Só cara a cara se pode mudar o mundo

14-10-2013
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Lucy Kellaway é editora e colunista do Financial Times, onde escreve sobre temas de gestão, trabalho e carreira.

No início de Setembro, a Ryanair concluiu que tratar mal os clientes não era uma boa estratégia. Vai daí, anunciou ao mundo que passará a tratar os ditos ligeiramente melhor. Uma iniciativa insólita que já mereceu numerosos comentários igualmente invulgares. Mas o mais insólito foi o que levou o seu presidente-executivo (CEO), Michael O'Leary, a este extraordinário volte-face. Não foi a pesquisa de mercado. Não foram as redes sociais. E menos ainda a opinião de consultores de gestão, que O'Leary ameaçou de morte se alguma vez lhe aparecessem à frente. Ah, também não se deveu a pressões da administração. Nada disso.

O que esteve na origem desta reviravolta foram os comentários de comuns mortais que o interpelam no McDonald's para fazer queixinhas sobre a sua companhia aérea quando ele apenas quer saborear uma refeição na companhia dos filhos. Na semana passada, na reunião anual de accionistas, O'Leary informou os presentes que está pelos cabelos. Esqueçam a história das críticas virtuais no mundo digital. Para mudar algo, nada melhor do que pessoas estranhas a fazer críticas pessoalmente. O'Leary é um indivíduo com muitas peculiaridades, mas neste aspecto é igual a todos nós.

Analisando a situação, diria que a importância que atribui a tais encontros é irracional. As pessoas que o abordam não estão mais insatisfeitas do que os milhares que, durante anos, têm postado as suas hostilidades ‘online'. Enquanto escrevia esta crónica, dezenas de pessoas ‘tweetaram' o seu descontentamento e fúria. Cito um dos ‘tweets' mais espirituosos: "As 50-100 libras de diferença entre a Ryanair e a British Airways não saem do nosso bolso, mas da nossa alma". Os exemplos não acabam e estão acessíveis a qualquer um mas, pelos vistos, os gestores têm mais facilidade em ignorar esses protestos do que um encontro face a face.

O leitor poderia esperar que, com o crescimento do mundo virtual e a proliferação de dados, o valor dos encontros reais tinha caído a pique. Mas, afinal, parece que as coisas funcionam ao contrário. Quanto mais desconcertante é o mundo virtual, mais necessidade temos de "provas reais" apresentadas por estranhos, por mais subjectivas que estas possam ser. Mas O'Leary não é o único a dramatizar os encontros que lhe estragam o jantar. Richard Dawkins declarou recentemente ao ‘The Times' que os ateus, tribo à qual pertence, venceram a batalha contra Deus. Porquê? Porque deixou de encontrar pessoas religiosas em festas e jantares. Quando os cientistas valorizam mais as provas recolhidas em festas do que dados trabalhados, percebemos que alguma coisa aconteceu.

Encontrei um colega jornalista e queria explicar-lhe a minha teoria sobre o excesso de confiança que atribuímos aos encontros frente-a-frente, mas mal consegui abrir a boca dado o seu entusiasmo. Disse-me que acabara de chegar dos EUA, onde foi interpelado por estranhos em duas ocasiões - numa livraria e num aeroporto -, que queriam simplesmente dizer-lhe que adoram as suas crónicas. Não tive de lhe perguntar o que pensa sobre a minha teoria: o que disse prova que tenho razão. Este tipo recebe milhares de ‘tweets' e mails de pura adulação, mas nem dá por eles comparando com o que lhe dizem cara a cara.

Se os elogios feitos pessoalmente têm forte impacto, as críticas apresentadas no mesmo formato podem ter efeitos ainda mais bombásticos. Lembro-me perfeitamente de uma festa a que fui há 15 anos e de uma convidada que não conhecia de lado nenhum me olhar nos olhos e dizer que as minhas crónicas eram frívolas. Lembro-me muito bem da comida e do que levei vestido nessa noite. Lembro-me de tudo. Este tipo de situações é memorável, em parte porque são extremamente raras. A maioria das pessoas não gosta de ser execrável na presença de terceiros - sempre nos ensinaram que devíamos falar cordialmente com estranhos, em particular quando estamos sentados à mesma mesa.

No entanto, na Internet, os princípios que nos infundiram não existem. Ninguém condena ninguém por ser gratuitamente insuportável - na condição de a pessoa que desempenha esse papel não poder ser vista. Perante isto, começo a pensar que a festa/jantar/teste no McDonald's é mais científico do que parecia à primeira vista. As pessoas que abordam um CEO num local público para apresentar uma queixa não são "cromos da internet". Pelo contrário, são pessoas que querem dizer o que pensam e exigem uma resposta.

E pronto, eis que alguém toca num ponto nevrálgico, expondo o executivo de uma forma que raramente acontece no dia-a-dia no trabalho. Numa festa ou num McDonald's não há um relações públicas à mão para rabiscar uma resposta politicamente correcta. Não há subalternos para delegar esta questão espinhosa. E não há tempo para pensar. Mas de vez em quando é importante dar uma resposta em público convincente e taxativa. Isto significa que o teste do "tipo-que-ficou-furioso-por-lhe-interromperem-o-jantar" nos pode ensinar muita coisa. Se o executivo não conseguir esgrimir bons argumentos em sua defesa, então, só lhe resta uma saída honrosa: mudar de opinião e promover um volte-face.

