Turismo da Ilha Terceira, Açores

27-09-2014
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Texto de Joel Neto: GRANDE REPORTAGEM 152, 6 de Dezembro de 2003

" No início dos anos 80, um grupo de loucos sobrepôs-se ao voluntarismo do povo para fazer da reconstrução de Angra do Heroísmo mais do que uma missão heróica - uma missão sublime. A cidade comemora amanhã duas décadas sobre a classificação como Património Mundial. Três anos antes, a 1 de Janeiro de 1980, fora arrasada por um dos maiores terramotos alguma vez registados em Portugal.

Centro de Angra e Monte Brasil vistos da Memória

No Verão 1980, cansado das correrias e das pessoas que todas as manhãs faziam fila junto ao gabinete de sete secretárias onde despachava, Jorge Forjaz, historiador em stand-by e Director Regional dos Assuntos Culturais, decidiu tirar um dia para si próprio. Um dia só - e então voltaria às correrias e às pessoas e aos monumentos e a tudo aquilo que o fazia andar de jipe, botas da tropa e camuflado, de manhã à noite, durante a semana e aos domingos, entre resgates patrimoniais, requerimentos burocráticos e reuniões plenárias na Polícia, nos Bombeiros, nas Juntas de Freguesia. Naquele dia, foi à Silveira. A Silveira é uma pequena praia de rocha junto a Angra do Heroísmo, muito popular desde que o mundo é mundo. Orgulhoso do seu fôlego de nadador, erguendo os braços e inspirando como quem retempera energias, saltou para a água e nadou - nadou junto ao fundo e enquanto conseguiu aguentar, a água fresca percorrendo-lhe o corpo e preparando-o para um recomeço. Então, perdeu o ar e voltou à superfície. Voltou depressa, como se saltasse do interior da água, o cabelo sacudido com vigor, em sinal de força e de vida. E, ao abrir os olhos, viu outro banhista. Estava ali à sua frente, mergulhado até ao pescoço, esperando impaciente que voltasse do fundo do mar. «Ainda bem que o encontro!», exclamou. «Temos uma série de assuntos para tratar.»

Durante quase cinco anos, foram assim as vidas de Jorge Forjaz, Rui Andrade ou qualquer um dos outros técnicos e colaboradores do processo de reconstrução das igrejas, monumentos e prédios históricos de Angra do Heroísmo: uma missão permanente. José Guilherme Reis Leite (secretário regional da Educação e Cultura), Álvaro Monjardino (ex-ministro dos Assuntos Parlamentares), Rui Mesquita (presidente da Câmara Municipal), Manuel Baptista de Lima (presidente do Instituto Histórico da Ilha Terceira), Francisco Reis Maduro-Dias (historiador e arqueólogo ligado ao Museu de Angra) ou Luís Durão (arquitecto da Direcção Regional dos Assuntos Culturais) - cada um com um contributo diferente, foram eles quem conseguiu, em menos de quatro anos, transformar uma cidade destruída por um terramoto no primeiro bem português classificado pela UNESCO como Património Mundial. Mota Amaral, que tutelou o processo enquanto presidente do Governo Regional (1976 e 1995), chama-lhe «uma obra notável, de dimensões épicas». José Correia da Cunha, que ficara encarregado de coordenar a reconstrução dos edifícios privados ou sem valor histórico, recorda-o como «um trabalho extraordinário», a que era difícil dar valor na altura.

«Era como se eles funcionassem a cores e o resto de nós a preto e branco. Como se vivessem numa frequência diferente da nossa. Porque a nossa prioridade eram as pessoas, as casas, as ruas. A deles era resgatar azulejos, salvar cantarias, apanhar pedacinhos de cal caídos no chão. E só hoje podemos aperceber-nos verdadeiramente da importância que isso teve», acrescenta Correia da Cunha. Durante a meia década que sucedeu ao brutal sismo de 1 de Janeiro de 1980, um dos maiores alguma vez registados em Portugal, Angra do Heroísmo foi sobretudo um grande estaleiro de obras, com entulhos empurrados contra as paredes, edifícios cercados de cabos de aço e novos taipais brotando diariamente do solo. Mas, para aqueles homens da «frequência diferente», o objectivo era claro: salvar o máximo possível a cada dia que passasse. Talhas douradas, brasões, telas, cochins e castiçais, mas também muros derrubados, chaminés ameaçadas, pedaços de alvenaria - tudo era resgatado, catalogado, escorado e/ou armazenado, consoante as necessidades. Chamavam-lhes «loucos», e muitas vezes o trabalho era feito contra a própria vontade dos proprietários, com quem chegava a haver discussões aos gritos. Mas eles iam a todas, e em muitos casos levavam a sua avante. «Havia falta de sensibilidade da generalidade da população para o património. Até porque se perdera a tradição dos mestres-canteiros, capazes de desenhar e fazer com bom-gosto pela sua própria mão. Mas a verdade é que era intelectualmente arriscado dizer que se andava a salvar o património cultural, quando o que as pessoas queriam era ver as suas casas de pé», recorda Jorge Forjaz, hoje com 59 anos. «Quando alguém reclamava que não era possível salvar isto ou reconstruir aquilo, eu só dizia: 'Os nossos antepassados tinham cordas e escadas e fizeram-no!' E as coisas faziam-se.»

Forjaz escrevia para os jornais, ia a discussões públicas, apresentava programas na televisão. Os Açores e o Património, que a RTP-Açores transmitiu durante anos a fio, ficou como um marco: exibia uma reportagem semanal junto de pedreiros e serventes, mostrando como se fazia isto ou aquilo - e era Forjaz, que não tinha formação em engenharia e de início nem sabia ler uma planta, quem funcionava como pivot. Outros, como o engenheiro civil Rui Andrade, nomeado a certa altura chefe do Gabinete de Fiscalização da Reconstrução dos Monumentos e das Igrejas, trabalhavam mais na sombra, em silêncio. Mas ainda hoje estão gratos pela oportunidade. «Foi um privilégio. Pude colocar o meu trabalho ao serviço da comunidade e aprendi muito, inclusive sobre os valores da solidariedade e da camaradagem», diz Andrade, actualmente com 55 anos. Nenhum deles tinha vida familiar, não havia horas para chegar a casa, o gabinete de despacho era, muitas vezes, onde quer que estivesse a pasta e alguém pedisse um subsídio - a mesa de um restaurante, o balcão de um café, a própria rua. «Éramos um exército. Cada um de nós era ao mesmo tempo general, capitão, sargento e soldado. E o nosso campo de batalha era a ilha Terceira, sobretudo Angra do Heroísmo», conta Jorge Forjaz

