Quando o Douro se transforma em xisto

14-10-2013
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Um vinho feito por João Nicolau de Almeida não pode ser um vinho qualquer.

Um vinho feito pela Família Nicolau de Almeida não pode deixar de ser um acontecimento. A Quinta do Monte Xisto - um lugar invulgar e surpreendente - está finalmente a produzir vinhos.

Toda a gente sabe quem ele é: estava ali imerso numa solidão de calor – Foz Côa lá atrás como se fosse uma nuvem de areia mal disfarçada pelo deserto – a irritar-se com os fogos que não largam nem a região nem a quinta que construiu aos bocadinhos, numa soma de parcelas que parece um ‘puzzle’. Saiu do carro para o calor com aquele sorriso distraído nos lábios, um bigode a preto e branco e o cabelo num desalinho de ventos. Pediu para que esperássemos pelo fi lho, que ia chegar dali a pouco, disse – quase toda a gente sabe quem ele é – e anunciou que mais tarde nos reuniríamos com a filha, só fi cando a faltar o mais novo, a quem lhe deu para ir trabalhar com uns franceses que compraram uma quinta nas arribas do outro lado do monte.

Toda a gente sabe quem ele é: João Nicolau de Almeida – considerado o melhor enólogo do mundo em 1998 – cinco quilómetros depois de o fi lho, o Mateus, ter chegado, tem os dois pés assentes nas lousas baças do seu domínio, a Quinta do Monte Xisto. O vento levanta uns traços de pó, uma aranha excessivamente branca e enorme passa por ali como se não tivesse nada a perder e Nicolau diz umas coisas sobre a quinta. João, o Pai, permanece num silêncio de reverência: ali é o Douro, um lugar que não é mais nenhum, mas que não seria o mesmo se a sua vontade (ou a sua ciência) não tivesse passado por ele. Já antes, na pequena viagem de cinco minutos por entre pedregulhos lunares e videiras chamuscadas pelo calor das chamas do dia anterior, João tinha contado que a Quinta do Monte Xisto, a uns poucos quilómetros de Foz Côa, é um regresso: a sua família zarpou dali, de Sedovim, há uns 250 anos, para ir ver de que cores andava o mundo a ser pintado. Uma das primeiras a correr viagem terá sido uma tetravó arrebatada pela paixão por um irlandês que integrava os exércitos do Duque de Wellington – o pior pesadelo de Napoleão Bonaparte – quando estes tiveram de intervir em Portugal (daquela vez com armas e não com cheques, como mais modernamente vai sucedendo) para sacudir as investidas do irrequieto francês que queria unifi car a Europa sob o signo da águia imperial (uma mania que a Alemanha quis repetir, igualmente sem sucesso, 140 anos mais tarde).

A família dispersou-se pelos muitos cantos que o mundo tem, mas o vinho (e o complexo ‘terroir’ duriense) nunca deixou de ser um traço de união entre todos. Prova disso é que o seu avô Fernando, director técnico da Casa Ferreirinha, tomou uma decisão, por volta do fi - nal dos anos 20 do século passado, que se revelaria fundamental para o Douro: obrigou o fi lho, que também se chamava Fernando, a desistir do sonho de ser aviador, da mania de praticar todos os desportos para que tivesse tempo e das pinturas a óleo, impondo-lhe rigorosa experiência nas salas de prova e a imersão nos calhamaços de inglês e de química, não fosse o garoto ir desperdiçar talentos para outras artes. Vinte anos depois, Fernando, o fi lho, dava ao mundo (a todo) o primeiro Barca Velha (1952) – só vendido oito anos depois – e o mundo (o duriense) nunca mais foi o mesmo. UM MUNDO DE XISTO Portanto, a Quinta do Monte Xisto é um regresso e um ponto de encontro. João recorda que comprou a primeira parcela no ano de 1993: vieram propor-lhe a compra de três hectares do que parecia ser um depósito milenar de basalto, um monte de pedregulhos a suar ao Sol desde o tempo em que o planeta foi fustigado pelas chuvas de meteoritos, olhou para aquilo num êxtase daqueles que não se explicam e decidiu intrometer-se no que o destino para ali tinha determinado.

Desde então acumulou 40 hectares de terreno virgem – nos quais apenas 10 estão plantados com vinha – e uma imensidão de chatices, dores de cabeça e impaciências, naturais em quem decide fazer uma grande propriedade aos bocadinhos. Entretanto, o Mateus e João, os dois fi lhos – a quem felizmente deu para os avatares das enologias como se eles fossem, e parece que são, um dos componentes do ácido desoxirribonucleico que lhes corre no sangue – concluíam os estudos por volta de 2003 e João, o Pai, decidiu que a Quinta do Monte Xisto seria um projecto de família. Mateus está ali ao lado dele – o João anda lá com os franceses mas aparece sempre que é preciso – completa-lhe as explicações, reduz-lhe a propensão para o êxtase e induz-lhe palavras com signifi cado defi nido sem se preocupar com o contraditório: o terreno junta a frescura da altitude, da exposição a Norte e das águas do Douro que correm ali por baixo dos nos- sos pés, com os excessos calorífi cos da exposição a Sul, formando um conjunto “que tem tudo o que é preciso para fazer grandes vinhos do Douro”. Com uma excepção: “aqui só cresce o que se agarra à rocha” e é por isso que Mateus impôs (‘impor’ não é o verbo certo, mas os dois brincam com esses antagonismos como só uma família muito unida pode arriscar fazer) uma agricultura que soma o mais profundo da sabedoria ancestral com o mais moderno da biodiversidade sustentável.

