Tomás Belchior

30-06-2011
marcar artigo

Corre por aí a teoria de que o turismo em Lisboa, por muitos efeitos positivos que tenha, está a dar cabo do melhor da cidade. Sim, o turismo é bom e tal, mas os coitados dos lisboetas estão a ser expulsos, a cidade está a ficar dominada por habitantes de curta duração e se não fizermos nada ainda acordamos com uma Lisboa sem lisboetas. Desengane-se quem pensa que esta teoria é apenas defendida por quem manda umas bocas em caixas de comentários ou nas redes sociais. Há quem, do alto de uma cátedra, e procurando credibilizá-la, ande a espalhar a tese.

É o caso de João Seixas (PhD), geógrafo, professor auxiliar da Universidade Nova de Lisboa, coordenador da equipa para a Reforma Administrativa da Cidade de Lisboa, painelista, etc. que escreveu um extenso artigo de opinião no Público intitulado “Dez teses sobre Lisboa“. A tese subjacente a essas dez teses é qualquer coisa como: a cidade de Lisboa estava a recuperar população e vitalidade até que em 2013 chegou o boom do turismo e do investimento estrangeiro e lá se foi essa recuperação e lá se foi a população e lá se foi a vitalidade. É a quinta “tese” desse artigo, sobre o “Acesso à Habitação”, que melhor resume o ponto de João Seixas:

“Desde 2008 que o centro histórico de Lisboa estava finalmente a recuperar da absurda doença a que havia sido sujeito durante décadas. Em população e em empresas. Registava-se mesmo uma recuperação do número de crianças e de jovens em idade escolar – confirmando que muitas famílias (das mais variadas classes sociais) se encontravam a ocupar, de novo, o centro urbano. Era uma recuperação lenta mas cada vez mais segura; e onde as expectativas detinham um papel essencial.

Mas instala-se, entretanto, uma mudança de forças que está a tornar a habitação muito mais cara e pressionada, e muito rapidamente. Desde 2013 que a cidade estará de novo a perder população estável e densidade residencial; a uma média de mais de 3500 eleitores/ano. A população escolar, após subir de 2008 a 2012, tem estado a diminuir de novo, sobretudo no pré-escolar e no primeiro ciclo.”

Uma pessoa lê isto, com números e tudo, e assusta-se. Até porque, como diz João Seixas no texto, “o que se passa é demasiado sério para superficialidades” e “as políticas de cidade devem ser construídas com base em conhecimento”. Querem ver que o turismo tem mesmo este efeito destruidor? Querem ver que havia uma tendência de povoamento de Lisboa desde 2008, no centro/centro histórico/centro urbano, e o turismo deu cabo da coisa?

Uma pessoa assusta-se e adere à tese e vai para as redes sociais bramir contra o turismo e os estrangeiros ricos. Ou então, vai tentar confirmar os números. É aí que se apercebe que nenhum dos factos e certezas e números apresentados por João Seixas é verdadeiro.

Acham que estou a exagerar? Venham comigo, olhar para os números de João Seixas um a um. Demora algum tempo mas ficamos com uma ideia bem precisa sobre a “seriedade” de quem constrói políticas de cidade com base no “conhecimento”.

Comecemos a nossa aventura pela evolução geral da população de Lisboa (dados do INE):

Como se pode ver pelo gráfico, desde 1991 que Lisboa perde população todos os anos, sem excepção. Ou seja, ao contrário do que João Seixas diz, não é verdade que Lisboa tivesse recuperado população entre 2008 e 2012. Primeiro tiro na água.

E o “número de crianças e jovens em idade escolar”, assumindo que são representados pela população com idades entre os 0 e os 19 anos, o tal que estaria a crescer entre 2008 e 2013? Cresceu (linha cor de laranja no gráfico) mas, vejam só, desde 2012/2013, precisamente os anos em que João Seixas diz que começou o actual descalabro. Segundo tiro na água.