Fundada a 21 de Agosto de 1534, feita sede de bispado nesse mesmo ano e decretada duas vezes capital do Reino (1580 e 1828), Angra albergava então 500 anos de cultura europeia, asiática, africana e sul-americana. Gaspar Frutuoso, no século XVI, chamara-lhe «universal escala do mar poente», e a verdade é que foi sempre possível encontrar ali, ao longo dos séculos, um pouco do ouro de São Jorge da Mina ou do marfim de Sofala, mesmo da fruta da Bahia ou das especiarias de Goa. Em 1980, o esplendor da cidade era já uma coisa do passado - o século XIX e a navegação a vapor retiraram-na das rotas internacionais - mas durante os 300 anos anteriores (sobretudo os dois primeiros) aquele que era o principal porto dos Açores foi um ponto de escala obrigatória para as Descobertas e a exploração colonial, uma autêntica placa giratória entre a Europa, o Oriente e as Américas - a posterior instalação de uma base americana na freguesia das Lajes, onde ainda este ano decorreu a Cimeira Atlântica com Bush, Blair e Aznar, é prova dessa importância estratégica. E, 450 anos depois da fundação, as marcas dessa história continuavam indeléveis nas ruas da cidade: tanto no desenho renascentista, feito a régua e esquadro por Álvaro Martins Homem, navegador que conhecia os ventos e lhe deu aquele aspecto quadrilátero, com ruas paralelas e perpendiculares ao mar, como na malha urbana, feita de edifícios com uma traça muito própria, de cantarias lisas ou emolduradas, sacadas de madeira com rótulas e aventais nas janelas de peito. A Angra, compararam-na muitas vezes com as mais diversas cidades brasileiras, mas as tentativas pecaram sempre por forçadas.

Só que, a 1 de Janeiro de 1980, não foi apenas Angra do Heroísmo o que foi colocado em causa. Nas três ilhas atingidas (Terceira, São Jorge e Graciosa) passou a jogar-se não só a sobrevivência das povoações e o destino das pessoas, mas também a imagem e o futuro da jovem Autonomia dos Açores, fundada escassos quatro anos antes, em 1976. Ser capaz de reconstruir Angra com respeito pelo passado tornou-se quase uma obsessão para quem conhecia a importância da História. Mas, depois de haver quem sugerisse que simplesmente se arrasasse a cidade e se construísse uma nova noutro local - ou quando muito, numa solução de compromisso, que se mantivessem as fachadas e se fizessem casas novas por detrás das antigas - a simples reedificação da cidade, com maior ou menor tributo ao que ela um dia representara, era em si um desafio. «A autonomia regional dava os primeiros passos e a transferência de poderes decorria a conta-gotas, rodeada de receios. Reerguer Angra foi como que as nossas esporas de ouro. Demonstrámos que estávamos preparados para enfrentar problemas com dimensões históricas, e isso trouxe um novo reconhecimento à autonomização do governo do arquipélago», sublinha Mota Amaral. Para não correr riscos e ainda assim tentar um brilharete, o Executivo regional constituiu o Gabinete de Apoio à Reconstrução (GAR) para tudo o que fosse processo comum e delegou na Direcção Regional dos Assuntos Culturais (DRAC), dependente da Secretaria Regional de Educação e Cultura (SREC), a reconstrução de igrejas, palácios, solares, fortificações e edifícios seculares - todos os exemplos de arquitectura religiosa, militar e civil que transformavam Angra numa cidade única. Mas a verdade é que engenharia civil e cultura nunca se desligaram uma da outra: quando a Câmara apresentou a medalha comemorativa dos 450 anos da cidade, em 1984, o verso trazia cunhados os módulos metálicos do Cerrado do Bailão, onde, durante vários anos, estiveram alojadas centenas de pessoas à espera de habitação social.

A agilização dos processos não foi imediata. Até porque, para muitos os que mais tarde vieram a representar papéis importantes nas duas missões, o terramoto foi também uma catástrofe pessoal. O presidente da Câmara Rui Mesquita, por exemplo, havia sido empossado escassas 24 horas antes do sismo - e os primeiros tempos de mandato foram mais uma espécie de despertar para a catástrofe que o rodeava do que propriamente um arregaçar de mangas para a combater. «Só caí em mim ao fim de doze dias. E as minhas prioridades eram a água, a luz e que o Rádio Clube de Angra estivesse a funcionar para dar informações às pessoas», conta, agora com 62 anos. Francisco Reis Maduro-Dias, que em 1987 viria a instalar e chefiar o primeiro Gabinete da Zona Classificada de Angra, casara-se no Porto pelos dias do sismo e, ao regressar a Angra, encontrou destruída a casa que passara dois anos a restaurar com as próprias mãos. «Não tive lua-de-mel. Em sete anos, vivi em sete casas e dormi em nove camas diferentes», conta hoje, aos 50 anos. Mas a vontade de resistir nunca desapareceu. O poeta Santos Barros, morto três anos depois, sintetizou-a em dois versos: «Não perecer*s, ó destruída! Havemos de reerguer-te, casa a casa...» E a verdade é que havia por onde começar. As paredes das igrejas eram pesadas, mas as coberturas eram leves - e, ao contrário do que aconteceu em Lisboa durante o terramoto de 1755 (7,9 na escala de Richter), em que centenas de pessoas pereceram sob os tectos dos templos, alguns dos edifícios importantes não chegaram a aluir por completo. Mais: a Sé Catedral colapsou bastante tempo depois e ainda foi alvo de um violento incêndio, mas salvaram-se dois arcazes em jacarandá e uma moldura do tecto a partir da qual foi possível reconstituir a cobertura toda.

Depois de uma fase inicial em que os proprietários das casas classificadas comuns começaram a colocá-los de pé sem controlo nenhum - ao fim de dez dias já havia obras por conta própria -, o trabalho foi ganhando método. Reforçada a DRAC, que no início tinha apenas um arquitecto e um desenhador, a abordagem da destruição passou a seguir um critério de etapas sucessivas: limpeza do edifício, escorações e protecções, recolha e armazenamento dos objectos de valor, levantamentos detalhados, medições, fotografias, estudos de pormenor, constituição e execução de projectos. Nem todos os cidadãos aderiram, mas aqueles que o fizeram passaram a dispor de legislação especial, prevendo financiamentos a fundo perdido para casas classificadas (50%), associações culturais e desportivas (90%), impérios do Espírito Santo (90%), igrejas da Diocese (90%) e capelas e ermidas privadas (50%). As regras tornaram-se apertadíssimas, inclusive para as zonas rurais, mas a possibilidade de subsídios fez das pessoas reféns do processo. «Foi isso que acabou com muitas das resistências. No limite, os proprietários podiam mesmo vir a ser expropriados das suas casas, através de mecanismos previstos na lei», recorda José Guilherme Reis Leite, 60 anos, então secretário Regional da Educação e Cultura e um dos principais negociadores da lei. É nesta altura que o gabinete de Jorge Forjaz, que no início partilhava uma única sala com outros sete serviços da SREC - as instalações da Secretaria ruíram e a máquina burocrática instalou-se toda num pequeno prédio, antiga sede da PIDE -, deixa de ter apenas uma fila de pessoas à porta: dezenas e dezenas de pessoas passaram a amontoar-se diariamente junto à DRAC, à espera da aprovação de projectos e do desbloqueamento de verbas.