Não há na Quinta do Monte Xisto vestígios de adubos, de fertilizantes ou até mesmo de água que não venham das profundezas da terra e do que ela faz o favor de dar. O único elemento mecânico a emprestar a sua força à força da vinha é um Lamborghini. Não será do último modelo, nem tem aspectos de atingir muitos mais que uns 30 quilómetros por hora, mas não é toda a gente que pode afi rmar ter uma viatura da marca italiana para calcorrear os socalcos do Douro: é um tractor de lagartas, um exemplar raro de que alguém das redondezes se quis desfazer há uns anos. UM VINHO DE XISTO Seguimos em frente, na direcção do rio, como se João Nicolau de Almeida tivesse decidido atirar-se às águas num mergulho de muitas dezenas de metros: a descida é razoavelmente a pique, as pedras de xisto rebolam por baixo das solas numa previsão de acidente, mas tudo acaba num socalco onde a Mafalda está à espera do pai, do irmão e dos seus acompanhantes de ocasião.

Naquele deserto pedregoso onde não há electricidade da EDP, gerador particular ou qualquer outro vestígio civilizacional, a Mafalda montou um cenário que parece um fi lme: no meio do xisto e das suas agruras, há uma mesa de refeições que parece ter sido transportada de helicóptero para aquela varanda natural, onde não faltam todos os copos, todos os talheres e todos os guardanapos (devidamente ‘argolados’) necessários às horas seguintes. E as horas seguintes começaram com um branco Muxagat (a que há que regressar noutra altura, até porque é feito pelo Mateus), excelente antecipação do Quinta do Monte Xisto tinto 2011, o primeiro a sair da sabedoria familiar dos Nicolau de Almeida. E porque os acompanhantes do João e dos dois fi lhos presentes não têm a ciência sufi ciente para aqui assumirem a função de críticos, diga-se apenas que o Quinta do Monte Xisto é, para além de um excelente vinho, a tradução líquida literal daquela paisagem surpreendente, onde o Douro se transforma em xisto.

(artigo publicado na revista Fora de Série com a edição de 4 de Outubro do Diário Económico)

Um vinho feito por João Nicolau de Almeida não pode ser um vinho qualquer.

Um vinho feito pela Família Nicolau de Almeida não pode deixar de ser um acontecimento. A Quinta do Monte Xisto - um lugar invulgar e surpreendente - está finalmente a produzir vinhos.

Toda a gente sabe quem ele é: estava ali imerso numa solidão de calor – Foz Côa lá atrás como se fosse uma nuvem de areia mal disfarçada pelo deserto – a irritar-se com os fogos que não largam nem a região nem a quinta que construiu aos bocadinhos, numa soma de parcelas que parece um ‘puzzle’. Saiu do carro para o calor com aquele sorriso distraído nos lábios, um bigode a preto e branco e o cabelo num desalinho de ventos. Pediu para que esperássemos pelo fi lho, que ia chegar dali a pouco, disse – quase toda a gente sabe quem ele é – e anunciou que mais tarde nos reuniríamos com a filha, só fi cando a faltar o mais novo, a quem lhe deu para ir trabalhar com uns franceses que compraram uma quinta nas arribas do outro lado do monte.

Toda a gente sabe quem ele é: João Nicolau de Almeida – considerado o melhor enólogo do mundo em 1998 – cinco quilómetros depois de o fi lho, o Mateus, ter chegado, tem os dois pés assentes nas lousas baças do seu domínio, a Quinta do Monte Xisto. O vento levanta uns traços de pó, uma aranha excessivamente branca e enorme passa por ali como se não tivesse nada a perder e Nicolau diz umas coisas sobre a quinta. João, o Pai, permanece num silêncio de reverência: ali é o Douro, um lugar que não é mais nenhum, mas que não seria o mesmo se a sua vontade (ou a sua ciência) não tivesse passado por ele. Já antes, na pequena viagem de cinco minutos por entre pedregulhos lunares e videiras chamuscadas pelo calor das chamas do dia anterior, João tinha contado que a Quinta do Monte Xisto, a uns poucos quilómetros de Foz Côa, é um regresso: a sua família zarpou dali, de Sedovim, há uns 250 anos, para ir ver de que cores andava o mundo a ser pintado. Uma das primeiras a correr viagem terá sido uma tetravó arrebatada pela paixão por um irlandês que integrava os exércitos do Duque de Wellington – o pior pesadelo de Napoleão Bonaparte – quando estes tiveram de intervir em Portugal (daquela vez com armas e não com cheques, como mais modernamente vai sucedendo) para sacudir as investidas do irrequieto francês que queria unifi car a Europa sob o signo da águia imperial (uma mania que a Alemanha quis repetir, igualmente sem sucesso, 140 anos mais tarde).