Mas talvez se olharmos para os alunos matriculados nas escolas do concelho (fonte), para a “população escolar” que João Seixas refere e não para a população residente, cheguemos onde João Seixas nos quer levar.

Não, ainda não foi desta. Pelos vistos, pelo menos desde 2005 que o número de alunos crescia e foi precisamente em 2008 que esse crescimento parou, contrariando por completo João Seixas. Terceiro tiro na água.

E o aumento expressivo em 2008, perguntam vocês? Vejamos com mais detalhe o que aconteceu entre 2004 e 2014.

Como é bem visível, tanto o 3º ciclo como o ensino secundário têm comportamentos algo erráticos, com uma subida abrupta em 2008 seguida de uma queda desde essa altura, em linha com o comportamento do número total de alunos.

Porquê? Porque foi em 2008 que começaram em força as inscrições (de adultos) nos processos de RVCC – Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências e nos cursos CFA – Cursos de Educação e Formação para Adultos, as Novas Oportunidades dos governos José Sócrates. Ou seja, até esta subida abrupta de 2008, ao contrário do que diz João Seixas, não tem origem numa “recuperação do número de crianças e jovens em idade escolar” (que não existiu) mas sim nos mais de 19.000 adultos que se matricularam no 3º ciclo e ensino secundário das escolas de Lisboa. Quarto tiro na água.

E o que aconteceu à densidade populacional que, segundo João Seixas, também teria começado a descer desde 2013? Imaginem: também não se confirma (fonte: INE).

Como seria normal, Lisboa perdeu densidade populacional todos os anos desde 2000. Entre 2012 e 2013 a queda foi particularmente acentuada devido ao aumento de área do concelho de Lisboa (de 85 km2 para 100 km2) decorrente da reforma administrativa de 2012 (ver os dados da Carta Administrativa Oficial de Portugal de 2013). Quinto tiro na água.

Terá João Seixas acertado na evolução do número de empresas? Pois, também não.

O número de empresas em Lisboa (fonte: INE) crescia até 2008, caiu entre 2008 e 2013, e (até ver) começou a subir desde 2013. O pessoal ao serviço teve evolução idêntica. Mais uma vez João Seixas viu tudo ao contrário. Sexto tiro na água.

Então e se olharmos para o número de eleitores, como nos recomenda João Seixas? A evolução do número de eleitores em Lisboa, segundo os dados do recenseamento eleitoral (fonte) foi esta:

É óbvio que, entre 2001 e 2016, a única tendência existente é uma tendência de queda. Mais um “facto” de João Seixas que não se confirma. Sétimo tiro na água.

Mas há realmente uma subida em 2008. Talvez seja a esta subida anual que João Seixas se refere quando fala num centro histórico/centro urbano que recuperava população “desde 2008”. Mas é espantoso, para não variar, que face a esta evolução, em vez de falar em inversões de tendência inexistentes, João Seixas não se dê ao trabalho de investigar (ou, pelo menos, de explicar aos seus leitores) o que se terá passado em 2008 de tão atípico.

Se o tivesse feito teria descoberto que em 2008 houve um crescimento do número de eleitores em 51 das 53 freguesias de Lisboa enquanto nos anos anteriores isso tinha acontecido, em média, em apenas 3 das 53 freguesias.

Se tivesse continuado a sua investigação teria descoberto que a Lei do Recenseamento Eleitoral foi alterada precisamente em 2008, tendo sido introduzidas “diversas medidas de simplificação, com destaque para a inscrição automática de eleitores no recenseamento”.

Ou seja, entre 2007 e 2008 Lisboa ganhou 18.000 eleitores graças ao recenseamento automático. Em 2011, em pleno período de “repovoamento”, Lisboa já tinha perdido perdido 19.000. Oitavo tiro na água.

