O caos das urgências hospitalares

02-10-2014
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O DIA EM QUE O DN CONTOU: Entre 28 de setembro e 29 de outubro de 1996, Ana Mafalda Inácio e Ana Baião fizeram diariamente, sob o título “Os corredores da vida e da morte”, o retrato do atendimento hospitalar de emergência em todo o País, analisando todos os aspetos com ele relacionados, entrevistando especialistas e responsáveis. Um trabalho de fundo que compara os hospitais portugueses aos do terceiro mundo e recebeu o prémio de reportagem do Clube de Imprensa

A primeira reportagem é sobre Santa Maria, Lisboa. Uma mulher jovem, imóvel, é trazida pelos bombeiros numa maca e fica à entrada do “balcão das mulheres” sem que ninguém se abeire dela. A repórter inquieta-se: a doente não parece sequer respirar, será que está morta, será que a vão deixar morrer ali? Tenta encontrar alguém que a observe, mas é verão e hora de almoço, só há dois médicos e uma enfermeira de plantão. Vale uma clínica especialista que desceu do seu serviço a pedido de um colega para ver outro doente e esbarra na maca e no seu conteúdo inerte. Agarra-lhe no pulso e de imediato a leva para um lugar mais reservado, uma “boxe” atulhada com outros doentes e protegida por cortinas (que um curioso “sem mais que fazer que ir espreitar o mal alheio” abre sem que alguém o mande bugiar, demonstrando a total falta de reserva e privacidade que se vive nestes serviços), coloca-lhe uma máscara de oxigénio e leva-a para o internamento. “Foi por pouco”, comenta um bombeiro .

“Adivinha os meus pensamentos”, escreve a jornalista, que reflete, depois de assistir, logo de seguida, à queda de um idoso de uma maca: “Para se ser doente é preciso ter sorte, pois com alguma facilidade se passa despercebido.” A chefe de equipa não contesta: “Sobretudo se for num dia de muita confusão. Já aconteceu.” O problema, diagnostica o DN, é em grande parte consequência “da afluência de doentes não urgentes”. E da mistura surreal entre eles. No auge da “epidemia” do uso de heroína em Portugal, a equipa de reportagem tropeça em cada hospital em toxicodependentes infetados com VIH e tuberculose multirresistente que tossem para cima de toda a gente e, num caso, no Hospital São Francisco Xavier, assistem a uma colheita de sangue para análise a um paciente “com sida, em estado de diarreia crónica e terminal, colocado numa maca entalada no meio de outras” em que as pessoas à volta são salpicadas. “A saúde pública está a ser posta em causa nos próprios hospitais. Médicos e pacientes estão à mercê da falta de condições e já há casos de tuberculose que só podem ter sido contraídos nestes locais”, diz a reportagem. Trata-se, certifica, de “violação da ética médica” quando se coloca um doente “com uma patologia infecciosa num corredor de urgência (…) e se omite a quem está ao lado e pode ser contaminado”. A inexistência de unidades de isolamento é, aliás, transversal à maioria dos hospitais centrais e distritais, e há aqueles, como o Curry Cabral, em que “o problema atingiu proporções incontroláveis”, de acordo com a respetiva comissão médica.

No hospital de Setúbal, intitulado “do terceiro mundo”, a sala da pequena cirurgia tem uma marquesa cujos pedais não funcionam; o candeeiro idem. Chove na Sala de Observações e os médicos para descansar têm dois sofás vintage de estofo rasgado. A mesma qualificação é usada para o portuense hospital de Santo António, em que uma jovem anda toda a manhã de serviço em serviço de saco de plástico preto com um feto de seis meses lá dentro. A irmã deu-o à luz em casa, naquela madrugada, após uma gravidez secreta. Levada para o hospital de Lamego, remeteram-na para este e passaram o saco à familiar: “Tome, entregue isto quando chegar lá.” Uma enfermeira que, saturada de ver a miúda de um lado para o outro com aquele fardo, lho tira das mãos, desabafa com a jornalista: “Não cabe na cabeça de ninguém fazerem uma coisa destas.” Burocracia desumana, titula o jornal.

