NOVA ÁGUIA: REVISTA DE CULTURA PARA O SÉCULO XXI: Viriato

21-01-2012
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ESCRITO NA PEDRA QUE O TEMPO APAGOUAo valoroso guerreiro que o poente engoliu, muitas grandezas o predestinaram. Na malga de leite, o espelhado oceano, a planura, o céu e a luz sem fim. No ferro, a mão da terra, os primordiais pétreos deuses, o bravo grito lusitano e o favor das batalhas. Por isso chora e brande o dardo no caminho dos mortos. Não mais verá a planície natal, as delícias do Tagus, do Callipus e do Anas [1], as serras e as terras, livres para o homem e o cavalo. Rei, lhe chamaram os ventos e os nascentes e o amor do povo. O tempo não guardará o seu nome, mas os tiranos lembrarão que com valentia usou as vírias. Dux Viriatus, terror Romanorum! [2] PAPIRO«Do mesmo modo o assassinato de Viriato justifica uma dupla acusação de perfídia; aos seus companheiros, que pelas próprias mãos o mataram, e ao Cônsul Servílio Cipião, porque foi o verdadeiro autor do crime, por ter prometido a paz e porque, não conseguindo a vitória, a comprou.»Valério Máximo«Depois da morte de Viriato, em 139 a.C., muitos Lusitanos renderam-se, outros dispersaram-se em bandos que atacavam sem mando as Legiões e eram rapidamente aniquilados, alguns, que sobreviviam e não aceitavam capitular, fugiam para norte, para junto dos rudes povos dos castros, que também recusavam aceitar o domínio Romano, suicidas a cheirar a cabra, tão civilizacionalmente atrasados que não poderiam opor qualquer resistência eficaz – mas em 136 a.C., com a campanha de Décio Júnio Bruto, Governador da Ulterior, que foi o primeiro a avançar para norte, ao longo do litoral, houve uma grande sublevação de Calaicos, vindos das montanhas do noroeste da Hispânia, entre os quais muitos Lusitanos – que se distinguiam bem dos selváticos Calaicos pelo porte, os cabelos soltos e as vestes negras e pelo facto de onde combatiam muitos deles os ataques serem mais concertados, porque valentia não se pode negar a nenhuns – amargo e amargurado o orgulho de pertencerem ao povo mais importante da região e ansiosos de reconquistar as planícies natais. Foram vencidos pelas Legiões.Uma das batalhas deu-se próxima de Ponte de Lima. Depois de Júnio Bruto ter passado o Rio dos Mortos sem escolta, aquietou os temores dos soldados [3], que atravessaram também o rio e seguiram em marcha de combate. Pouco tardou para que a retaguarda fosse assaltada de repente por hordas de Calaicos. O recuo de algumas Coortes pô-los em debandada, não sem terem levado muitas das bagagens, mas a dianteira enfrentava já um ataque mais ordenado, com muitos Lusitanos a cavalo, incitando os demais. Foram precisas duas longas horas para lhes quebrar o bárbaro ímpeto, começaram a recuar e eram chacinados na fuga – estas gentes são como crianças, assim que sofrem um revés logo se sentem abandonadas pelos deuses. Apenas os que estavam perto dos Lusitanos conseguiam uma retirada táctica e, como quer a cavalo quer a pé, são mais rápidos do que os nossos, foram perseguidos à vista mas sem os alcançarmos.A noite caía e procuraram abrigo numa elevação – tal como o ordenaria um general Romano – onde tinham a vantagem do terreno. Montou-se o cerco, erguemos fortificações enquanto outros dormiam por turnos e esperámos pela manhã. Estes lugares estão por cartografar; estavam no cimo de uma pequena colina estes últimos resistentes, ouvimos os seus cânticos – assombravam-nos o sono com o temor primevo que todo o civilizado sente pelo selvagem – à espera que a alba e a glória rasgassem a terra. O astro iluminaria todos, mas a nós menos iluminaria a glória, pois éramos tantos e eles tão poucos.Eram homens de valor, tanto ou mais que os nossos.Caturo Constâncio Ibérico» [4]CANÇÃO DE BATALHAFindam fogueiras e noite.As legiões formam em redorUm cerco de lanças mil.Somos duas vezes cem.Pela manhã bebemos sangueE tatuámos os braços.O