O trabalho ganhou então ritmo de cruzeiro. Uma recolha fotográfica iniciada ainda antes do terramoto permitiu a catalogação por edifício (e não por rua) numa escala 1/200, a DRAC passou a reunir todas as quintas-feiras com um representante da Diocese - o cónego Gil Mendonça - para discutir a reconstrução dos templos, os monumentos não religiosos e as áreas de intervenção urbana foram devidamente priorizados e chegou-se mesmo a utilizar técnicas absolutamente inovadoras de reedificação, como foi o caso da recolocação de uma parede do Palácio dos Capitães Generais com um macaco ainda em protótipo, sem necessidade de separar as cantarias umas das outras. O relógio da Sé continuou nas 15:42, a hora do sismo, até à reinauguração do espaço em 1984 - mas, lentamente, os monumentos foram renascendo: as igrejas da Misericórdia e da Conceição, o edifício da Câmara Municipal, o obelisco a D. Pedro IV, os solares e os conventos, as igrejas e as capelas, os fortes e até um hospital militar de valor histórico incalculável. A última grande inauguração foi em 1997, quando reabriu ao público o Museu de Angra do Heroísmo e a Igreja de São Francisco, ao cimo da rua homónima. As igrejas das Concepcionistas e do Livramento ainda estão em ruínas, mas têm o início da reconstrução previsto para breve.

Foi pouco depois do início deste processo que nasceu a possibilidade de candidatar a cidade à lista do Património da Humanidade, também chamado Património Mundial. A UNESCO enviara uma comissão à Terceira entre 23 e 31 de Janeiro de 1980, para avaliar a destruição, mas só em 1981, quando Álvaro Monjardino passou por Paris, o desafio lhe foi lançado a sério. «Disseram-me: 'Então Portugal assina uma Convenção e dois anos depois ainda não apresentou nenhum projecto?' E eu pensei: 'Está aqui uma oportunidade de sermos pioneiros.' Trouxe a ideia, apresentei-a ao Baptista de Lima e, dali a pouco, o Instituto Histórico da Ilha Terceira estava a trabalhar no dossier, com o conhecimento da DRAC», recorda Monjardino, hoje com 73 anos, naquela altura um ex-ministro de Mota Pinto regressado à vida de empresário e advogado. O processo, impulsionado sobretudo pela força e pela experiência de Baptista de Lima, entretanto falecido, chegou a ser rocambolesco: Angra entregou o projecto ao Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) - a quem competia registá-lo na UNESCO - em Novembro de 1981, para ser traduzido e entregue até ao final do ano, mas só em finais de Janeiro o documento chegou a Grainha do Vale, embaixador em Paris, que teve de proceder pessoalmente à tradução, com a ajuda das secretárias. Foi por isso que, sendo a primeira candidata e acabando por ser também o primeiro bem português classificado, Angra teve de partilhar o seu dia de glória, já no final de 1983, com o Mosteiro dos Jerónimos/Torre de Belém (Lisboa), os mosteiros de Alcobaça e da Batalha e o Convento de Cristo (Tomar), entretanto também indicados pelo MNE. Mas isso também lhe proporcionou tempo para recorrer ao dossier de La Valletta (Malta) e corrigir defeitos no portfolio fotográfico e na fundamentação da proposta, assim como para fazer lobbying e reunir apoios tão diversos como os da Secretaria de Estado do Vaticano, do senador americano Edward Kennedy ou do presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, Thomas P. O'Neill. No final da reunião decisiva, que decorreu em Villa Medicea de Poggio a Caiano (Florença) entre 5 e 9 de Dezembro, Portugal acabou elogiado pela coerência dos seus projectos, todos englobados numa lógica expansionista. Angra, classificada no dia 7, entrou pelos critérios IV e VI: a sua importância como escala de rotas marítimas e o seu papel na aproximação das civilizações. «Angra conservou, mesmo depois do terramoto de 1 de Janeiro de 1980, a melhor parte do seu património monumental e um conjunto urbano homogéneo», dizia a declaração.

No momento em que regressava à ilha, contou mais tarde, o arquitecto Luís Durão chegou a sonhar com uma recepção calorosa, do tipo «vitória na Taça dos Campeões Europeus». Mas nada - apenas um homem lhe deu uma palmada nas costas e lhe disparou: «Então, lá te classificaram a cidade...» Jorge Forjaz, que havia levantado sozinho uma pedra demasiado grande, estava internado no Hospital da Cruz Vermelha, em Lisboa, a convalescer de uma operação a uma hérnia discal. O próprio Rui Andrade, ao saber da notícia, encolheu os ombros e continuou o trabalho. «A obra que vínhamos fazendo valia por si própria, com ou sem classificação. Teríamos sempre motivos para estarmos orgulhosos. A Angra actual é também o legado de uma geração», diz. «Sinto-me um privilegiado», acrescenta Rui Mesquita, olhando para trás. Lentamente, Angra do Heroísmo voltava então a ser a cidade descrita num poema memorável de Marcolino Candeias, curiosamente hoje o presidente do Gabinete da Zona Classificada, para onde foi depois de chefiar a DRAC: «Angra oh minha cidadezinha de bolso querida/minha putefiazinha maquilhada de ternura/oh rola de papo vaidoso da Memória de D. Pedro IV/do Cais das Pipas para as naus das Índias de/D. Afonso VI babando-se de tolo pelos Canos Verdes/Oh minha tolinha inchada de orgulho do aqui-j*-foi-só-Portugal (...).» Uma cidade às vezes pequenina e mesquinha, sim, mas noutras grande e orgulhosa do seu passado. «As pessoas deram-se conta da envolvência urbana ao chorarem as pedras deslocadas ou caídas. E pela primeira vez aperceberam-se da importância que elas tinham na sua vida», escreveu então Luís Durão, elogiando a participação popular. «Angra do Heroísmo era de uma beleza tal que não podia nunca morrer. A alma da cidade clamava pelo seu corpo. E hoje é de novo uma pequena jóia», sintetiza Mota Amaral. Jorge Forjaz, recém-investido conselheiro cultural da embaixada de Portugal em Rabat (Marrocos), foi condecorado no 10 de Junho pelo Presidente da República como Grande Oficial da Ordem do Mérito. «Estou certo de que foi por causa do trabalho após o terramoto», reflecte.