Lucy Kellaway é editora e colunista do Financial Times, onde escreve sobre temas de gestão, trabalho e carreira.

No início de Setembro, a Ryanair concluiu que tratar mal os clientes não era uma boa estratégia. Vai daí, anunciou ao mundo que passará a tratar os ditos ligeiramente melhor. Uma iniciativa insólita que já mereceu numerosos comentários igualmente invulgares. Mas o mais insólito foi o que levou o seu presidente-executivo (CEO), Michael O'Leary, a este extraordinário volte-face. Não foi a pesquisa de mercado. Não foram as redes sociais. E menos ainda a opinião de consultores de gestão, que O'Leary ameaçou de morte se alguma vez lhe aparecessem à frente. Ah, também não se deveu a pressões da administração. Nada disso.

O que esteve na origem desta reviravolta foram os comentários de comuns mortais que o interpelam no McDonald's para fazer queixinhas sobre a sua companhia aérea quando ele apenas quer saborear uma refeição na companhia dos filhos. Na semana passada, na reunião anual de accionistas, O'Leary informou os presentes que está pelos cabelos. Esqueçam a história das críticas virtuais no mundo digital. Para mudar algo, nada melhor do que pessoas estranhas a fazer críticas pessoalmente. O'Leary é um indivíduo com muitas peculiaridades, mas neste aspecto é igual a todos nós.

Analisando a situação, diria que a importância que atribui a tais encontros é irracional. As pessoas que o abordam não estão mais insatisfeitas do que os milhares que, durante anos, têm postado as suas hostilidades ‘online'. Enquanto escrevia esta crónica, dezenas de pessoas ‘tweetaram' o seu descontentamento e fúria. Cito um dos ‘tweets' mais espirituosos: "As 50-100 libras de diferença entre a Ryanair e a British Airways não saem do nosso bolso, mas da nossa alma". Os exemplos não acabam e estão acessíveis a qualquer um mas, pelos vistos, os gestores têm mais facilidade em ignorar esses protestos do que um encontro face a face.

O leitor poderia esperar que, com o crescimento do mundo virtual e a proliferação de dados, o valor dos encontros reais tinha caído a pique. Mas, afinal, parece que as coisas funcionam ao contrário. Quanto mais desconcertante é o mundo virtual, mais necessidade temos de "provas reais" apresentadas por estranhos, por mais subjectivas que estas possam ser. Mas O'Leary não é o único a dramatizar os encontros que lhe estragam o jantar. Richard Dawkins declarou recentemente ao ‘The Times' que os ateus, tribo à qual pertence, venceram a batalha contra Deus. Porquê? Porque deixou de encontrar pessoas religiosas em festas e jantares. Quando os cientistas valorizam mais as provas recolhidas em festas do que dados trabalhados, percebemos que alguma coisa aconteceu.

Encontrei um colega jornalista e queria explicar-lhe a minha teoria sobre o excesso de confiança que atribuímos aos encontros frente-a-frente, mas mal consegui abrir a boca dado o seu entusiasmo. Disse-me que acabara de chegar dos EUA, onde foi interpelado por estranhos em duas ocasiões - numa livraria e num aeroporto -, que queriam simplesmente dizer-lhe que adoram as suas crónicas. Não tive de lhe perguntar o que pensa sobre a minha teoria: o que disse prova que tenho razão. Este tipo recebe milhares de ‘tweets' e mails de pura adulação, mas nem dá por eles comparando com o que lhe dizem cara a cara.

Se os elogios feitos pessoalmente têm forte impacto, as críticas apresentadas no mesmo formato podem ter efeitos ainda mais bombásticos. Lembro-me perfeitamente de uma festa a que fui há 15 anos e de uma convidada que não conhecia de lado nenhum me olhar nos olhos e dizer que as minhas crónicas eram frívolas. Lembro-me muito bem da comida e do que levei vestido nessa noite. Lembro-me de tudo. Este tipo de situações é memorável, em parte porque são extremamente raras. A maioria das pessoas não gosta de ser execrável na presença de terceiros - sempre nos ensinaram que devíamos falar cordialmente com estranhos, em particular quando estamos sentados à mesma mesa.

No entanto, na Internet, os princípios que nos infundiram não existem. Ninguém condena ninguém por ser gratuitamente insuportável - na condição de a pessoa que desempenha esse papel não poder ser vista. Perante isto, começo a pensar que a festa/jantar/teste no McDonald's é mais científico do que parecia à primeira vista. As pessoas que abordam um CEO num local público para apresentar uma queixa não são "cromos da internet". Pelo contrário, são pessoas que querem dizer o que pensam e exigem uma resposta.

E pronto, eis que alguém toca num ponto nevrálgico, expondo o executivo de uma forma que raramente acontece no dia-a-dia no trabalho. Numa festa ou num McDonald's não há um relações públicas à mão para rabiscar uma resposta politicamente correcta. Não há subalternos para delegar esta questão espinhosa. E não há tempo para pensar. Mas de vez em quando é importante dar uma resposta em público convincente e taxativa. Isto significa que o teste do "tipo-que-ficou-furioso-por-lhe-interromperem-o-jantar" nos pode ensinar muita coisa. Se o executivo não conseguir esgrimir bons argumentos em sua defesa, então, só lhe resta uma saída honrosa: mudar de opinião e promover um volte-face.

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