Mas bolas, será que ao menos os dados do recenseamento eleitoral mostram que houve um aumento do população nas freguesias do “centro histórico”/centro urbano a partir de 2008? Querem saber que mais? Isso. Adivinharam. Também não.

As freguesias do centro histórico, que ganharam 2.200 eleitores em 2008, perderam 3.500 logo em 2009, anulando o efeito do recenseamento automático. As freguesias que deram o maior contributo para o aumento (automático) do número de eleitores em 2008, simultaneamente em percentagem e em valor absoluto, foram Charneca, Lumiar, Ameixoeira, Marvila, Carnide, Alto do Pina, São Domingos de Benfica. Desde essa altura, apesar da tendência geral de queda do número de eleitores (que se tem vindo a atenuar), são precisamente as freguesias da zona Norte e Oriental de Lisboa que contrariaram minimamente essa tendência. Estão todas fora do centro histórico. Nono tiro na água.

Ainda em relação ao centro histórico, usando estes mesmos dados do recenseamento eleitoral, podemos ver o que se passou com a evolução do número de eleitores tentando comparar o que é comparável (entre 2001 e 2007, sem o recenseamento automático, entre 2008 e 2012, com “repovoamento”, e 2013-2016, com vistos gold e residentes não habituais e nova lei do arrendamento e alojamento local e a morte dos primogénitos dos lisboetas).

Aparentemente estes dados dizem-nos que o ritmo médio de perda de eleitores no centro histórico foi sensivelmente idêntico entre 2001-2007 e 2008-2012 e que, a partir de 2013, esse ritmo reduziu-se para metade. Ou seja, não só não houve qualquer melhoria entre 2008 e 2012, como pelos vistos há de facto uma melhoria quando o centro histórico, aos olhos de alguns, começa a ser “destruído”. Mais uma vez, o contrário do que afirma João Seixas. Décimo tiro na água? Pois, parece que sim.

Recapitulando:

A tendência de despovoamento de Lisboa nunca foi interrompida.

Não havendo uma interrupção da tendência de despovoamento, o turismo (e o investimento) não é uma explicação para esse despovoamento. As suas causas são muito mais profundas e longínquas e, pelos vistos, pouco ou nada foi feito para as anular.

Quanto muito, a confirmar-se uma inversão de tendência, esta dá-se a partir de 2012/2013 (ver, por exemplo, esta reportagem da Fernanda Câncio), altura em que a revitalização do centro urbano começa a ser evidente e a atrair residentes e investidores, tanto estrangeiros como portugueses.

Voltando ao texto de João Seixas, podíamos reescrevê-lo da seguinte forma:

“Desde 2008 que o centro histórico de Lisboa estava finalmente a recuperar da absurda doença a que havia sido sujeito durante décadas. Em população e em empresas. Registava-se mesmo uma recuperação do número de crianças e de jovens em idade escolar – confirmando que muitas famílias (das mais variadas classes sociais) se encontravam a ocupar, de novo, o centro urbano. Era uma recuperação lenta mas cada vez mais segura; e onde as expectativas detinham um papel essencial.

Mas instala-se, entretanto, uma mudança de forças que está a tornar a habitação muito mais cara e pressionada, e muito rapidamente. Desde 2013 que a cidade estará de novo a perder população estável e densidade residencial; a uma média de mais de 3500 eleitores/ano. A população escolar, após subir de 2008 a 2012, tem estado a diminuir de novo, sobretudo no pré-escolar e no primeiro ciclo já passaram oito anos.”

Mais uma vez chegamos à conclusão que quem quer encontrar no turismo e no investimento estrangeiro um bode expiatório para os males da cidade apenas tem uma solução à procura de um problema. Seria bom que se começasse a ser mais exigente com quem se propõe, com grande humildade e abnegação, dar-nos “uma ideia de futuro”, especialmente uma “ideia de futuro” que fede a um passado que Lisboa anda a tentar corrigir há décadas.

