Trovas sem Trovante

05-01-2012
marcar artigo

No ano em que os Trovante renasceram nos palcos para os seus 35 anos, juntos e ao vivo, dois dos seus fundadores, Luís Represas e João Gil, resolveram apresentar-se, pela primeira vez, juntos e em disco. Um trabalho na melhor tradição do que os fez começar. Nuno Pacheco

Quando o Trovante, como eles gostam de lhe chamar, começou, João Gil tinha 20 anos e Luís Represas 19. Hoje ainda têm essa idade, mas com mais de três décadas em cima. Por essas duas razões, no ano em que o grupo teve novo (e bem sucedido) renascimento nos palcos, celebrando os 35 anos da sua formação, Gil e Represas lançaram um disco a dois, o que nunca tinham feito, apesar de vários projectos a solo e com outros músicos.

A ideia nasceu em finais de 2010 e partiu da editora, a EMI, mas eles agarraram-na sem hesitar, porque, na verdade, acharam que tinha chegado a altura. "Não a entendi como uma encomenda tradicional", diz Gil. E Represas acrescenta: "Muitas vezes temos perto de nós coisas que não vemos, porque estão demasiado próximas. E é preciso vir alguém de fora para nos lembrar disso. Passados já vinte anos de percursos individuais, cada um de nós está num momento em que se foi realizando e foi chegando a um ponto de solidez que permite, de uma forma livre e resolvida, trab.alhar um com o outro." Ou seja: "O tempo jogou a nosso favor, não só humanamente como artisticamente".

O objectivo, que acabou por ser cumprido à risca, era um disco de originais feito a dois. E foi mesmo a dois. Gil: "Nós temos um processo de trabalho muito livre. Há várias coisas que definem um território comum e quando se entre nesse território e se domina a linguagem, o vocabulário, a terminologia exacta, é tão tranquilo e pacífico a forma como as coisas acontecem que a partir daí é que é interessante. Por exemplo: eu posso fazer uma canção sozinho, em minha casa, mas depois o Luís pega e repega e manuseia. A canção vai num estado bruto mas, quando passa para a voz, já entra noutro terreno. Aí já é um trabalho de dupla, onde o Luís tem um papel fundamental." Mas, ao contrário do que seria "normal" esperar, a voz aqui não é só a do habitual vocalista, é de ambos. Luís: "Quis muito que houvesse aqui uma presença do Gil como cantor, também. Que não se refugiasse nas guitarras mas desse de si, vocalmente. E pela primeira vez ele foi muito mais além do que noutras experiências ou discos onde possa ter cantado."

Juntar o Zorro e o bandido

As treze canções do disco têm narrativas distintas, algumas nascidas de descobertas. A canção da fome", por exemplo, Gil encontrou-a na monumental colectânea de poesia "Rosa do Mundo", organizada por Hermínio Monteiro para a Assírio & Alvim, pouco antes de morrer. "É um livro fantástico, descobrem-se sempre coisas inacreditáveis. Andava à procura de qualquer coisa que fosse mais antiga e quando dei com aquele poema de 1800 e tal, que é tão real e tão actual como se tivesse sido escrito hoje. Ainda por cima perversamente escrito por um alemão! Achei que era uma maneira de fazer intervenção numa canção que tem um tratamento formal quase rock"n roll mas que na criação é muito zeca-afonsiana, muito trovadoresca e portuguesa."

Já "Amor é fogo que arde sem se ver", de Camões, em lugar de surgir como balada, viajou para o Brasil (literalmente, já que a percussão é de Marco Mazzola) com um toque afro, baiano. "Quisemos romper com essa história de levar o Camões sempre para o fado ou para a balada, pondo-o numa redoma contemplativa e intocável. O Camões era um poeta popular, um boémio, um brigão. O que são "Os Lusíadas", a sua obra maior, senão um conto de aventuras?"

O melhor do Público no email Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Subscrever ×

No disco, a ideia do pai está presente em pelo menos três canções. "Diz-me tudo meu pai", escrita por Gil, é uma delas: "As novas gerações tem de fazer um corte, ter uma nova mentalidade, uma auto-estima muito mais elevada, acreditar mais no mérito. É uma brincadeira que eu faço ao "Father and son" [do Cat Stevens], mas pondo desta vez o filho a convencer o pai." Já "O lenço e a flor" foi escrito por Luís Represas a pensar no seu próprio pai: "O Gil deu-me a música e eu escrevi-a quase toda sem parar. Porque de repente vi um filme. Tem muito a ver com o nosso direito a conquistar a felicidade, a pormos o nosso relógio de novo a funcionar seja em que altura for da nossa vida."

Mas se algum tema tem uma história comum aos dois, ele é "Canção do bandido (o Zorro)", que fecha o disco. "Se estivéssemos nos anos 80", diz Represas, "o single provavelmente seria esse. Esta canção é construída com base no "Zorro" original, que gravámos juntos para o projecto "Voz e Guitarra" [1997, com Rui Veloso]. E quando nós estávamos a fazer uns concertos, há dois ou três anos, a meio do "Zorro" o Gil fazia um solo constante onde sugeria sempre uma melodia. E essa melodia levou para uma canção nova, em que o João Monge, que fez a letra original, escreveu a "Canção do bandido". Mas achámos que as duas tinham muito a ver uma com a outra, era quase uma sequela, e juntámo-las. E acabou por fazer mais sentido do que pensávamos."

Continuar a ler

Ver crítica de discos pág. 30 e segs.