Bem vistas as coisas, o sismo tivera efeitos positivos. A reconstrução foi elogiada nos mais diversos jornais nacionais e internacionais - o semanário Expresso considerou-a recentemente a sexta de 30 razões para estarmos orgulhosos de Portugal. Tudo o que é património está devidamente inventariado. As ruas retomaram a antiga toponímia. O betão é talvez excessivo, mas as casas são seguras e têm agora quarto-de-banho. Apesar dos telhados cor-de-laranja, sinal de construção recente, é bonita e ordenada quando vista do promontório natural do Monte Brasil. As igrejas destacam-se na paisagem, nos seus variadíssimos estilos arquitectónicos. E, sobretudo, existe vida. «A maior parte das cidades Património Mundial não têm ninguém lá dentro. Aqui, embora não habite muita gente, circulam mais de 15 mil pessoas por dia. Vivem dentro do próprio monumento», sublinha Marcolino Candeias. O Centro de Restauro, inaugurado em 1980, continua o seu trabalho: só recuperou ainda um terço das 150 telas recebidas após o sismo, e muitas das restantes andarão três ou quatro anos a correr as salas brancas, entre sucessivas etapas de recuperação. O Gabinete Zona Classificada viveu momentos de frenesi quando Maduro-Dias enfrentou o então presidente da Câmara, Joaquim Ponte, mas a passagem de Rui Andrade pela presidência da autarquia (1995-97) pacificou as relações. E, hoje, um pedido de licenciamento entra na Câmara, segue para o Gabinete, é apreciado por uma troika que inclui um representante de cada um daqueles dois órgãos e outro da Direcção Regional do Ordenamento e volta à Câmara para ser despachado - quase sempre sem dor. A gestão modelar do estatuto de Património Mundial permitiu mesmo à cidade albergar, em 1988, um congresso internacional da UNESCO e do ICOMOS, a ONG associada para a área das classificações. «Conservar uma cidade não é como conservar um só monumento. Dá muito mais trabalho. Mas a verdade é que, hoje, são os cidadãos os primeiros a preservar isso. No início, o Património Mundial parecia-lhes um empecilho. Hoje, são eles próprio a contestar a instalação de semáforos, de candeeiros novos, mesmo da marina. Não há os projectos abomináveis do passado. Só é pena que o Governo da República tenha despertado tão tarde para isto e que as isenções fiscais, por exemplo, tenham vindo tão tarde», destaca José Guilherme Reis Leite. Só em 2001, com a aprovação da nova Lei do Património (lei 107/01) é que Angra passou a ser Património Nacional, quando há quase 20 anos era Património Mundial e Regional.

O último impulso ao processo foi dado por Sérgio Ávila, eleito para a presidência da Câmara em 1997, quando tinha apenas 28 anos. Com a obsessão de que era preciso «voltar a cidade para o mar», o então menino-prodígio do PS-Açores dividiu muita gente durante muitos anos, mas é hoje capaz de receber os mais rasgados elogios de alguns dos «refundadores» da cidade, todos da área do PSD. «Ao nível municipal, a única pessoa que soube agarrar nisto com força foi o Sérgio. Só ele e mais ninguém», diz Álvaro Monjardino, que foi presidente da Assembleia Regional aos primeiros mandatos de Mota Amaral. Numa cidade em crescimento para fora dos seus limites mas a perder vida interior, a Câmara Municipal iniciou um longo processo de requalificação urbana que só estará concluído em 2008-2010, com a transformação da zona industrial e de combustíveis em parques habitacionais e de lazer. «A lógica é a de que Angra seja cada vez mais uma cidade de serviços e a Praia da Vitória uma cidade de indústria. E há três coisas essenciais que a classificação nos permite: turismo de qualidade, regras de preservação e financiamentos suplementares», diz Sérgio Ávila. Ao longo dos anos, e recorrendo parcialmente ao programa Polis, foram construídas rotundas, melhoradas as iluminações, instaladas esplanadas, lançados os mais diversos festivais (jazz, rock, cinema, folclore, teatro) e, recentemente, importados mais de 80 mil metros cúbicos de areia para reforçar uma pequena praia no centro da baía. O projecto continua com a consolidação das encostas, a requalificação da marginal, a transformação do Porto de Pipas em centro de desportos, a criação de uma zona de restauração e bares do tipo «Docas de Lisboa» (a uma escala menor), a inauguração de uma pousada da Enatur no interior do Castelo de São Sebastião e a instalação de uma outra zona verde e de lazer bem no centro da cidade, entre o Jardim Público e a Miragaia. «A única regra é esta: se a cidade tiver de crescer mais, será para fora da Circular Interna. Cá dentro, só requalificações. A próxima é a conclusão da substituição das habitações precárias do Bairro de São João de Deus», acrescenta Ávila.

A construção da marina, aberta aos barcos há dois anos, desencadeou os mais diversos tipos de polémicas. Foi soterrada uma antiga porta de entrada na cidade, foram relocalizados vários dos inúmeros navios que se encontram naufragados pela baía - e ao longo de muito tempo foi divulgada e esgrimida a ameaça de expulsão do nome de Angra do Heroísmo da lista de Património Mundial. Mas, em 1999, o então Director Regional de Cultura, Luiz Fagundes Duarte, contactou directamente a UNESCO e o ICOMOS e deu-lhes a conhecer todo o projecto da cidade, marina incluída, que foi aprovado por parecer. Ainda há quem não goste. «Antigamente as pessoas tinham de pensar na vida e debruçavam-se naquele muro junto ao mar, a consultar a baía. Era o seu oráculo. E isso acabou», diz Marcolino Candeias. Mas a Câmara tem resposta: «Quando se falava no Porto de Angra, que origina a classificação, falava-se na baía toda, nesta enseada protegida pelo Monte Brasil. E, se essa baía perdeu importância, sobretudo por força da decadência das suas funções portuárias, tem de recuperá-la de outra forma, de acordo com as necessidades do século XXI. O resto, sobretudo as ameaças de perda do estatuto de Património Mundial, nunca passou de um bluff», diz Sérgio Ávila. E a cidade, hoje no centro de um concelho com 19 freguesias e 36 mil habitantes, prossegue o seu caminho: inaugurou parques de estacionamento nas extremidades e colocou carreiras grátis à disposição dos cidadãos (as «Serginhas»), criou um Centro Cultural e de Congressos, tem dois novos hotéis de harmonia paisagística reconhecida e acaba de comprar o edifício da Caixa Geral de Depósitos, um mamarracho sem escola que há vinte anos choca quem chega à Praça Velha pela primeira vez. «Entregámos a obra ao arquitecto Miguel Cunha. Não queremos nem mamarrachos nem pastiches do passado. Queremos arquitectura do nosso tempo. Todas as gerações têm a obrigação de deixar a sua marca nesta cidade», diz Sérgio Ávila. «Penso que, hoje, está provado que Património Mundial é compaginável com progresso», sintetiza Jorge Forjaz. A passagem dos vinte anos sobre a classificação foi festejada ao longo do ano, mas modestamente, quase em silêncio. O principal já estava feito.