Um retrato face ao qual a então ministra da Saúde, Maria de Belém Roseira, com cuja entrevista o trabalho se encerra a 29 de outubro, admite: “Há urgências calamitosas.” Considera porém que tal se deve sobretudo a “falta de organização” e anuncia “uma revolução tranquila”. Sucedeu? “Os mais otimistas dizem que dentro de 10 anos teremos um sistema organizado e eficaz”, lê-se no texto inicial da série. “Os mais pessimistas vaticinam que só daqui a 20 anos, porque consideram que os vícios instalados e as mentalidades levam gerações a mudar.”

Quase 20 anos depois, decerto muito mudou. Mas um dos maiores problemas das urgências, repisado ao longo de todo o trabalho - o número desproporcionado de pessoas que a elas recorrem sem verdadeira necessidade - parece não ter sido debelado. Em 1994, diz o mesmo texto, ocorreram 9,227 milhões atendimentos urgentes nos serviços de saúde, para um população de 9,400 milhões. Esta constatação, determinada num relatório pedido pelo Ministério da Saúde, leva a jornalista a concluir, com o relatório, que “são mais as falsas urgências do que as verdadeiras” e que “mais de quatro milhões destes casos poderiam ter sido resolvidos nos centros de saúde ou nas consultas hospitalares”. A reestruturação anunciada em 1996 pela ministra visaria racionalizar o serviço a nível nacional, nomeadamente reconduzindo as falsas urgências para outros atendimentos. Mas a evolução numérica dos registos nas urgências não nos permite perceber uma melhoria nos anos seguintes, pelo contrário: entre 1994 e 2003, o número de registos sobe para quase 14 milhões, só começando a descer dos 13 milhões em 2008. Em 2011, voltava ao valor de 1994.

FERNANDA CÂNCIO

O DIA EM QUE O DN CONTOU: Entre 28 de setembro e 29 de outubro de 1996, Ana Mafalda Inácio e Ana Baião fizeram diariamente, sob o título “Os corredores da vida e da morte”, o retrato do atendimento hospitalar de emergência em todo o País, analisando todos os aspetos com ele relacionados, entrevistando especialistas e responsáveis. Um trabalho de fundo que compara os hospitais portugueses aos do terceiro mundo e recebeu o prémio de reportagem do Clube de Imprensa

A primeira reportagem é sobre Santa Maria, Lisboa. Uma mulher jovem, imóvel, é trazida pelos bombeiros numa maca e fica à entrada do “balcão das mulheres” sem que ninguém se abeire dela. A repórter inquieta-se: a doente não parece sequer respirar, será que está morta, será que a vão deixar morrer ali? Tenta encontrar alguém que a observe, mas é verão e hora de almoço, só há dois médicos e uma enfermeira de plantão. Vale uma clínica especialista que desceu do seu serviço a pedido de um colega para ver outro doente e esbarra na maca e no seu conteúdo inerte. Agarra-lhe no pulso e de imediato a leva para um lugar mais reservado, uma “boxe” atulhada com outros doentes e protegida por cortinas (que um curioso “sem mais que fazer que ir espreitar o mal alheio” abre sem que alguém o mande bugiar, demonstrando a total falta de reserva e privacidade que se vive nestes serviços), coloca-lhe uma máscara de oxigénio e leva-a para o internamento. “Foi por pouco”, comenta um bombeiro .