Categorias

Entidades

No ano em que os Trovante renasceram nos palcos para os seus 35 anos, juntos e ao vivo, dois dos seus fundadores, Luís Represas e João Gil, resolveram apresentar-se, pela primeira vez, juntos e em disco. Um trabalho na melhor tradição do que os fez começar. Nuno Pacheco

Quando o Trovante, como eles gostam de lhe chamar, começou, João Gil tinha 20 anos e Luís Represas 19. Hoje ainda têm essa idade, mas com mais de três décadas em cima. Por essas duas razões, no ano em que o grupo teve novo (e bem sucedido) renascimento nos palcos, celebrando os 35 anos da sua formação, Gil e Represas lançaram um disco a dois, o que nunca tinham feito, apesar de vários projectos a solo e com outros músicos.

A ideia nasceu em finais de 2010 e partiu da editora, a EMI, mas eles agarraram-na sem hesitar, porque, na verdade, acharam que tinha chegado a altura. "Não a entendi como uma encomenda tradicional", diz Gil. E Represas acrescenta: "Muitas vezes temos perto de nós coisas que não vemos, porque estão demasiado próximas. E é preciso vir alguém de fora para nos lembrar disso. Passados já vinte anos de percursos individuais, cada um de nós está num momento em que se foi realizando e foi chegando a um ponto de solidez que permite, de uma forma livre e resolvida, trab.alhar um com o outro." Ou seja: "O tempo jogou a nosso favor, não só humanamente como artisticamente".

O objectivo, que acabou por ser cumprido à risca, era um disco de originais feito a dois. E foi mesmo a dois. Gil: "Nós temos um processo de trabalho muito livre. Há várias coisas que definem um território comum e quando se entre nesse território e se domina a linguagem, o vocabulário, a terminologia exacta, é tão tranquilo e pacífico a forma como as coisas acontecem que a partir daí é que é interessante. Por exemplo: eu posso fazer uma canção sozinho, em minha casa, mas depois o Luís pega e repega e manuseia. A canção vai num estado bruto mas, quando passa para a voz, já entra noutro terreno. Aí já é um trabalho de dupla, onde o Luís tem um papel fundamental." Mas, ao contrário do que seria "normal" esperar, a voz aqui não é só a do habitual vocalista, é de ambos. Luís: "Quis muito que houvesse aqui uma presença do Gil como cantor, também. Que não se refugiasse nas guitarras mas desse de si, vocalmente. E pela primeira vez ele foi muito mais além do que noutras experiências ou discos onde possa ter cantado."

Juntar o Zorro e o bandido

As treze canções do disco têm narrativas distintas, algumas nascidas de descobertas. A canção da fome", por exemplo, Gil encontrou-a na monumental colectânea de poesia "Rosa do Mundo", organizada por Hermínio Monteiro para a Assírio & Alvim, pouco antes de morrer. "É um livro fantástico, descobrem-se sempre coisas inacreditáveis. Andava à procura de qualquer coisa que fosse mais antiga e quando dei com aquele poema de 1800 e tal, que é tão real e tão actual como se tivesse sido escrito hoje. Ainda por cima perversamente escrito por um alemão! Achei que era uma maneira de fazer intervenção numa canção que tem um tratamento formal quase rock"n roll mas que na criação é muito zeca-afonsiana, muito trovadoresca e portuguesa."

Já "Amor é fogo que arde sem se ver", de Camões, em lugar de surgir como balada, viajou para o Brasil (literalmente, já que a percussão é de Marco Mazzola) com um toque afro, baiano. "Quisemos romper com essa história de levar o Camões sempre para o fado ou para a balada, pondo-o numa redoma contemplativa e intocável. O Camões era um poeta popular, um boémio, um brigão. O que são "Os Lusíadas", a sua obra maior, senão um conto de aventuras?"

O melhor do Público no email Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Subscrever ×

No disco, a ideia do pai está presente em pelo menos três canções. "Diz-me tudo meu pai", escrita por Gil, é uma delas: "As novas gerações tem de fazer um corte, ter uma nova mentalidade, uma auto-estima muito mais elevada, acreditar mais no mérito. É uma brincadeira que eu faço ao "Father and son" [do Cat Stevens], mas pondo desta vez o filho a convencer o pai." Já "O lenço e a flor" foi escrito por Luís Represas a pensar no seu próprio pai: "O Gil deu-me a música e eu escrevi-a quase toda sem parar. Porque de repente vi um filme. Tem muito a ver com o nosso direito a conquistar a felicidade, a pormos o nosso relógio de novo a funcionar seja em que altura for da nossa vida."

Mas se algum tema tem uma história comum aos dois, ele é "Canção do bandido (o Zorro)", que fecha o disco. "Se estivéssemos nos anos 80", diz Represas, "o single provavelmente seria esse. Esta canção é construída com base no "Zorro" original, que gravámos juntos para o projecto "Voz e Guitarra" [1997, com Rui Veloso]. E quando nós estávamos a fazer uns concertos, há dois ou três anos, a meio do "Zorro" o Gil fazia um solo constante onde sugeria sempre uma melodia. E essa melodia levou para uma canção nova, em que o João Monge, que fez a letra original, escreveu a "Canção do bandido". Mas achámos que as duas tinham muito a ver uma com a outra, era quase uma sequela, e juntámo-las. E acabou por fazer mais sentido do que pensávamos."

Continuar a ler

Ver crítica de discos pág. 30 e segs.

marcar artigo