COMO RENASCER DOS ESCOMBROS

A 15 de Fevereiro de 1980, um mês e meio depois de a terra tremer, o Governo Regional dos Açores fez um primeiro grande relatório da tragédia: três ilhas atingidas (Terceira, São Jorge e Graciosa), 71 mortos, 400 feridos e 21 296 desalojados. Mas o documento revelava também que nessas mesmas seis semanas, e só na Terceira, haviam sido montadas 415 tendas em diversos aldeamentos improvisados, distribuídos dois mil quilos de lacticínios (manteiga e queijo) e 120 mil unidades de alimentos básicos (pão e leite) e entregues aos sinistrados 1550 toneladas de cimento, 63 toneladas de ferro, 750 metros cúbicos de areia, 950 metros cúbicos de brita, 2800 barrotes e 2750 dúzias de tábuas de forro. Na altura do relatório já havia casas em avançado estado de reconstrução - e então ainda não havia projectos nem empreiteiros, era o povo a trabalhar com as próprias mãos. A frase lapidar de Mota Amaral, proferida escassos dois dias depois da tragédia, produzira efeito. Os açorianos haviam de facto «enxugado as lágrimas e arregaçado as mangas», como ele pedira.

Para todos os efeitos, o primeiro herói da reconstrução das três ilhas, e do concelho de Angra do Heroísmo em particular, foi o próprio povo. Numa comunicação feita três anos mais tarde, durante uma Semana de Estudos promovida pelo Instituto Açoriano de Cultura, o advogado e dramaturgo José Orlando Bretão recorreu a Bertold Brecht para fazer-lhe essa homenagem. «Quem construiu Tebas, a das sete portas?/Nos livros vem o nome dos reis./Mas foram os reis que transportaram as pedras?», citou, recorrendo a Perguntas A Um Operário Letrado. Na verdade, as ajudas vieram de todo o lado. Instituições como a Cruz Vermelha, a Cáritas, a Fundação Espírito Santo, a PSP, o Regimento de Infantaria, a Base Aérea - todas elas acorreram ao que puderam. Países como os Estados Unidos, o Canadá, o Japão, a Coreia do Sul, a Alemanha, a França ou a Inglaterra - todos eles contribuíram com fundos. Cidades como Viseu, Aveiro, Fafe, Leiria e Coimbra - todas elas forneceram operários mais ou menos qualificados. Empresas nacionais (como a Edimar ou a Soares da Costa) e locais (como a Movelcar ou a Santos e Matos) - todas elas apressaram projectos. Mas foi o povo o primeiro a reagir. «Ninguém mais do que as pessoas sinistradas queriam as casas de pé. Tivemos sempre isso em mente. O povo foi o grande herói daquilo tudo», recorda João Bosco Mota Amaral, presidente da Assembleia da República, então líder do executivo regional.

O sismo de 1 de Janeiro de 1980, que atingira 6,9 na escala de Richter (máximo de 8) e 11 na de Mercali (máximo de 12), foi brutal: com epicentro a apenas 15 quilómetros a Sul-Sudoeste de Angra (a povoação mais dramaticamente atingida), foi perceptível durante 20 segundos num raio de 120 quilómetros e produziu mais de 300 réplicas em três meses. Entre as populações, apanhadas à hora em que terminava o almoço de Ano Novo (15:42), houve mortos, feridos, abortos, partos prematuros e ataques cardíacos. Grande parte dos edifícios colapsou. Mas não houve pilhagens. Ao fim de apenas dez dias, marcados por chuvas torrenciais, os entulhos estavam todos removidos e/ou encostados às paredes, com as estradas desobstruídas. Milhares de pessoas foram realojadas (escolas, tendas, módulos metálicos, barracas de madeira e casas pré-fabricadas), correndo às distribuições de comida e de roupa, improvisando espaços de culto e tentando resistir aos atritos da vizinhança forçada - o crime quase não aumentou. E, então, numa cidade que quase nem sequer tinha arquitectos (apenas seis inscritos na Ordem), toda a gente se transformou num operário de construção civil - pedreiros os mais habilidosos, serventes os restantes. O léxico foi reforçado com novos termos, estranhos até então: «palette», «picar», «três por um», «ferro de doze», «prego número dez». Alguns inventaram novos tipos de sismógrafos, com copos de água cheios ou latas empilhadas - muitas vezes por brincadeira. Outros simplesmente criaram anedotas. Uma delas fala de dois homens que se encontram na rua. «A tua casa sofreu muito», pergunta um. «Não, caiu de repente», responde o outro. E o trabalho continuava.

«Responsabilizar as pessoas foi a melhor maneira de impedir que se repetisse a emigração maciça verificada após a erupção dos Capelinhos ou a crise sísmica de São Jorge. Em 1964, o navio Lima parecia uma Arca de Noé a caminho de Angola», explica Mota Amaral. Os receios tinham razão de ser: poucos dias depois do sismo, o senador americano John H. Chafee, de Rhode Island, fez aprovar uma nova quota especial para imigrantes açorianos. Mas a reconstrução rápida e eficaz de Angra foi considerada prioritária desde o início, tanto pelo Governo Regional como pelo executivo nacional, chefiado por Francisco Sá Carneiro e com Cavaco Silva no lugar de ministro das Finanças. Na manhã imediatamente a seguir ao sismo, chegou à Terceira José Correia da Cunha, número 2 do Governo Regional, para fundar um Gabinete de Apoio à Reconstrução (GAR), que passou a coordenar todo o processo civil, fazendo a ponte entre os sinistrados e os empreiteiros - só as igrejas e os monumentos ficaram a cargo da Direcção Regional dos Assuntos Culturais. Os fundos foram aparecendo de várias origens, a Caixa Geral de Depósitos disponibilizou empréstimos a 30 anos e com juros altamente bonificados - em alguns casos de quatro por cento, quando a média na altura era de 20 por cento - a rádio e a televisão foram mobilizadas para informações e briefings diários, a hora mudou para haver mais 60 minutos de sol e a cidade começou a renascer. «Foi a melhor coisa que fiz em cinquenta anos de serviço público», diz hoje Correia da Cunha, 76 anos, reputado engenheiro e geógrafo que depois foi responsável pelo saneamento básico do Algarve. Pessanha Viegas, o homem que lhe sucedeu no GAR, ficou mais tarde com a reedificação do Chiado, em Lisboa.