vento rodeou o monte.O falcão gritou no céu.Mais cedo nasceu o SolPara nos ver morrer.Lord of Erewhon[1] Rios Tejo, Sado e Guadiana. Estranho? – não o nome antigo destes rios, claro, mas esta saudade de além-túmulo de Viriato? Nem por isso. As teses sobre o seu lugar de nascimento não passam de «história salazarenta», sem qualquer fundamento; se a atribuição de Alvega (concelho de Abrantes, distrito de Santarém) como lugar de nascimento do caudilho dos Lusitanos já é sem prova, tal como os arredores de Coimbra… então a alternativa de Loriga (concelho de Seia, distrito da Guarda) é de um absurdo hilariante! Viriato nunca esteve na Serra da Estrela, a não ser no imaginário bairrista de tanto pacóvio nortenho, e os Lusitanos – excepto na recriação ridícula de Manoel de Oliveira – nunca fizeram guerrilha aos Romanos com arremesso de pedregulhos do alto das serranias! Dizimaram, sim, em combate de exércitos, Legiões inteiras nas planícies da Andaluzia e do Alentejo – facto de que poucos povos «bárbaros» se podem gabar e que só civilizações competidoras de Roma alcançaram. Do mesmo modo, a dita «Cava de Viriato», lá para as brenhas de Viseu, não passa de um entrincheiramento romano, de onde as Legiões vigiavam as diversas estradas que ali se cruzavam.Nos nossos dias a História atribui a Viriato nascimento mais provável no litoral algures entre um pouco acima de Lisboa e um pouco abaixo de Setúbal – e a tese do litoral do Baixo Alentejo, próximo de Sines, não é despicienda. Viriato casou com a filha de Astolpas, um mercador rico destas regiões e demonstra na sua estratégia militar um fundo conhecimento das terras de planície, bem como dos hábitos romanos e da civilização mediterrânica, que só poderia possuir, um, por estar habituado ao chão direito e, outros, por ter vivido em lugares de câmbio de produtos e povos, ou no estuário do Sado ou no do Tejo, ou em ambos.[2] Chefe Viriato, terror dos Romanos; designação pela qual os Romanos se lhe referiam.[3] As mitologias antigas acerca da Finisterra povoaram de terrores o imaginário das Legiões; o Rio Lima foi confundido com o Lethes. O episódio é verídico, os soldados de Roma recusaram-se a passar o rio, e só o exemplo de coragem do Procônsul os convenceu a atravessar.[4] Caturo Constâncio Ibérico é pura invenção minha e o texto que aqui assina não passa de ficção histórica, tal como o poema a que o texto faz introdução; não obstante as datas, os intervenientes e o contexto aconteceram, só esta batalha é imaginária; Júnio Bruto avançou para norte e encontrou forte resistência dos Calaicos e dos derradeiros Lusitanos que se recusaram a entregar as armas após o assassinato de Viriato. O excerto de Valério Máximo é real e traduzido por mim.THE LADY OF SHALOTTToda a beleza se cala quando vagas alva e luminosa pelos pântanos. Barca ou berço, útero das águas, castelo e leito do guerreiro, fonte para o exangue, o faminto, o desterrado, ósculo e cura, do miserável e do louco, alva, toda a beleza se cala, quando vagas. Vem, Dama de Branco, que a tua sombra de luz me dê vergonha da minha força, que o jardim do teu coração me faça ajoelhar e abraçar a terra, que as tuas mãos de neve me façam apagar o inferno negro da minha alma. Vem por entre os pântanos, onde o sangue e a dor e as ignominiosas coisas que rastejam tecem a sua rede de murmúrios na água, vem por entre os pântanos, vem com a tua barca da vida e da morte e acerca-te desta estaca implacável de fogo e chega até mim, a criança orfã que lutou nos bosques. Vem mãe das águas e irmã das ínfimas frágeis criaturas que alegram o mundo, o orvalho na pétala, o grilo no feno, a ave no anil-espírito do céu, vem sobre os pântanos, os pântanos do mundo, e que um grande silêncio se erga do chão, e toda a beleza se cale, e o sopro uivante da minha vida, enfim, cesse. Depois faz de mim uma rosa e, por entre o vagar das águas, coloca-me no teu cabelo… e esvai-te dentro da bruma.Lord of Erewhon


