A «sociedade civil» e os seus equívocos

07-11-2013
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A «sociedade civil» e os seus equívocos por Jorge Cordeiro [*]

A chamada «sociedade civil», tenha ela expressão no «Compromisso Portugal» ou na «Sedes» , não sossega nem dá sossego. É tempo dela e do seu trasbordante activismo.

Mediatizados encontros de reflexão e manifestos recheados de patrióticos conselhos preenchem um dos lados da vida do país. Assim é, sempre que em tempos de incerteza sobre o rumo político, de pressentido perigo para os interesses instalados ou recomendável necessidade de sinalizar o desejado caminho para a política económica. E é tempo deles, os que dão a cara pela dita «sociedade civil», distintos homens da finança, empresários de sucesso, figuras dos principais grupos económicos, gestores privados e felizes herdeiros da propriedade pública. Tudo gente bem avisada, de apurado sentido de sobrevivência, sempre prontos a transitar de armas e bagagens de um para outro dos partidos dominantes do sistema. E patriotas convictos acima de qualquer suspeita (que uma quantas deslocalizações, exportações de lucros ou fuga ao fisco de modo algum mancham) capazes de interromper por momentos a exigente tarefa de tratar da sua vida e negócios para, com comovente desinteresse, darem indicações precisas sobre as políticas económicas e financeiras que ao País interessam.

Porque a azáfama tem sido grande, e o deslumbramento perante a coisa não menor, justifica-se desfazer, ainda que sujeitos à acusação de heresia, três equívocos que acompanham esta «desinteressada» e «genuína» expressão vinda das profundezas do nosso viver colectivo.

O primeiro deles quanto ao alegado caracter inovador e sinal de modernidade que o emergir da coisa representaria. Não, a «sociedade civil» que agora se agita não constitui qualquer expressão inovadora nem uma criação lusitana ditada pelos tempos de crise. É coisa velha de quase dois séculos. A «sociedade civil», tal como Marx evidenciou, só se desenvolve com a emergência da burguesia e é dela expressão, tendo a origem do termo marcado presença na polémica ideológica entre marxistas e não marxistas desde o fim do século XIX. O conceito de «sociedade civil», e o termo que o acompanha, corresponde a uma relação material entre indivíduos numa determinada etapa de desenvolvimento das forças produtivas e sobretudo, como afirmava Marx, ao facto de a burguesia «já como uma classe, e não só uma ordem social» ter sido «obrigada a dar ao seu interesse médio uma forma geral».

O CADERNO DE ENCARGOS DA «SOCIEDADE CIVIL»

O segundo equívoco é o que resulta de se querer fazer crer que a chamada «sociedade civil» seria algo exterior ao poder, distinto do Estado e dele completamente separado. Bastaria olhar para a fusão crescente do poder político e do poder económico e para a dependência daquele por este nas sociedades capitalistas, para dispensar de demonstração o que Marx revelou com notável clareza: que o Estado político em capitalismo é «expressão oficial da sociedade civil» e que «o Estado é a forma em que os indivíduos de uma classe dominante fazem valer os seus interesses comuns e se condensa toda a “sociedade civil” de uma época». Ouvindo e lendo as vozes forte da «coisa», a começar pelo denominado «Compromisso Portugal», bem se percebem os objectivos e o caderno de encargos apresentado: a modesta pretensão de assumirem «um papel preponderante nas escolhas futuras para o País» e o livro de receitas para um «Estado-minímo» em direitos, socialmente falando, e um Estado forte e activo na promoção das políticas destinadas a assegurar a apropriação privada do bem público e a acelerar a concentração do capital.

O terceiro, e último equívoco, é o que é alimentado pela tentativa de identificar a «sociedade civil» com os interesses gerais dos trabalhadores e da população, um género de «procurador» desses interesses gerais face a um Estado, vendido como entidade asséptica e neutral. Um equívoco testemunhado pela natureza dos interesses e das políticas reclamadas pelos representantes daquela «sociedade civil», claramente centradas na exigência de aprofundamento das orientações neoliberais e dos critérios monetaristas do Pacto de Estabilidade, de prosseguimento das privatizações e de desmantelamento das funções sociais do Estados, de flexibilização da legislação laboral e de redução dos direitos dos trabalhadores.

Não de fora, mas bem no centro das decisões e da condução das políticas nacionais, as mais das vezes sentada à mesa dos Conselhos de Ministros, a «sociedade civil» navega no mar do bloco central de interesses umas vezes a bordo do PSD outras do PS. Sempre ciosa por se apresentar como apartidária. Afirmando-se como equidistante entre aqueles dois partidos, observando com tranquilidade as proposta de uns e outros, enaltecendo o sentido patriótico das opções neoliberais de uns e outros, sublinhando a semelhança que os une em questões essenciais. Eis a «sociedade civil» no seu melhor e o País no seu pior.

10/Mar/05

[*] Da Comissão Política do PCP.

O original encontra-se em http://www.avante.pt/noticia.asp?id=8758&area=23 .