Leitura complementar: Como conciliar turismo e habitação

Corre por aí a teoria de que o turismo em Lisboa, por muitos efeitos positivos que tenha, está a dar cabo do melhor da cidade. Sim, o turismo é bom e tal, mas os coitados dos lisboetas estão a ser expulsos, a cidade está a ficar dominada por habitantes de curta duração e se não fizermos nada ainda acordamos com uma Lisboa sem lisboetas. Desengane-se quem pensa que esta teoria é apenas defendida por quem manda umas bocas em caixas de comentários ou nas redes sociais. Há quem, do alto de uma cátedra, e procurando credibilizá-la, ande a espalhar a tese.

É o caso de João Seixas (PhD), geógrafo, professor auxiliar da Universidade Nova de Lisboa, coordenador da equipa para a Reforma Administrativa da Cidade de Lisboa, painelista, etc. que escreveu um extenso artigo de opinião no Público intitulado “Dez teses sobre Lisboa“. A tese subjacente a essas dez teses é qualquer coisa como: a cidade de Lisboa estava a recuperar população e vitalidade até que em 2013 chegou o boom do turismo e do investimento estrangeiro e lá se foi essa recuperação e lá se foi a população e lá se foi a vitalidade. É a quinta “tese” desse artigo, sobre o “Acesso à Habitação”, que melhor resume o ponto de João Seixas:

“Desde 2008 que o centro histórico de Lisboa estava finalmente a recuperar da absurda doença a que havia sido sujeito durante décadas. Em população e em empresas. Registava-se mesmo uma recuperação do número de crianças e de jovens em idade escolar – confirmando que muitas famílias (das mais variadas classes sociais) se encontravam a ocupar, de novo, o centro urbano. Era uma recuperação lenta mas cada vez mais segura; e onde as expectativas detinham um papel essencial.

Mas instala-se, entretanto, uma mudança de forças que está a tornar a habitação muito mais cara e pressionada, e muito rapidamente. Desde 2013 que a cidade estará de novo a perder população estável e densidade residencial; a uma média de mais de 3500 eleitores/ano. A população escolar, após subir de 2008 a 2012, tem estado a diminuir de novo, sobretudo no pré-escolar e no primeiro ciclo.”

Uma pessoa lê isto, com números e tudo, e assusta-se. Até porque, como diz João Seixas no texto, “o que se passa é demasiado sério para superficialidades” e “as políticas de cidade devem ser construídas com base em conhecimento”. Querem ver que o turismo tem mesmo este efeito destruidor? Querem ver que havia uma tendência de povoamento de Lisboa desde 2008, no centro/centro histórico/centro urbano, e o turismo deu cabo da coisa?

Uma pessoa assusta-se e adere à tese e vai para as redes sociais bramir contra o turismo e os estrangeiros ricos. Ou então, vai tentar confirmar os números. É aí que se apercebe que nenhum dos factos e certezas e números apresentados por João Seixas é verdadeiro.

Acham que estou a exagerar? Venham comigo, olhar para os números de João Seixas um a um. Demora algum tempo mas ficamos com uma ideia bem precisa sobre a “seriedade” de quem constrói políticas de cidade com base no “conhecimento”.

Comecemos a nossa aventura pela evolução geral da população de Lisboa (dados do INE):

Como se pode ver pelo gráfico, desde 1991 que Lisboa perde população todos os anos, sem excepção. Ou seja, ao contrário do que João Seixas diz, não é verdade que Lisboa tivesse recuperado população entre 2008 e 2012. Primeiro tiro na água.

E o “número de crianças e jovens em idade escolar”, assumindo que são representados pela população com idades entre os 0 e os 19 anos, o tal que estaria a crescer entre 2008 e 2013? Cresceu (linha cor de laranja no gráfico) mas, vejam só, desde 2012/2013, precisamente os anos em que João Seixas diz que começou o actual descalabro. Segundo tiro na água.

