E que tal reescrever o presente?

09-02-2020
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Mete espécie que quem tem intervenção pública e política não tenha uma visão periférica da realidade, insistindo em nichos eleitorais, padrões de gosto, de comportamentos ou de injustiça, num exercício de cobertor em que os ganhos presentes destapam sempre o passado ou a sustentabilidade do futuro. Só mesmo quem tem pouco para dizer sobre a realidade presente, os seus problemas estruturais, os desafios e as oportunidades é que pode dedicar-se, quase em exclusivo, ao exercício do nicho e do esoterismo. É esotérico querer encarnar o pensamento e as circunstâncias de épocas anteriores para suscitar exercício de julgamento dos comportamentos, eivados ou não de preconceitos ou objetivos preestabelecidos. Por maior e fidedigno que tenha sido o exercício de relato dos acontecimentos da História, há sempre algo ou alguém que não está no azimute, distorcendo a apreciação de factos passados aos olhos do conhecimento do presente. Esta é, aliás, uma linha de pensamento e de ação percorrida também por quem não percebe que a melhor forma de combater o racismo, o populismo, o fundamentalismo e outros ismos é intervir sobre as causas que estão na base dos acontecimentos. Mas não, nem visão periférica nem intervenção concreta sobre as causas dos acontecimentos que alimentam os ismos.

A ideia de restituir património, localizado em território nacional, oriundo das designadas ex-colónias portuguesas é uma resposta de nicho, uma agenda política inconsequente ao lado da realidade que importa e uma oportunidade gerada para a afirmação dos despudorados ismos vigentes e expetantes. É uma irresponsabilidade política como tantas outras que dão alento, projeção mediática e inserção eleitoral aos ismos e aos “istas” em funções. A melhor forma de os combater não é sublinhar as realidades ou os aproveitamentos, é intervir nas causas, com uma visão integrada e sentido de sustentabilidade. É claro que é sempre mais fácil proclamar grandes princípios com pouca ação concreta, em vez de agir em função de nichos ou colocar o debate geral das grandes opções políticas a afunilar para pontos de polémica. É claro que o todo é a soma de vários nichos, mas a cultura instalada é a da afirmação de novos direitos ou correção de injustiças em total desrespeito pelos direitos de outros. Isto é, com o pretexto de se responder a uma parte geram-se novos descontentamentos e injustiças que alimentam o mar geral onde pescam os ismos e os “istas”.

Portugal não dispõe de recursos, mesmo contabilizando os comunitários, para responder aos grandes desafios estruturais de intervir na causa das coisas, em vez de se cingir aos nichos de circunstância ou das opções do Governo de piquete. No entanto, pode estabilizar o caminho que deve ser percorrido e percorrê-lo com método, sustentabilidade e sentido de futuro, sem recuos ou ziguezagues.

O Estado não dispõe de recursos para concretizar respostas adequadas para todas as funções que lhe estão atribuídas. Não o tem para as dinâmicas correntes e não o tem para as situações de exceção, de emergência ou de alarme.

Sem uma visão integrada, criteriosa e sustentada das funções essenciais para as pessoas e para os territórios, em que é preciso mobilizar recursos para garantir o acesso em condições aceitáveis à prestação dos serviços, vamos continuar a ter exercícios de disputa do cobertor, a pensar no passado ou em ganhos eleitorais de nichos, sem cuidar do todo.

Sem foco no reescrever da realidade atual, pela transformação e pela concretização estrutural de situações de futuro, bem diferentes de tantos experimentalismos a que se assiste em Lisboa e em muitos pontos do país, continuaremos a alimentar descontentamentos populares, a engrossar soluções políticas esdrúxulas e a passar ao lado das necessidades e expetativas atuais.

É que tanta burrice só dá espaço para que aprendam no sentido de aproveitar as oportunidades que são geradas. Joacine deixa de interpelar o primeiro-ministro no debate quinzenal, mas nada a impede de, na véspera, endereçar por escrito as perguntas que colocaria se pudesse participar. Ventura não foi censurado com voto de condenação mas, pelo alarido gerado, podia ele próprio ter apresentado um voto para debater o tema em plenário.