O êxito da reconstrução foi reconhecido internacionalmente. Num estudo americano divulgado em 1983, feito por uma extensa equipa chefiada pelo investigador Alexander Shaphleigh, o processo é considerado «remarkable» - «admirável». Em 1985, mais de 85 por cento dos edifícios destruídos nas três ilhas estavam outra vez de pé, agora com novas condições sanitárias e de segurança. Foi talvez o único erro da obra: o excessivo endurecimento das construções, com demasiado ferro e demasiado betão. Mas, quando voltou a Angra para a reinauguração da Sé Catedral, em 1984, Mota Amaral escolheu uma frase de efeito diferente: «Nem Filipe II teria feito melhor», disparou (a Sé é parcialmente filipina). Com o Faial e o Pico, que em 1998 sofreram um sismo de magnitude menor (5,6 Richter), nunca foi possível dizer isso. «É claro que na Terceira foram feitos gastos estúpidos, mas a eficácia foi sempre privilegiada, em detrimento da eficiência. O lema era: 'Faça o mais bem feito que puder, mas faça'. Na Horta, estão a ser feitos todos os estudos, todos os cálculos. Privilegiou-se a eficiência. Mas as casas estão no chão há cinco anos e as pessoas passam o dia no café, à espera de que o Governo as ponha de novo em pé», comenta Francisco Reis Maduro-Dias. Na ilha do Faial, as obras foram suspensas por falta de fundos e depois constituiu-se uma sociedade anónima que pediu um empréstimo de 77,5 milhões de euros para a reconstrução. O prazo para a conclusão dos trabalhos é, para já, o final de 2004.

A VOLUNTÁRIA DA CONCEIÇÃO

Fátima Laranjo era viúva há três anos quando se deu o terramoto. A sua casa resistiu razoavelmente, os filhos estavam criados, o trabalho de professora primária ocupava-lhe apenas uma parte do dia - e ela saiu para ajudar. O primeiro trabalho que fez foi a coordenação do processo de reconstrução do Império dos Inocentes da Guarita, um daqueles edifícios pitorescos no seio de qual se organizam as iluminações e as touradas que marcam a paisagem terceirense. Foi um trabalho duro: ainda não havia legislação para os subsídios, os vizinhos estavam mais preocupados com as suas próprias casas e o processo demorou. Depois, no entanto, tudo se precipitou: a lei apareceu (a DRAC subsidiava 90%), um empreiteiro mostrou-se generoso, a vizinhança colaborou - e o império reconstruiu-se. Então, começaram a chegar pedidos de outros impérios. Ao todo, Fátima Laranjo tratou da reconstrução de oito (todos da freguesia da Conceição): organizava os documentos, promovia festas e peditórios, espicaçava as consciências, - enfim, punha as coisas a mexer. Quando acabou o oitavo império encontrou Gil Mendonça, o cónego encarregado pela Diocese de tratar da reconstrução das igrejas. «Encontrámo-nos ali ao pé da ermida do Santo Cristo e ficámos a olhar para aquilo tudo destruído. E então ele perguntou-me: 'Dona Fátima, porque é que não lhe bota a mão também?' E eu botei», conta Fátima, hoje com 74 anos. Seguiram-se ermidas e capelas, num trabalho que durou toda a década de 80.

UMA CIDADE COM HISTÓRIA

Angra do Heroísmo desempenhou, entre os séculos XV e XIX, um papel fundamental na história da Expansão europeia, funcionando, tanto para portugueses como para espanhóis (no domínio filipino), como porto de abrigo e placa giratória para os navios a caminho de África, do Oriente, da América do Sul e da América do Norte. A sua história é repleta de feitos, até ao declínio provocado pela chegada dos motores a vapor às embarcações marítimas.

1427-39 As ilhas dos Açores são descobertas.

1474 João Vaz Corte-Real é designado primeiro donatário da capitania de Angra e Álvaro Martins Homem inicia a remodelação arquitectónica renascentista da Vila.

1499 Paulo da Gama, regressando com o irmão Vasco da viagem de descoberta do caminho marítimo para a Índia, morre e é sepultado em Angra.

1534 Angra é feita cidade por D. João III e o Papa Paulo III cria o Bispado de Angra e Ilhas dos Açores.

1580 As hostes de D. António Prior do Crato repelem a Armada de Filipe II, de Espanha.

1580-1583 Angra é proclamada sede do governo nacional do País.

1582 D. António é aclamado em Angra como Rei de Portugal.

1583 A cidade é finalmente conquistada pelos espanhóis.

1642 D. João IV dá à cidade o título de «Mui Nobre e Sempre Leal», conseguida a rendição dos espanhóis.

1669-1674 D. Afonso VI é preso no Castelo de São João Baptista.

1766 Marquês de Pombal instala em Angra a sede da Capitania-Geral dos Açores, governo político, civil e militar.

1821 A Constituição Liberal é jurada em Angra.

1828 Angra acolhe uma revolução liberal, a favor dos direitos de D. Pedro IV, sendo aclamada rainha D. Maria II e jurada a Carta Constitucional. A Junta Provisória declara a Ilha Terceira única sede do Governo legítimo.

1828-1829 Angra é sede da Junta Provisória e capital constitucional do Reino.

1829-1832 Instala-se em Angra se Regência do Reino, presidida pelo Marquês de Palmela e D. Maria II atribui à cidade a Grã-Cruz da Torre e Espada e o título de «Muito Nobre, Leal e Sempre Constante Cidade de Angra do Heroísmo».

1983 A UNESCO torna a Zona Central de Angra do Heroísmo no primeiro bem português inscrito na lista de Património Mundial.

DOZE BENS CLASSIFICADOS

A Convenção para a Protecção do Património Mundial, Cultural e Natural foi criada em 1972, na Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Mais de 150 países inscreveram-se ao longo dos anos, do que resultou a classificação de 690 bens Culturais, Naturais ou Mistos. Portugal, que aderiu em 1979, tem hoje doze locais e/ou conjuntos arquitectónicos classificados e faz parte do Comité que decide sobre as inscrições na lista do Património da Humanidade.

1983 Zona Central de Angra do Heroísmo CULTURAL

1983 Mosteiro dos Jerónimos e Torre de Belém (Lisboa) CULTURAL

1983 Mosteiro da Batalha CULTURAL

1983 Convento de Cristo (Tomar) CULTURAL

1988 Centro Histórico de Évora CULTURAL

1989 Mosteiro de Alcobaça CULTURAL

1995 Paisagem Cultural de Sintra MISTO

1996 Centro Histórico do Porto CULTURAL

1998 Sítios Arqueológicos no Vale do Rio Côa CULTURAL

1999 Floresta de Laurissilva (Madeira) NATURAL

2001 Centro Histórico de Guimarães CULTURAL

2001 Alto Douro Vinhateiro CULTURAL

ARQUIPÉLAGO MÁRTIR

Os elementos abateram-se sobre as ilhas dos Açores ao longo de todo o século XX. Da morte à emigração, e desta à resistência, os açorianos fizeram um longo percurso mental na abordagem da sua relação com a natureza. Hoje, a tendência é para arregaçar as mangas.