ESCRITO NA PEDRA QUE O TEMPO APAGOUAo valoroso guerreiro que o poente engoliu, muitas grandezas o predestinaram. Na malga de leite, o espelhado oceano, a planura, o céu e a luz sem fim. No ferro, a mão da terra, os primordiais pétreos deuses, o bravo grito lusitano e o favor das batalhas. Por isso chora e brande o dardo no caminho dos mortos. Não mais verá a planície natal, as delícias do Tagus, do Callipus e do Anas [1], as serras e as terras, livres para o homem e o cavalo. Rei, lhe chamaram os ventos e os nascentes e o amor do povo. O tempo não guardará o seu nome, mas os tiranos lembrarão que com valentia usou as vírias. Dux Viriatus, terror Romanorum! [2] PAPIRO«Do mesmo modo o assassinato de Viriato justifica uma dupla acusação de perfídia; aos seus companheiros, que pelas próprias mãos o mataram, e ao Cônsul Servílio Cipião, porque foi o verdadeiro autor do crime, por ter prometido a paz e porque, não conseguindo a vitória, a comprou.»Valério Máximo«Depois da morte de Viriato, em 139 a.C., muitos Lusitanos renderam-se, outros dispersaram-se em bandos que atacavam sem mando as Legiões e eram rapidamente aniquilados, alguns, que sobreviviam e não aceitavam capitular, fugiam para norte, para junto dos rudes povos dos castros, que também recusavam aceitar o domínio Romano, suicidas a cheirar a cabra, tão civilizacionalmente atrasados que não poderiam opor qualquer resistência eficaz – mas em 136 a.C., com a campanha de Décio Júnio Bruto, Governador da Ulterior, que foi o primeiro a avançar para norte, ao longo do litoral, houve uma grande sublevação de Calaicos, vindos das montanhas do noroeste da Hispânia, entre os quais muitos Lusitanos – que se distinguiam bem dos selváticos Calaicos pelo porte, os cabelos soltos e as vestes negras e pelo facto de onde combatiam muitos deles os ataques serem mais concertados, porque valentia não se pode negar a nenhuns – amargo e amargurado o orgulho de pertencerem ao povo mais importante da região e ansiosos de reconquistar as planícies natais. Foram vencidos pelas Legiões.Uma das batalhas deu-se próxima de Ponte de Lima. Depois de Júnio Bruto ter passado o Rio dos Mortos sem escolta, aquietou os temores dos soldados [3], que atravessaram também o rio e seguiram em marcha de combate. Pouco tardou para que a retaguarda fosse assaltada de repente por hordas de Calaicos. O recuo de algumas Coortes pô-los em debandada, não sem terem levado muitas das bagagens, mas a dianteira enfrentava já um ataque mais ordenado, com muitos Lusitanos a cavalo, incitando os demais. Foram precisas duas longas horas para lhes quebrar o bárbaro ímpeto, começaram a recuar e eram chacinados na fuga – estas gentes são como crianças, assim que sofrem um revés logo se sentem abandonadas pelos deuses. Apenas os que estavam perto dos Lusitanos conseguiam uma retirada táctica e, como quer a cavalo quer a pé, são mais rápidos do que os nossos, foram perseguidos à vista mas sem os alcançarmos.A noite caía e procuraram abrigo numa elevação – tal como o ordenaria um general Romano – onde tinham a vantagem do terreno. Montou-se o cerco, erguemos fortificações enquanto outros dormiam por turnos e esperámos pela manhã. Estes lugares estão por cartografar; estavam no cimo de uma pequena colina estes últimos resistentes, ouvimos os seus cânticos – assombravam-nos o sono com o temor primevo que todo o civilizado sente pelo selvagem – à espera que a alba e a glória rasgassem a terra. O astro iluminaria todos, mas a nós menos iluminaria a glória, pois éramos tantos e eles tão poucos.Eram homens de valor, tanto ou mais que os nossos.Caturo Constâncio Ibérico» [4]CANÇÃO DE BATALHAFindam fogueiras e noite.As legiões formam em redorUm cerco de lanças mil.Somos duas vezes cem.Pela manhã bebemos sangueE tatuámos os braços.O vento rodeou o monte.O falcão gritou no céu.Mais cedo nasceu o SolPara nos ver morrer.Lord