Há muita falta de senso na política portuguesa, nas dinâmicas mediáticas e nos comportamentos coletivos. Se é para reescrever alguma coisa, que se reescreva o presente, agindo sobre as causas que contam para as pessoas e para os territórios, no interior e no litoral, em meio urbano e em meio rural. O resto é criar monstros e gigantes com pés de barro, que em nada contribuem para o interesse geral.

NOTAS FINAIS

LÁPIS DE COR. A República não pode permitir-se tratar com desdém os seus melhores. Há uns anos, alguns dos melhores comandantes operacionais de bombeiros deixaram de o ser porque saiu uma lei e tinham de ter uma licenciatura. Prescindimos da liderança dos melhores. Em abril próximo perfaz um ano sobre a morte súbita do Jorge Miguéis, o mais experiente funcionário público português na organização de eleições, pilar essencial da democracia. Organizou cerca de 66 eleições em Portugal. Não dei conta de ter sido agraciado pelo Presidente da República com uma comenda que reconheça na morte o que não foi feito em vida.

TINTA PERMANENTE. O senso deveria ser permanente. Há muita falta de senso na gestão política de circunstância do PS na sua relação com os sindicatos. A contaminação é generalizada. Não saber estar é o que leva um Estado a gerar um ambiente que leva um profissional da escola pública como Manuel Esperança, ex-presidente do Conselho das Escolas, a reformar-se amargurado com os poderes, por ter procurado salvaguardar o interesse dos alunos em dia de exame. Se não é por eles que a escola pública existe, é para quê?

MATA-BORRÃO. Os ritmos das pessoas nunca são tidos em conta no planeamento dos territórios. Se é para erradicar os carros dos centros urbanos e empurrar as pessoas para transportes públicos que funcionam aquém do aceitável, então talvez seja de ter em conta os horários de trabalho, as dinâmicas de mobilidade profissional e as interações com clientes. É que, para além da propaganda, vê-se muita teoria e simbolismo, mas pouca prática concreta. É de doidos intervir no território em simultâneo na Praça de Espanha e na Rua de Campolide. São os loucos de Lisboa.

Escreve à segunda-feira

Mete espécie que quem tem intervenção pública e política não tenha uma visão periférica da realidade, insistindo em nichos eleitorais, padrões de gosto, de comportamentos ou de injustiça, num exercício de cobertor em que os ganhos presentes destapam sempre o passado ou a sustentabilidade do futuro. Só mesmo quem tem pouco para dizer sobre a realidade presente, os seus problemas estruturais, os desafios e as oportunidades é que pode dedicar-se, quase em exclusivo, ao exercício do nicho e do esoterismo. É esotérico querer encarnar o pensamento e as circunstâncias de épocas anteriores para suscitar exercício de julgamento dos comportamentos, eivados ou não de preconceitos ou objetivos preestabelecidos. Por maior e fidedigno que tenha sido o exercício de relato dos acontecimentos da História, há sempre algo ou alguém que não está no azimute, distorcendo a apreciação de factos passados aos olhos do conhecimento do presente. Esta é, aliás, uma linha de pensamento e de ação percorrida também por quem não percebe que a melhor forma de combater o racismo, o populismo, o fundamentalismo e outros ismos é intervir sobre as causas que estão na base dos acontecimentos. Mas não, nem visão periférica nem intervenção concreta sobre as causas dos acontecimentos que alimentam os ismos.

A ideia de restituir património, localizado em território nacional, oriundo das designadas ex-colónias portuguesas é uma resposta de nicho, uma agenda política inconsequente ao lado da realidade que importa e uma oportunidade gerada para a afirmação dos despudorados ismos vigentes e expetantes. É uma irresponsabilidade política como tantas outras que dão alento, projeção mediática e inserção eleitoral aos ismos e aos “istas” em funções. A melhor forma de os combater não é sublinhar as realidades ou os aproveitamentos, é intervir nas causas, com uma visão integrada e sentido de sustentabilidade. É claro que é sempre mais fácil proclamar grandes princípios com pouca ação concreta, em vez de agir em função de nichos ou colocar o debate geral das grandes opções políticas a afunilar para pontos de polémica. É claro que o todo é a soma de vários nichos, mas a cultura instalada é a da afirmação de novos direitos ou correção de injustiças em total desrespeito pelos direitos de outros. Isto é, com o pretexto de se responder a uma parte geram-se novos descontentamentos e injustiças que alimentam o mar geral onde pescam os ismos e os “istas”.