1907 Erupção submarina na Fractura Mónaco, a Sul-Sudoeste de São Miguel. Emitiu cinzas e provocou o corte do cabo submarino S. Miguel-Faial.

1926 Grande sismo na cidade da Horta (31 de Agosto), com oito mortos, mais de 200 feridos e destruição generalizada na Horta e freguesias vizinhas. Foram derrubadas 4138 casas.

1957 Erupção do Vulcão dos Capelinhos, no Faial, provocando a destruição de habitações e campos. Uma quota especial de imigração, aprovada pelo Congresso dos EUA, desencadeou um autêntico êxodo.

1963 Crise sísmica e erupção submarina no Pico (12-15 de Dezembro), com bolas e/ou nuvens de vapor saindo do mar.

1964 Crise sísmica em S. Jorge, danificando mais de 900 casas e destruindo outras 400. Foram evacuados inúmeros jorgenses, dos quais muitos acabaram por emigrar para Angola.

1973 Crise sísmica no Pico e no Faial (a partir de 11 de Outubro), registando-se a 23 de Novembro um violento sismo que resultou em casas destruídas, muros caídos e estradas obstruídas.

1980 Sismo na Terceira, S. Jorge e Graciosa (1 de Janeiro ), com intensidade 6,9 Richter, provocando destruição generalizada - sobretudo na ilha Terceira -, matando 71 pessoas e ferindo mais de 400.

1981 Nova erupção submarina na Fractura Mónaco, com emissão de gases e de material basáltico.

1986 Violento temporal nas ilhas do grupo Central, com avultados estragos provocados em edifícios e embarcações.

1991 Erupção submarina no Banco D. João de Castro, com intensa actividade micro-sísmica sentida na Terceira e em S. Miguel.

1992 Violento temporal nas ilhas dos grupos Oriental e Central, com avultados estragos provocados em edifícios e embarcações.

1997 Nova erupção no Banco D. João de Castro, com actividade micro-sísmica sentida na Terceira e em S. Miguel.

1997 Aluimento de terras na Ribeira Quente, em S. Miguel (31 de Outubro), com 29 mortos, três feridos graves e 114 pessoas desalojadas..

1998 Sismo no Faial, Pico e S. Jorge (9 de Julho), com uma magnitude 5,6 Richter e epicentro a Nor-Nordeste do Faial, provocando oito mortos e 1700 desalojados.

1999 Erupção vulcânica submarina na Serreta, Terceira, com emissão de gases e de lava basáltica. A erupção extinguiu-se oficialmente a 2 de Outubro de 2001.

«A PRÓXIMA É EM 2007-2008»

Victor Hugo Forjaz, sismólogo e vulcanólogo do departamento de Geociências da Universidade dos Açores, garante que a próxima crise sísmica no arquipélago ocorrerá em 2007-2008. Não é possível prever as suas dimensões, mas a data e a região de incidência são mais ou menos fáceis de delimitar. «Os cliclos sísmicos, ensina-nos a História, são de mais ou menos nove/dez anos e percorrem longitudinalmente o arquipélago de Oeste para Leste, e vice-versa. A isto chama-se Hábito de Bullard», explica Victor Hugo, em mais uma das suas extremamente contestadas teses. Com base no estudo das crises sísmicas verificadas no século XX, Victor Hugo prevê que a próxima manifestação tectónica violenta ocorra algures no Grupo Central. E exceptua daqui a actividade em torno da erupção submarina ao largo da Serreta (Terceira), extinta em 2001, que era de origem vulcânica.

A AMEAÇA DAS TÉRMITAS

Texto de Joel Neto: GRANDE REPORTAGEM 152, 6 de Dezembro de 2003

" No início dos anos 80, um grupo de loucos sobrepôs-se ao voluntarismo do povo para fazer da reconstrução de Angra do Heroísmo mais do que uma missão heróica - uma missão sublime. A cidade comemora amanhã duas décadas sobre a classificação como Património Mundial. Três anos antes, a 1 de Janeiro de 1980, fora arrasada por um dos maiores terramotos alguma vez registados em Portugal.

Centro de Angra e Monte Brasil vistos da Memória

No Verão 1980, cansado das correrias e das pessoas que todas as manhãs faziam fila junto ao gabinete de sete secretárias onde despachava, Jorge Forjaz, historiador em stand-by e Director Regional dos Assuntos Culturais, decidiu tirar um dia para si próprio. Um dia só - e então voltaria às correrias e às pessoas e aos monumentos e a tudo aquilo que o fazia andar de jipe, botas da tropa e camuflado, de manhã à noite, durante a semana e aos domingos, entre resgates patrimoniais, requerimentos burocráticos e reuniões plenárias na Polícia, nos Bombeiros, nas Juntas de Freguesia. Naquele dia, foi à Silveira. A Silveira é uma pequena praia de rocha junto a Angra do Heroísmo, muito popular desde que o mundo é mundo. Orgulhoso do seu fôlego de nadador, erguendo os braços e inspirando como quem retempera energias, saltou para a água e nadou - nadou junto ao fundo e enquanto conseguiu aguentar, a água fresca percorrendo-lhe o corpo e preparando-o para um recomeço. Então, perdeu o ar e voltou à superfície. Voltou depressa, como se saltasse do interior da água, o cabelo sacudido com vigor, em sinal de força e de vida. E, ao abrir os olhos, viu outro banhista. Estava ali à sua frente, mergulhado até ao pescoço, esperando impaciente que voltasse do fundo do mar. «Ainda bem que o encontro!», exclamou. «Temos uma série de assuntos para tratar.»

Durante quase cinco anos, foram assim as vidas de Jorge Forjaz, Rui Andrade ou qualquer um dos outros técnicos e colaboradores do processo de reconstrução das igrejas, monumentos e prédios históricos de Angra do Heroísmo: uma missão permanente. José Guilherme Reis Leite (secretário regional da Educação e Cultura), Álvaro Monjardino (ex-ministro dos Assuntos Parlamentares), Rui Mesquita (presidente da Câmara Municipal), Manuel Baptista de Lima (presidente do Instituto Histórico da Ilha Terceira), Francisco Reis Maduro-Dias (historiador e arqueólogo ligado ao Museu de Angra) ou Luís Durão (arquitecto da Direcção Regional dos Assuntos Culturais) - cada um com um contributo diferente, foram eles quem conseguiu, em menos de quatro anos, transformar uma cidade destruída por um terramoto no primeiro bem português classificado pela UNESCO como Património Mundial. Mota Amaral, que tutelou o processo enquanto presidente do Governo Regional (1976 e 1995), chama-lhe «uma obra notável, de dimensões épicas». José Correia da Cunha, que ficara encarregado de coordenar a reconstrução dos edifícios privados ou sem valor histórico, recorda-o como «um trabalho extraordinário», a que era difícil dar valor na altura.