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

A «sociedade civil» e os seus equívocos por Jorge Cordeiro [*]

A chamada «sociedade civil», tenha ela expressão no «Compromisso Portugal» ou na «Sedes» , não sossega nem dá sossego. É tempo dela e do seu trasbordante activismo.

Mediatizados encontros de reflexão e manifestos recheados de patrióticos conselhos preenchem um dos lados da vida do país. Assim é, sempre que em tempos de incerteza sobre o rumo político, de pressentido perigo para os interesses instalados ou recomendável necessidade de sinalizar o desejado caminho para a política económica. E é tempo deles, os que dão a cara pela dita «sociedade civil», distintos homens da finança, empresários de sucesso, figuras dos principais grupos económicos, gestores privados e felizes herdeiros da propriedade pública. Tudo gente bem avisada, de apurado sentido de sobrevivência, sempre prontos a transitar de armas e bagagens de um para outro dos partidos dominantes do sistema. E patriotas convictos acima de qualquer suspeita (que uma quantas deslocalizações, exportações de lucros ou fuga ao fisco de modo algum mancham) capazes de interromper por momentos a exigente tarefa de tratar da sua vida e negócios para, com comovente desinteresse, darem indicações precisas sobre as políticas económicas e financeiras que ao País interessam.

Porque a azáfama tem sido grande, e o deslumbramento perante a coisa não menor, justifica-se desfazer, ainda que sujeitos à acusação de heresia, três equívocos que acompanham esta «desinteressada» e «genuína» expressão vinda das profundezas do nosso viver colectivo.

O primeiro deles quanto ao alegado caracter inovador e sinal de modernidade que o emergir da coisa representaria. Não, a «sociedade civil» que agora se agita não constitui qualquer expressão inovadora nem uma criação lusitana ditada pelos tempos de crise. É coisa velha de quase dois séculos. A «sociedade civil», tal como Marx evidenciou, só se desenvolve com a emergência da burguesia e é dela expressão, tendo a origem do termo marcado presença na polémica ideológica entre marxistas e não marxistas desde o fim do século XIX. O conceito de «sociedade civil», e o termo que o acompanha, corresponde a uma relação material entre indivíduos numa determinada etapa de desenvolvimento das forças produtivas e sobretudo, como afirmava Marx, ao facto de a burguesia «já como uma classe, e não só uma ordem social» ter sido «obrigada a dar ao seu interesse médio uma forma geral».

O CADERNO DE ENCARGOS DA «SOCIEDADE CIVIL»

O segundo equívoco é o que resulta de se querer fazer crer que a chamada «sociedade civil» seria algo exterior ao poder, distinto do Estado e dele completamente separado. Bastaria olhar para a fusão crescente do poder político e do poder económico e para a dependência daquele por este nas sociedades capitalistas, para dispensar de demonstração o que Marx revelou com notável clareza: que o Estado político em capitalismo é «expressão oficial da sociedade civil» e que «o Estado é a forma em que os indivíduos de uma classe dominante fazem valer os seus interesses comuns e se condensa toda a “sociedade civil” de uma época». Ouvindo e lendo as vozes forte da «coisa», a começar pelo denominado «Compromisso Portugal», bem se percebem os objectivos e o caderno de encargos apresentado: a modesta pretensão de assumirem «um papel preponderante nas escolhas futuras para o País» e o livro de receitas para um «Estado-minímo» em direitos, socialmente falando, e um Estado forte e activo na promoção das políticas destinadas a assegurar a apropriação privada do bem público e a acelerar a concentração do capital.

O terceiro, e último equívoco, é o que é alimentado pela tentativa de identificar a «sociedade civil» com os interesses gerais dos trabalhadores e da população, um género de «procurador» desses interesses gerais face a um Estado, vendido como entidade asséptica e neutral. Um equívoco testemunhado pela natureza dos interesses e das políticas reclamadas pelos representantes daquela «sociedade civil», claramente centradas na exigência de aprofundamento das orientações neoliberais e dos critérios monetaristas do Pacto de Estabilidade, de prosseguimento das privatizações e de desmantelamento das funções sociais do Estados, de flexibilização da legislação laboral e de redução dos direitos dos trabalhadores.

Não de fora, mas bem no centro das decisões e da condução das políticas nacionais, as mais das vezes sentada à mesa dos Conselhos de Ministros, a «sociedade civil» navega no mar do bloco central de interesses umas vezes a bordo do PSD outras do PS. Sempre ciosa por se apresentar como apartidária. Afirmando-se como equidistante entre aqueles dois partidos, observando com tranquilidade as proposta de uns e outros, enaltecendo o sentido patriótico das opções neoliberais de uns e outros, sublinhando a semelhança que os une em questões essenciais. Eis a «sociedade civil» no seu melhor e o País no seu pior.

10/Mar/05

[*] Da Comissão Política do PCP.

O original encontra-se em http://www.avante.pt/noticia.asp?id=8758&area=23 .

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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