of Erewhon[1] Rios Tejo, Sado e Guadiana. Estranho? – não o nome antigo destes rios, claro, mas esta saudade de além-túmulo de Viriato? Nem por isso. As teses sobre o seu lugar de nascimento não passam de «história salazarenta», sem qualquer fundamento; se a atribuição de Alvega (concelho de Abrantes, distrito de Santarém) como lugar de nascimento do caudilho dos Lusitanos já é sem prova, tal como os arredores de Coimbra… então a alternativa de Loriga (concelho de Seia, distrito da Guarda) é de um absurdo hilariante! Viriato nunca esteve na Serra da Estrela, a não ser no imaginário bairrista de tanto pacóvio nortenho, e os Lusitanos – excepto na recriação ridícula de Manoel de Oliveira – nunca fizeram guerrilha aos Romanos com arremesso de pedregulhos do alto das serranias! Dizimaram, sim, em combate de exércitos, Legiões inteiras nas planícies da Andaluzia e do Alentejo – facto de que poucos povos «bárbaros» se podem gabar e que só civilizações competidoras de Roma alcançaram. Do mesmo modo, a dita «Cava de Viriato», lá para as brenhas de Viseu, não passa de um entrincheiramento romano, de onde as Legiões vigiavam as diversas estradas que ali se cruzavam.Nos nossos dias a História atribui a Viriato nascimento mais provável no litoral algures entre um pouco acima de Lisboa e um pouco abaixo de Setúbal – e a tese do litoral do Baixo Alentejo, próximo de Sines, não é despicienda. Viriato casou com a filha de Astolpas, um mercador rico destas regiões e demonstra na sua estratégia militar um fundo conhecimento das terras de planície, bem como dos hábitos romanos e da civilização mediterrânica, que só poderia possuir, um, por estar habituado ao chão direito e, outros, por ter vivido em lugares de câmbio de produtos e povos, ou no estuário do Sado ou no do Tejo, ou em ambos.[2] Chefe Viriato, terror dos Romanos; designação pela qual os Romanos se lhe referiam.[3] As mitologias antigas acerca da Finisterra povoaram de terrores o imaginário das Legiões; o Rio Lima foi confundido com o Lethes. O episódio é verídico, os soldados de Roma recusaram-se a passar o rio, e só o exemplo de coragem do Procônsul os convenceu a atravessar.[4] Caturo Constâncio Ibérico é pura invenção minha e o texto que aqui assina não passa de ficção histórica, tal como o poema a que o texto faz introdução; não obstante as datas, os intervenientes e o contexto aconteceram, só esta batalha é imaginária; Júnio Bruto avançou para norte e encontrou forte resistência dos Calaicos e dos derradeiros Lusitanos que se recusaram a entregar as armas após o assassinato de Viriato. O excerto de Valério Máximo é real e traduzido por mim.THE LADY OF SHALOTTToda a beleza se cala quando vagas alva e luminosa pelos pântanos. Barca ou berço, útero das águas, castelo e leito do guerreiro, fonte para o exangue, o faminto, o desterrado, ósculo e cura, do miserável e do louco, alva, toda a beleza se cala, quando vagas. Vem, Dama de Branco, que a tua sombra de luz me dê vergonha da minha força, que o jardim do teu coração me faça ajoelhar e abraçar a terra, que as tuas mãos de neve me façam apagar o inferno negro da minha alma. Vem por entre os pântanos, onde o sangue e a dor e as ignominiosas coisas que rastejam tecem a sua rede de murmúrios na água, vem por entre os pântanos, vem com a tua barca da vida e da morte e acerca-te desta estaca implacável de fogo e chega até mim, a criança orfã que lutou nos bosques. Vem mãe das águas e irmã das ínfimas frágeis criaturas que alegram o mundo, o orvalho na pétala, o grilo no feno, a ave no anil-espírito do céu, vem sobre os pântanos, os pântanos do mundo, e que um grande silêncio se erga do chão, e toda a beleza se cale, e o sopro uivante da minha vida, enfim, cesse. Depois faz de mim uma rosa e, por entre o vagar das águas, coloca-me no teu cabelo… e esvai-te dentro da bruma.Lord of Erewhon

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