NOVA ÁGUIA: REVISTA DE CULTURA PARA O SÉCULO XXI: BARQUINHO DE PAPEL

02-07-2011
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Ao Klatuu NiktosJan Saudek, The River, 1962Porque ainda há beleza e pureza na alma lusitana...Tinha ido ao Bairro. (Por “Bairro” entendo eu, desde miúda, a “Casa do Bairro”, propriedade de uma minha tia avó muito querida).Como tantas outras vezes, após alguns minutos de conversa, pedi licença, levantei-me e disse que ia “dar uma voltinha”.A minha tia sorriu-me e respondeu:– Quando eras pequena dizias sempre isso.Sorri-lhe de volta:– Eu sei.De facto, até sabia mais. Sabia que voltava sempre dessas andanças cheia de excitantes novidades sobre a bicharada lá da zona – desde o galo aos cães, passando pelo peru e pelos inúmeros gatos vadios que por lá circulavam, nenhum escapava à minha visita. Do mesmo modo que sabia que aparecia sempre com os sapatinhos que a minha avó tão bem cuidava, cheios de poeira e as mãozitas sujas de terra, exibindo triunfante um qualquer novo tesouro – fosse uma folha seca, uma pedra mais bonita ou mais brilhante que as demais, um fruto maduro (ou verde, confesso), uma minúscula flor, um bugalho ou mesmo um cogumelo.Desta vez, no entanto, já não seria assim, pensei.(Afinal, já não sou mais essa criancinha que recordo…)Iria apenas, matar saudades.Caminhei por entre cada uma daquelas árvores que conheço desde sempre; parei em cada recanto, deixando os meus olhos pousarem-se demoradamente em tudo. Sentia-me bem e, por isso, não queria que o passeio acabasse tão cedo.Eventualmente, acabei por sair das fronteiras da Casa do Bairro sem que, no entanto, me tivesse apercebido disso.Ao passar um caminho de pedra, vi um menino aninhado, quase encostado a um muro, soltando gargalhadas de prazer.A princípio não percebi o porquê de tanta alegria mas, ao aproximar-se, tornou-se muito claro: na berma do caminho, resguardado pelo muro de pedra escura, corria um pequeno regato de água e o rapazito tinha acabado de pôr um barquito de papel a flutuar naquele reguinho.(“Meu Deus, pensava que os miúdos do século XXI já não brincavam com barquinhos de papel!”)O quadro era tão estranhamente familiar que chegava a ser comovente.Aproximei-me e aninhei-me ao lado do menino que, de cócoras, acompanhava o lento balançar do barquito:– Então, para onde vai o teu barco? – perguntei.Ele endireitou-se todo; pôs-se de pé, ficando mais alto que eu, ali aninhada e disse com uma voz muito segura:– Não é um barco. É uma nau.Eu gracejei:– “Lá vem a Nau CatrinetaQue tem muito que contar…”– O quê?!– Nada, nada… – respondi eu. E, vendo o olhar interrogativo da criança, resolvi continuar. – E então?! Para onde vai a tua nau?Os olhitos dele brilharam ao responder:– Vai descobrir Novos Mundos.Sorri-lhe.Não queria sair dali e, por isso, resolvi continuar a conversa.Compus o meu ar mais sério e convincente antes de começar a falar e disse-lhe:– Mas, sabes, se queres descobrir Novos Mundos, não devias ir só com uma nau. Devias levar várias. Assim… como uma armada, sabes o que é?Ele acenou afirmativamente e eu continuei:– … porque assim elas podem apoiar-se umas às outras. E olha que nunca se sabe os perigos que podem ter de enfrentar! As tempestades…– … os piratas! – acrescentou ele muito depressa.– Pois claro: não podemos esquecer os piratas!Ele riu-se e depois ficou pensativo, brincando com a pontinha do dedo no lábio inferior. Sorriu, finalmente, com um sorriso sincero e rasgado e desatou a correr.Quando já se tinha afastado bastante, olhou para trás e gritou-me:– Tens razão!E ali fiquei aninhada à beira do regato, sem saber bem se devia levantar-me e seguir caminho ou esperar que o menino voltasse.Resolvi esperar e ainda bem que o fiz porque, pouco tempo depois, já ouvia o riso dele, enquanto descia o caminho numa corrida imensa.No braço trazia uma série de folhas de papel e, quando chegou à minha beira, sentou-se e disse-me:– Pronto. Assim já podemos fazer a nossa armada!Sorri-lhe novamente.