Gado Bravo: «Vidas naturalmente violentas»

03-07-2011
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«Um grupo de 14 jovens, com idades compreendidas entre os 10 e os 16 anos, é suspeito de ter espancado até à morte um sem-abrigo, travesti e toxicodependente. (...)Enquanto analiso os pormenores, só consigo lembrar-me de personagens de ficção. Vagueio por entre os rostos e os crimes dos meninos do filme “Cidade de Deus”, de Fernando Meireles, ou do livro “Capitães da Areia”, de Jorge Amado. Tento imaginar os rostos dos 14 adolescentes portugueses que se entregaram ao crime de forma tão natural quanto assustadora. E pergunto-me que vidas os terão levado a ser crianças tão violentas. As notícias dizem que os jovens não queriam matar a vítima. Apenas dar-lhe uma lição. E que lição! Será, sem dúvida, uma daquelas que ficará para a vida. Mas para a vida de quem? Dos adolescentes? Dos responsáveis pela sua guarda? Do Estado que era suposto ajudar a recuperá-los e reinseri-los? Dos pais que não foram capazes de os educar e por isso perderam a sua guarda? Não sei, e duvido que alguém saiba. Mas facilmente imagino que estes 14 adolescentes se tenham limitado a repetir até à exaustão comportamentos que viram ou experimentaram ao longo da sua curta vida, fruto das lições que também alguém, um dia, lhes ensinou. (...)Enquanto analiso este caso, vem-me à memória uma outra notícia, publicada esta semana no jornal Público sobre os “soldados que cresceram a brincar às guerras” em jogos de vídeo e que hoje estão «em batalha nos desertos e nas cidades do Iraque. 'Senti-me como se estivesse num jogo. Nem sequer me desconcertou responder aos disparos. Foi instinto natural. Boom! Boom! Boom! Boom!', contou ao Washington Post o sargento Sinque Swales, recordadando a primeira vez que disparou contra um inimigo, em Mosul". Esta descrição poderia ser entendida apenas como resultado de um treino militar, até porque os jogos de guerra foram incorporados na preparação dos soldados. Mas um estudo recente do Exército dos EUA deixa claro que para estes homens as teclas ‘Ctrl+Alt+Del’ são tão básicas como o ‘ABC’. (...)Mais do que soldados bem treinados, são homens que vivem em função da guerra, passando os seus tempos livres a ver filmes sobre o tema ou a jogar em PlayStations e Xboxes que carregam para o Iraque como bagagem pessoal. O que fazem para se divertir só ajuda a tornar mais natural o acto de premir o gatilho e tirar a vida a um inimigo. Sem falhas de pontaria ou qualquer remorso na consciência.Será exagero dizer que a sua naturalidade é semelhante às dos jovens portugueses que mataram um travesti à pancada? Não sei. Mas há, talvez, uma grande diferença. Os soldados foram criados com jogos que ensinam a disparar sem questionar, enquanto os jovens cresceram a aprender duras lições de vida. Provavelmente do mesmo género da que tentaram dar ao sem abrigo que mataram à pancada! »Lídia Bulcão, in Jornal dos Açores, de 27/02/2006


«Um grupo de 14 jovens, com idades compreendidas entre os 10 e os 16 anos, é suspeito de ter espancado até à morte um sem-abrigo, travesti e toxicodependente. (...)Enquanto analiso os pormenores, só consigo lembrar-me de personagens de ficção. Vagueio por entre os rostos e os crimes dos meninos do filme “Cidade de Deus”, de Fernando Meireles, ou do livro “Capitães da Areia”, de Jorge Amado. Tento imaginar os rostos dos 14 adolescentes portugueses que se entregaram ao crime de forma tão natural quanto assustadora. E pergunto-me que vidas os terão levado a ser crianças tão violentas. As notícias dizem que os jovens não queriam matar a vítima. Apenas dar-lhe uma lição. E que lição! Será, sem dúvida, uma daquelas que ficará para a vida. Mas para a vida de quem? Dos adolescentes? Dos responsáveis pela sua guarda? Do Estado que era suposto ajudar a recuperá-los e reinseri-los? Dos pais que não foram capazes de os educar e por isso perderam a sua guarda? Não sei, e duvido que alguém saiba. Mas facilmente imagino que estes 14 adolescentes se tenham limitado a repetir até à exaustão comportamentos que viram ou experimentaram ao longo da sua curta vida, fruto das lições que também alguém, um dia, lhes ensinou. (...)Enquanto analiso este caso, vem-me à memória uma outra notícia, publicada esta semana no jornal Público sobre os “soldados que cresceram a brincar às guerras” em jogos de vídeo e que hoje estão «em batalha nos desertos e nas cidades do Iraque. 'Senti-me como se estivesse num jogo. Nem sequer me desconcertou responder aos disparos. Foi instinto natural. Boom! Boom! Boom! Boom!', contou ao Washington Post o sargento Sinque Swales, recordadando a primeira vez que disparou contra um inimigo, em Mosul". Esta descrição poderia ser entendida apenas como resultado de um treino militar, até porque os jogos de guerra foram incorporados na preparação dos soldados. Mas um estudo recente do Exército dos EUA deixa claro que para estes homens as teclas ‘Ctrl+Alt+Del’ são tão básicas como o ‘ABC’. (...)Mais do que soldados bem treinados, são homens que vivem em função da guerra, passando os seus tempos livres a ver filmes sobre o tema ou a jogar em PlayStations e Xboxes que carregam para o Iraque como bagagem pessoal. O que fazem para se divertir só ajuda a tornar mais natural o acto de premir o gatilho e tirar a vida a um inimigo. Sem falhas de pontaria ou qualquer remorso na consciência.Será exagero dizer que a sua naturalidade é semelhante às dos jovens portugueses que mataram um travesti à pancada? Não sei. Mas há, talvez, uma grande diferença. Os soldados foram criados com jogos que ensinam a disparar sem questionar, enquanto os jovens cresceram a aprender duras lições de vida. Provavelmente do mesmo género da que tentaram dar ao sem abrigo que mataram à pancada! »Lídia Bulcão, in Jornal dos Açores, de 27/02/2006

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