Mas talvez se olharmos para os alunos matriculados nas escolas do concelho (fonte), para a “população escolar” que João Seixas refere e não para a população residente, cheguemos onde João Seixas nos quer levar.

Não, ainda não foi desta. Pelos vistos, pelo menos desde 2005 que o número de alunos crescia e foi precisamente em 2008 que esse crescimento parou, contrariando por completo João Seixas. Terceiro tiro na água.

E o aumento expressivo em 2008, perguntam vocês? Vejamos com mais detalhe o que aconteceu entre 2004 e 2014.

Como é bem visível, tanto o 3º ciclo como o ensino secundário têm comportamentos algo erráticos, com uma subida abrupta em 2008 seguida de uma queda desde essa altura, em linha com o comportamento do número total de alunos.

Porquê? Porque foi em 2008 que começaram em força as inscrições (de adultos) nos processos de RVCC – Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências e nos cursos CFA – Cursos de Educação e Formação para Adultos, as Novas Oportunidades dos governos José Sócrates. Ou seja, até esta subida abrupta de 2008, ao contrário do que diz João Seixas, não tem origem numa “recuperação do número de crianças e jovens em idade escolar” (que não existiu) mas sim nos mais de 19.000 adultos que se matricularam no 3º ciclo e ensino secundário das escolas de Lisboa. Quarto tiro na água.

E o que aconteceu à densidade populacional que, segundo João Seixas, também teria começado a descer desde 2013? Imaginem: também não se confirma (fonte: INE).

Como seria normal, Lisboa perdeu densidade populacional todos os anos desde 2000. Entre 2012 e 2013 a queda foi particularmente acentuada devido ao aumento de área do concelho de Lisboa (de 85 km2 para 100 km2) decorrente da reforma administrativa de 2012 (ver os dados da Carta Administrativa Oficial de Portugal de 2013). Quinto tiro na água.

Terá João Seixas acertado na evolução do número de empresas? Pois, também não.

O número de empresas em Lisboa (fonte: INE) crescia até 2008, caiu entre 2008 e 2013, e (até ver) começou a subir desde 2013. O pessoal ao serviço teve evolução idêntica. Mais uma vez João Seixas viu tudo ao contrário. Sexto tiro na água.

Então e se olharmos para o número de eleitores, como nos recomenda João Seixas? A evolução do número de eleitores em Lisboa, segundo os dados do recenseamento eleitoral (fonte) foi esta:

É óbvio que, entre 2001 e 2016, a única tendência existente é uma tendência de queda. Mais um “facto” de João Seixas que não se confirma. Sétimo tiro na água.

Mas há realmente uma subida em 2008. Talvez seja a esta subida anual que João Seixas se refere quando fala num centro histórico/centro urbano que recuperava população “desde 2008”. Mas é espantoso, para não variar, que face a esta evolução, em vez de falar em inversões de tendência inexistentes, João Seixas não se dê ao trabalho de investigar (ou, pelo menos, de explicar aos seus leitores) o que se terá passado em 2008 de tão atípico.

Se o tivesse feito teria descoberto que em 2008 houve um crescimento do número de eleitores em 51 das 53 freguesias de Lisboa enquanto nos anos anteriores isso tinha acontecido, em média, em apenas 3 das 53 freguesias.

Se tivesse continuado a sua investigação teria descoberto que a Lei do Recenseamento Eleitoral foi alterada precisamente em 2008, tendo sido introduzidas “diversas medidas de simplificação, com destaque para a inscrição automática de eleitores no recenseamento”.

Ou seja, entre 2007 e 2008 Lisboa ganhou 18.000 eleitores graças ao recenseamento automático. Em 2011, em pleno período de “repovoamento”, Lisboa já tinha perdido perdido 19.000. Oitavo tiro na água.

Mas bolas, será que ao menos os dados do recenseamento eleitoral mostram que houve um aumento do população nas freguesias do “centro histórico”/centro urbano a partir de 2008? Querem saber que mais? Isso. Adivinharam. Também não.