(“Devia ter adivinhado.”)Sentei-me e peguei numa folha. Nunca soube fazer barcos de papel mas, seguindo os passos dele foi fácil.Em pouco tempo a “armada” estava pronta.– Então e agora? – perguntou ele.– Agora devias dar-hes nomes. Para toda a gente as conhecer. Afinal, não são uns barcos quaisquer! Vão fazer novas descobertas… Vão ficar na História!... Têm de ter nome!!!Ele olhou-me e vi que tinha entendido muito bem.Apontou a primeira: – Esta é a Coragem!Quando lhe deu o nome, o meu coração apertou-se. Tinha entendido até melhor do que eu esperava.E assim se foram alinhando todos os barcos, prontos para partir à aventura: Coragem, Força, Fé, Audácia (“au… quê?!”), Destreza, Luz, Conhecimento, Sabedoria…Ficamos a vê-las partir lentamente, sorrindo como quem delas esperava grandes feitos…Olhei para o menino e pensei que gostaria de lhe dar alguma coisa mas, dentro da minha saca, nada tinha que pudesse interessar a uma criança, para além do bloco de desenho.Lembro-me de ter pensado que devia ter aprendido a fazer origamis; assim já teria o que lhe oferecer.Mas, depois, tive uma ideia melhor.Peguei no bloco e numa caneta e comecei a desenhar, com traços largos e seguros. O menino espreitava sobre o meu ombro. Ainda consigo ouvir o gritinho de felicidade que soltou ao perceber o que estava a nascer naquela folha de papel: uma nau, majestosa e imponente, com as suas velas ao vento.Quando acabei, escrevi o nome na proa, junto da figura de sereia que nela se erguia e dei-lha:– Esta é a “Sonho”. Nunca a percas.Nunca esquecerei o ar solene com que ele me respondeu:– Não. Nunca.


Ao Klatuu NiktosJan Saudek, The River, 1962Porque ainda há beleza e pureza na alma lusitana...Tinha ido ao Bairro. (Por “Bairro” entendo eu, desde miúda, a “Casa do Bairro”, propriedade de uma minha tia avó muito querida).Como tantas outras vezes, após alguns minutos de conversa, pedi licença, levantei-me e disse que ia “dar uma voltinha”.A minha tia sorriu-me e respondeu:– Quando eras pequena dizias sempre isso.Sorri-lhe de volta:– Eu sei.De facto, até sabia mais. Sabia que voltava sempre dessas andanças cheia de excitantes novidades sobre a bicharada lá da zona – desde o galo aos cães, passando pelo peru e pelos inúmeros gatos vadios que por lá circulavam, nenhum escapava à minha visita. Do mesmo modo que sabia que aparecia sempre com os sapatinhos que a minha avó tão bem cuidava, cheios de poeira e as mãozitas sujas de terra, exibindo triunfante um qualquer novo tesouro – fosse uma folha seca, uma pedra mais bonita ou mais brilhante que as demais, um fruto maduro (ou verde, confesso), uma minúscula flor, um bugalho ou mesmo um cogumelo.Desta vez, no entanto, já não seria assim, pensei.(Afinal, já não sou mais essa criancinha que recordo…)Iria apenas, matar saudades.Caminhei por entre cada uma daquelas árvores que conheço desde sempre; parei em cada recanto, deixando os meus olhos pousarem-se demoradamente em tudo. Sentia-me bem e, por isso, não queria que o passeio acabasse tão cedo.Eventualmente, acabei por sair das fronteiras da Casa do Bairro sem que, no entanto, me tivesse apercebido disso.Ao passar um caminho de pedra, vi um menino aninhado, quase encostado a um muro, soltando gargalhadas de prazer.A princípio não percebi o porquê de tanta alegria mas, ao aproximar-se, tornou-se muito claro: na berma do caminho, resguardado pelo muro de pedra escura, corria um pequeno regato de água e o rapazito tinha acabado de pôr um barquito de papel a flutuar naquele reguinho.