A família dispersou-se pelos muitos cantos que o mundo tem, mas o vinho (e o complexo ‘terroir’ duriense) nunca deixou de ser um traço de união entre todos. Prova disso é que o seu avô Fernando, director técnico da Casa Ferreirinha, tomou uma decisão, por volta do fi - nal dos anos 20 do século passado, que se revelaria fundamental para o Douro: obrigou o fi lho, que também se chamava Fernando, a desistir do sonho de ser aviador, da mania de praticar todos os desportos para que tivesse tempo e das pinturas a óleo, impondo-lhe rigorosa experiência nas salas de prova e a imersão nos calhamaços de inglês e de química, não fosse o garoto ir desperdiçar talentos para outras artes. Vinte anos depois, Fernando, o fi lho, dava ao mundo (a todo) o primeiro Barca Velha (1952) – só vendido oito anos depois – e o mundo (o duriense) nunca mais foi o mesmo. UM MUNDO DE XISTO Portanto, a Quinta do Monte Xisto é um regresso e um ponto de encontro. João recorda que comprou a primeira parcela no ano de 1993: vieram propor-lhe a compra de três hectares do que parecia ser um depósito milenar de basalto, um monte de pedregulhos a suar ao Sol desde o tempo em que o planeta foi fustigado pelas chuvas de meteoritos, olhou para aquilo num êxtase daqueles que não se explicam e decidiu intrometer-se no que o destino para ali tinha determinado.

Desde então acumulou 40 hectares de terreno virgem – nos quais apenas 10 estão plantados com vinha – e uma imensidão de chatices, dores de cabeça e impaciências, naturais em quem decide fazer uma grande propriedade aos bocadinhos. Entretanto, o Mateus e João, os dois fi lhos – a quem felizmente deu para os avatares das enologias como se eles fossem, e parece que são, um dos componentes do ácido desoxirribonucleico que lhes corre no sangue – concluíam os estudos por volta de 2003 e João, o Pai, decidiu que a Quinta do Monte Xisto seria um projecto de família. Mateus está ali ao lado dele – o João anda lá com os franceses mas aparece sempre que é preciso – completa-lhe as explicações, reduz-lhe a propensão para o êxtase e induz-lhe palavras com signifi cado defi nido sem se preocupar com o contraditório: o terreno junta a frescura da altitude, da exposição a Norte e das águas do Douro que correm ali por baixo dos nos- sos pés, com os excessos calorífi cos da exposição a Sul, formando um conjunto “que tem tudo o que é preciso para fazer grandes vinhos do Douro”. Com uma excepção: “aqui só cresce o que se agarra à rocha” e é por isso que Mateus impôs (‘impor’ não é o verbo certo, mas os dois brincam com esses antagonismos como só uma família muito unida pode arriscar fazer) uma agricultura que soma o mais profundo da sabedoria ancestral com o mais moderno da biodiversidade sustentável.

Não há na Quinta do Monte Xisto vestígios de adubos, de fertilizantes ou até mesmo de água que não venham das profundezas da terra e do que ela faz o favor de dar. O único elemento mecânico a emprestar a sua força à força da vinha é um Lamborghini. Não será do último modelo, nem tem aspectos de atingir muitos mais que uns 30 quilómetros por hora, mas não é toda a gente que pode afi rmar ter uma viatura da marca italiana para calcorrear os socalcos do Douro: é um tractor de lagartas, um exemplar raro de que alguém das redondezes se quis desfazer há uns anos. UM VINHO DE XISTO Seguimos em frente, na direcção do rio, como se João Nicolau de Almeida tivesse decidido atirar-se às águas num mergulho de muitas dezenas de metros: a descida é razoavelmente a pique, as pedras de xisto rebolam por baixo das solas numa previsão de acidente, mas tudo acaba num socalco onde a Mafalda está à espera do pai, do irmão e dos seus acompanhantes de ocasião.

Naquele deserto pedregoso onde não há electricidade da EDP, gerador particular ou qualquer outro vestígio civilizacional, a Mafalda montou um cenário que parece um fi lme: no meio do xisto e das suas agruras, há uma mesa de refeições que parece ter sido transportada de helicóptero para aquela varanda natural, onde não faltam todos os copos, todos os talheres e todos os guardanapos (devidamente ‘argolados’) necessários às horas seguintes. E as horas seguintes começaram com um branco Muxagat (a que há que regressar noutra altura, até porque é feito pelo Mateus), excelente antecipação do Quinta do Monte Xisto tinto 2011, o primeiro a sair da sabedoria familiar dos Nicolau de Almeida. E porque os acompanhantes do João e dos dois fi lhos presentes não têm a ciência sufi ciente para aqui assumirem a função de críticos, diga-se apenas que o Quinta do Monte Xisto é, para além de um excelente vinho, a tradução líquida literal daquela paisagem surpreendente, onde o Douro se transforma em xisto.

(artigo publicado na revista Fora de Série com a edição de 4 de Outubro do Diário Económico)

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