“Adivinha os meus pensamentos”, escreve a jornalista, que reflete, depois de assistir, logo de seguida, à queda de um idoso de uma maca: “Para se ser doente é preciso ter sorte, pois com alguma facilidade se passa despercebido.” A chefe de equipa não contesta: “Sobretudo se for num dia de muita confusão. Já aconteceu.” O problema, diagnostica o DN, é em grande parte consequência “da afluência de doentes não urgentes”. E da mistura surreal entre eles. No auge da “epidemia” do uso de heroína em Portugal, a equipa de reportagem tropeça em cada hospital em toxicodependentes infetados com VIH e tuberculose multirresistente que tossem para cima de toda a gente e, num caso, no Hospital São Francisco Xavier, assistem a uma colheita de sangue para análise a um paciente “com sida, em estado de diarreia crónica e terminal, colocado numa maca entalada no meio de outras” em que as pessoas à volta são salpicadas. “A saúde pública está a ser posta em causa nos próprios hospitais. Médicos e pacientes estão à mercê da falta de condições e já há casos de tuberculose que só podem ter sido contraídos nestes locais”, diz a reportagem. Trata-se, certifica, de “violação da ética médica” quando se coloca um doente “com uma patologia infecciosa num corredor de urgência (…) e se omite a quem está ao lado e pode ser contaminado”. A inexistência de unidades de isolamento é, aliás, transversal à maioria dos hospitais centrais e distritais, e há aqueles, como o Curry Cabral, em que “o problema atingiu proporções incontroláveis”, de acordo com a respetiva comissão médica.

No hospital de Setúbal, intitulado “do terceiro mundo”, a sala da pequena cirurgia tem uma marquesa cujos pedais não funcionam; o candeeiro idem. Chove na Sala de Observações e os médicos para descansar têm dois sofás vintage de estofo rasgado. A mesma qualificação é usada para o portuense hospital de Santo António, em que uma jovem anda toda a manhã de serviço em serviço de saco de plástico preto com um feto de seis meses lá dentro. A irmã deu-o à luz em casa, naquela madrugada, após uma gravidez secreta. Levada para o hospital de Lamego, remeteram-na para este e passaram o saco à familiar: “Tome, entregue isto quando chegar lá.” Uma enfermeira que, saturada de ver a miúda de um lado para o outro com aquele fardo, lho tira das mãos, desabafa com a jornalista: “Não cabe na cabeça de ninguém fazerem uma coisa destas.” Burocracia desumana, titula o jornal.

Um retrato face ao qual a então ministra da Saúde, Maria de Belém Roseira, com cuja entrevista o trabalho se encerra a 29 de outubro, admite: “Há urgências calamitosas.” Considera porém que tal se deve sobretudo a “falta de organização” e anuncia “uma revolução tranquila”. Sucedeu? “Os mais otimistas dizem que dentro de 10 anos teremos um sistema organizado e eficaz”, lê-se no texto inicial da série. “Os mais pessimistas vaticinam que só daqui a 20 anos, porque consideram que os vícios instalados e as mentalidades levam gerações a mudar.”

Quase 20 anos depois, decerto muito mudou. Mas um dos maiores problemas das urgências, repisado ao longo de todo o trabalho - o número desproporcionado de pessoas que a elas recorrem sem verdadeira necessidade - parece não ter sido debelado. Em 1994, diz o mesmo texto, ocorreram 9,227 milhões atendimentos urgentes nos serviços de saúde, para um população de 9,400 milhões. Esta constatação, determinada num relatório pedido pelo Ministério da Saúde, leva a jornalista a concluir, com o relatório, que “são mais as falsas urgências do que as verdadeiras” e que “mais de quatro milhões destes casos poderiam ter sido resolvidos nos centros de saúde ou nas consultas hospitalares”. A reestruturação anunciada em 1996 pela ministra visaria racionalizar o serviço a nível nacional, nomeadamente reconduzindo as falsas urgências para outros atendimentos. Mas a evolução numérica dos registos nas urgências não nos permite perceber uma melhoria nos anos seguintes, pelo contrário: entre 1994 e 2003, o número de registos sobe para quase 14 milhões, só começando a descer dos 13 milhões em 2008. Em 2011, voltava ao valor de 1994.

FERNANDA CÂNCIO

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