Portugal não dispõe de recursos, mesmo contabilizando os comunitários, para responder aos grandes desafios estruturais de intervir na causa das coisas, em vez de se cingir aos nichos de circunstância ou das opções do Governo de piquete. No entanto, pode estabilizar o caminho que deve ser percorrido e percorrê-lo com método, sustentabilidade e sentido de futuro, sem recuos ou ziguezagues.

O Estado não dispõe de recursos para concretizar respostas adequadas para todas as funções que lhe estão atribuídas. Não o tem para as dinâmicas correntes e não o tem para as situações de exceção, de emergência ou de alarme.

Sem uma visão integrada, criteriosa e sustentada das funções essenciais para as pessoas e para os territórios, em que é preciso mobilizar recursos para garantir o acesso em condições aceitáveis à prestação dos serviços, vamos continuar a ter exercícios de disputa do cobertor, a pensar no passado ou em ganhos eleitorais de nichos, sem cuidar do todo.

Sem foco no reescrever da realidade atual, pela transformação e pela concretização estrutural de situações de futuro, bem diferentes de tantos experimentalismos a que se assiste em Lisboa e em muitos pontos do país, continuaremos a alimentar descontentamentos populares, a engrossar soluções políticas esdrúxulas e a passar ao lado das necessidades e expetativas atuais.

É que tanta burrice só dá espaço para que aprendam no sentido de aproveitar as oportunidades que são geradas. Joacine deixa de interpelar o primeiro-ministro no debate quinzenal, mas nada a impede de, na véspera, endereçar por escrito as perguntas que colocaria se pudesse participar. Ventura não foi censurado com voto de condenação mas, pelo alarido gerado, podia ele próprio ter apresentado um voto para debater o tema em plenário.

Há muita falta de senso na política portuguesa, nas dinâmicas mediáticas e nos comportamentos coletivos. Se é para reescrever alguma coisa, que se reescreva o presente, agindo sobre as causas que contam para as pessoas e para os territórios, no interior e no litoral, em meio urbano e em meio rural. O resto é criar monstros e gigantes com pés de barro, que em nada contribuem para o interesse geral.

NOTAS FINAIS

LÁPIS DE COR. A República não pode permitir-se tratar com desdém os seus melhores. Há uns anos, alguns dos melhores comandantes operacionais de bombeiros deixaram de o ser porque saiu uma lei e tinham de ter uma licenciatura. Prescindimos da liderança dos melhores. Em abril próximo perfaz um ano sobre a morte súbita do Jorge Miguéis, o mais experiente funcionário público português na organização de eleições, pilar essencial da democracia. Organizou cerca de 66 eleições em Portugal. Não dei conta de ter sido agraciado pelo Presidente da República com uma comenda que reconheça na morte o que não foi feito em vida.

TINTA PERMANENTE. O senso deveria ser permanente. Há muita falta de senso na gestão política de circunstância do PS na sua relação com os sindicatos. A contaminação é generalizada. Não saber estar é o que leva um Estado a gerar um ambiente que leva um profissional da escola pública como Manuel Esperança, ex-presidente do Conselho das Escolas, a reformar-se amargurado com os poderes, por ter procurado salvaguardar o interesse dos alunos em dia de exame. Se não é por eles que a escola pública existe, é para quê?

MATA-BORRÃO. Os ritmos das pessoas nunca são tidos em conta no planeamento dos territórios. Se é para erradicar os carros dos centros urbanos e empurrar as pessoas para transportes públicos que funcionam aquém do aceitável, então talvez seja de ter em conta os horários de trabalho, as dinâmicas de mobilidade profissional e as interações com clientes. É que, para além da propaganda, vê-se muita teoria e simbolismo, mas pouca prática concreta. É de doidos intervir no território em simultâneo na Praça de Espanha e na Rua de Campolide. São os loucos de Lisboa.

Escreve à segunda-feira

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