a votar no até então seu círculo eleitoral (Portalegre), não o transfere para o círculo da sua nova área de residência (Europa), contrariamente ao que faria automaticamente caso o cidadão tivesse tido a felicidade de se mudar para Vila Viçosa (Évora), e nem sequer o informa que, doravante, já não é um cidadão detentor de capacidade eleitoral aos olhos da República Portuguesa.

Numa altura em que notamos que somos o país da União Europeia com a maior comunidade de nacionais expatriados, em que frequentemente referimos e analisamos os trágicos números crescentes da emigração, agora a níveis similares aos de anos anteriores a Abril, seria talvez nobre e digno que também nos começássemos a preocupar com a forma como estes cidadãos, portugueses e europeus de pleno direito, em quase tudo iguais aos olhos da Constituição a qualquer cidadão residente em qualquer parte do país, podem continuar envolvidos na nossa comunidade, como podem continuar a fazer parte dela, como podem não passar a ser cidadãos de condição menor. O direito e dever ao voto (e à eleição) poderão talvez ser dos mais básicos que devemos assegurar poderem ser plenamente exercidos pelos compatriotas cuja residência passou a ser fora das nossas fronteiras.

Numa altura em que já pagamos impostos online, não se entende como se obriga um emigrante a fazer horas de viajem num dia útil para poder garantir que continua a poder, um dia, votar em eleições. Numa altura em que todos nos inquietamos com os valores da abstenção, não se entender como insistimos em dificultar (ou impossibilitar) a milhões de portugueses o direito a elegerem e a serem eleitos. Numa altura em que só podemos fazer estimativas do que nos custarão estas vagas de emigração recente, não se entende como não é urgente dar a todos os portugueses "lá de fora" o máximo de condições para poderem continuar a participar no nosso destino nacional.

Adenda: o Luís Valente, via Shyznogud, conta-vos ali ao lado mais desenvolvimentos sobre um drama comum a milhares de emigrantes portugueses.

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