(“Meu Deus, pensava que os miúdos do século XXI já não brincavam com barquinhos de papel!”)O quadro era tão estranhamente familiar que chegava a ser comovente.Aproximei-me e aninhei-me ao lado do menino que, de cócoras, acompanhava o lento balançar do barquito:– Então, para onde vai o teu barco? – perguntei.Ele endireitou-se todo; pôs-se de pé, ficando mais alto que eu, ali aninhada e disse com uma voz muito segura:– Não é um barco. É uma nau.Eu gracejei:– “Lá vem a Nau CatrinetaQue tem muito que contar…”– O quê?!– Nada, nada… – respondi eu. E, vendo o olhar interrogativo da criança, resolvi continuar. – E então?! Para onde vai a tua nau?Os olhitos dele brilharam ao responder:– Vai descobrir Novos Mundos.Sorri-lhe.Não queria sair dali e, por isso, resolvi continuar a conversa.Compus o meu ar mais sério e convincente antes de começar a falar e disse-lhe:– Mas, sabes, se queres descobrir Novos Mundos, não devias ir só com uma nau. Devias levar várias. Assim… como uma armada, sabes o que é?Ele acenou afirmativamente e eu continuei:– … porque assim elas podem apoiar-se umas às outras. E olha que nunca se sabe os perigos que podem ter de enfrentar! As tempestades…– … os piratas! – acrescentou ele muito depressa.– Pois claro: não podemos esquecer os piratas!Ele riu-se e depois ficou pensativo, brincando com a pontinha do dedo no lábio inferior. Sorriu, finalmente, com um sorriso sincero e rasgado e desatou a correr.Quando já se tinha afastado bastante, olhou para trás e gritou-me:– Tens razão!E ali fiquei aninhada à beira do regato, sem saber bem se devia levantar-me e seguir caminho ou esperar que o menino voltasse.Resolvi esperar e ainda bem que o fiz porque, pouco tempo depois, já ouvia o riso dele, enquanto descia o caminho numa corrida imensa.No braço trazia uma série de folhas de papel e, quando chegou à minha beira, sentou-se e disse-me:– Pronto. Assim já podemos fazer a nossa armada!Sorri-lhe novamente.(“Devia ter adivinhado.”)Sentei-me e peguei numa folha. Nunca soube fazer barcos de papel mas, seguindo os passos dele foi fácil.Em pouco tempo a “armada” estava pronta.– Então e agora? – perguntou ele.– Agora devias dar-hes nomes. Para toda a gente as conhecer. Afinal, não são uns barcos quaisquer! Vão fazer novas descobertas… Vão ficar na História!... Têm de ter nome!!!Ele olhou-me e vi que tinha entendido muito bem.Apontou a primeira: – Esta é a Coragem!Quando lhe deu o nome, o meu coração apertou-se. Tinha entendido até melhor do que eu esperava.E assim se foram alinhando todos os barcos, prontos para partir à aventura: Coragem, Força, Fé, Audácia (“au… quê?!”), Destreza, Luz, Conhecimento, Sabedoria…Ficamos a vê-las partir lentamente, sorrindo como quem delas esperava grandes feitos…Olhei para o menino e pensei que gostaria de lhe dar alguma coisa mas, dentro da minha saca, nada tinha que pudesse interessar a uma criança, para além do bloco de desenho.Lembro-me de ter pensado que devia ter aprendido a fazer origamis; assim já teria o que lhe oferecer.Mas, depois, tive uma ideia melhor.Peguei no bloco e numa caneta e comecei a desenhar, com traços largos e seguros. O menino espreitava sobre o meu ombro. Ainda consigo ouvir o gritinho de felicidade que soltou ao perceber o que estava a nascer naquela folha de papel: uma nau, majestosa e imponente, com as suas velas ao vento.Quando acabei, escrevi o nome na proa, junto da figura de sereia que nela se erguia e dei-lha:– Esta é a “Sonho”. Nunca a percas.Nunca esquecerei o ar solene com que ele me respondeu:– Não. Nunca.

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