As freguesias do centro histórico, que ganharam 2.200 eleitores em 2008, perderam 3.500 logo em 2009, anulando o efeito do recenseamento automático. As freguesias que deram o maior contributo para o aumento (automático) do número de eleitores em 2008, simultaneamente em percentagem e em valor absoluto, foram Charneca, Lumiar, Ameixoeira, Marvila, Carnide, Alto do Pina, São Domingos de Benfica. Desde essa altura, apesar da tendência geral de queda do número de eleitores (que se tem vindo a atenuar), são precisamente as freguesias da zona Norte e Oriental de Lisboa que contrariaram minimamente essa tendência. Estão todas fora do centro histórico. Nono tiro na água.

Ainda em relação ao centro histórico, usando estes mesmos dados do recenseamento eleitoral, podemos ver o que se passou com a evolução do número de eleitores tentando comparar o que é comparável (entre 2001 e 2007, sem o recenseamento automático, entre 2008 e 2012, com “repovoamento”, e 2013-2016, com vistos gold e residentes não habituais e nova lei do arrendamento e alojamento local e a morte dos primogénitos dos lisboetas).

Aparentemente estes dados dizem-nos que o ritmo médio de perda de eleitores no centro histórico foi sensivelmente idêntico entre 2001-2007 e 2008-2012 e que, a partir de 2013, esse ritmo reduziu-se para metade. Ou seja, não só não houve qualquer melhoria entre 2008 e 2012, como pelos vistos há de facto uma melhoria quando o centro histórico, aos olhos de alguns, começa a ser “destruído”. Mais uma vez, o contrário do que afirma João Seixas. Décimo tiro na água? Pois, parece que sim.

Recapitulando:

A tendência de despovoamento de Lisboa nunca foi interrompida.

Não havendo uma interrupção da tendência de despovoamento, o turismo (e o investimento) não é uma explicação para esse despovoamento. As suas causas são muito mais profundas e longínquas e, pelos vistos, pouco ou nada foi feito para as anular.

Quanto muito, a confirmar-se uma inversão de tendência, esta dá-se a partir de 2012/2013 (ver, por exemplo, esta reportagem da Fernanda Câncio), altura em que a revitalização do centro urbano começa a ser evidente e a atrair residentes e investidores, tanto estrangeiros como portugueses.

Voltando ao texto de João Seixas, podíamos reescrevê-lo da seguinte forma:

“Desde 2008 que o centro histórico de Lisboa estava finalmente a recuperar da absurda doença a que havia sido sujeito durante décadas. Em população e em empresas. Registava-se mesmo uma recuperação do número de crianças e de jovens em idade escolar – confirmando que muitas famílias (das mais variadas classes sociais) se encontravam a ocupar, de novo, o centro urbano. Era uma recuperação lenta mas cada vez mais segura; e onde as expectativas detinham um papel essencial.

Mas instala-se, entretanto, uma mudança de forças que está a tornar a habitação muito mais cara e pressionada, e muito rapidamente. Desde 2013 que a cidade estará de novo a perder população estável e densidade residencial; a uma média de mais de 3500 eleitores/ano. A população escolar, após subir de 2008 a 2012, tem estado a diminuir de novo, sobretudo no pré-escolar e no primeiro ciclo já passaram oito anos.”

Mais uma vez chegamos à conclusão que quem quer encontrar no turismo e no investimento estrangeiro um bode expiatório para os males da cidade apenas tem uma solução à procura de um problema. Seria bom que se começasse a ser mais exigente com quem se propõe, com grande humildade e abnegação, dar-nos “uma ideia de futuro”, especialmente uma “ideia de futuro” que fede a um passado que Lisboa anda a tentar corrigir há décadas.

Leitura complementar: Como conciliar turismo e habitação

marcar artigo