«Era como se eles funcionassem a cores e o resto de nós a preto e branco. Como se vivessem numa frequência diferente da nossa. Porque a nossa prioridade eram as pessoas, as casas, as ruas. A deles era resgatar azulejos, salvar cantarias, apanhar pedacinhos de cal caídos no chão. E só hoje podemos aperceber-nos verdadeiramente da importância que isso teve», acrescenta Correia da Cunha. Durante a meia década que sucedeu ao brutal sismo de 1 de Janeiro de 1980, um dos maiores alguma vez registados em Portugal, Angra do Heroísmo foi sobretudo um grande estaleiro de obras, com entulhos empurrados contra as paredes, edifícios cercados de cabos de aço e novos taipais brotando diariamente do solo. Mas, para aqueles homens da «frequência diferente», o objectivo era claro: salvar o máximo possível a cada dia que passasse. Talhas douradas, brasões, telas, cochins e castiçais, mas também muros derrubados, chaminés ameaçadas, pedaços de alvenaria - tudo era resgatado, catalogado, escorado e/ou armazenado, consoante as necessidades. Chamavam-lhes «loucos», e muitas vezes o trabalho era feito contra a própria vontade dos proprietários, com quem chegava a haver discussões aos gritos. Mas eles iam a todas, e em muitos casos levavam a sua avante. «Havia falta de sensibilidade da generalidade da população para o património. Até porque se perdera a tradição dos mestres-canteiros, capazes de desenhar e fazer com bom-gosto pela sua própria mão. Mas a verdade é que era intelectualmente arriscado dizer que se andava a salvar o património cultural, quando o que as pessoas queriam era ver as suas casas de pé», recorda Jorge Forjaz, hoje com 59 anos. «Quando alguém reclamava que não era possível salvar isto ou reconstruir aquilo, eu só dizia: 'Os nossos antepassados tinham cordas e escadas e fizeram-no!' E as coisas faziam-se.»

Forjaz escrevia para os jornais, ia a discussões públicas, apresentava programas na televisão. Os Açores e o Património, que a RTP-Açores transmitiu durante anos a fio, ficou como um marco: exibia uma reportagem semanal junto de pedreiros e serventes, mostrando como se fazia isto ou aquilo - e era Forjaz, que não tinha formação em engenharia e de início nem sabia ler uma planta, quem funcionava como pivot. Outros, como o engenheiro civil Rui Andrade, nomeado a certa altura chefe do Gabinete de Fiscalização da Reconstrução dos Monumentos e das Igrejas, trabalhavam mais na sombra, em silêncio. Mas ainda hoje estão gratos pela oportunidade. «Foi um privilégio. Pude colocar o meu trabalho ao serviço da comunidade e aprendi muito, inclusive sobre os valores da solidariedade e da camaradagem», diz Andrade, actualmente com 55 anos. Nenhum deles tinha vida familiar, não havia horas para chegar a casa, o gabinete de despacho era, muitas vezes, onde quer que estivesse a pasta e alguém pedisse um subsídio - a mesa de um restaurante, o balcão de um café, a própria rua. «Éramos um exército. Cada um de nós era ao mesmo tempo general, capitão, sargento e soldado. E o nosso campo de batalha era a ilha Terceira, sobretudo Angra do Heroísmo», conta Jorge Forjaz

Fundada a 21 de Agosto de 1534, feita sede de bispado nesse mesmo ano e decretada duas vezes capital do Reino (1580 e 1828), Angra albergava então 500 anos de cultura europeia, asiática, africana e sul-americana. Gaspar Frutuoso, no século XVI, chamara-lhe «universal escala do mar poente», e a verdade é que foi sempre possível encontrar ali, ao longo dos séculos, um pouco do ouro de São Jorge da Mina ou do marfim de Sofala, mesmo da fruta da Bahia ou das especiarias de Goa. Em 1980, o esplendor da cidade era já uma coisa do passado - o século XIX e a navegação a vapor retiraram-na das rotas internacionais - mas durante os 300 anos anteriores (sobretudo os dois primeiros) aquele que era o principal porto dos Açores foi um ponto de escala obrigatória para as Descobertas e a exploração colonial, uma autêntica placa giratória entre a Europa, o Oriente e as Américas - a posterior instalação de uma base americana na freguesia das Lajes, onde ainda este ano decorreu a Cimeira Atlântica com Bush, Blair e Aznar, é prova dessa importância estratégica. E, 450 anos depois da fundação, as marcas dessa história continuavam indeléveis nas ruas da cidade: tanto no desenho renascentista, feito a régua e esquadro por Álvaro Martins Homem, navegador que conhecia os ventos e lhe deu aquele aspecto quadrilátero, com ruas paralelas e perpendiculares ao mar, como na malha urbana, feita de edifícios com uma traça muito própria, de cantarias lisas ou emolduradas, sacadas de madeira com rótulas e aventais nas janelas de peito. A Angra, compararam-na muitas vezes com as mais diversas cidades brasileiras, mas as tentativas pecaram sempre por forçadas.

Só que, a 1 de Janeiro de 1980, não foi apenas Angra do Heroísmo o que foi colocado em causa. Nas três ilhas atingidas (Terceira, São Jorge e Graciosa) passou a jogar-se não só a sobrevivência das povoações e o destino das pessoas, mas também a imagem e o futuro da jovem Autonomia dos Açores, fundada escassos quatro anos antes, em 1976. Ser capaz de reconstruir Angra com respeito pelo passado tornou-se quase uma obsessão para quem conhecia a importância da História. Mas, depois de haver quem sugerisse que simplesmente se arrasasse a cidade e se construísse uma nova noutro local - ou quando muito, numa solução de compromisso, que se mantivessem as fachadas e se fizessem casas novas por detrás das antigas - a simples reedificação da cidade, com maior ou menor tributo ao que ela um dia representara, era em si um desafio. «A autonomia regional dava os primeiros passos e a transferência de poderes decorria a conta-gotas, rodeada de receios. Reerguer Angra foi como que as nossas esporas de ouro. Demonstrámos que estávamos preparados para enfrentar problemas com dimensões históricas, e isso trouxe um novo reconhecimento à autonomização do governo do arquipélago», sublinha Mota Amaral. Para não correr riscos e ainda assim tentar um brilharete, o Executivo regional constituiu o Gabinete de Apoio à Reconstrução (GAR) para tudo o que fosse processo comum e delegou na Direcção Regional dos Assuntos Culturais (DRAC), dependente da Secretaria Regional de Educação e Cultura (SREC), a reconstrução de igrejas, palácios, solares, fortificações e edifícios seculares - todos os exemplos de arquitectura religiosa, militar e civil que transformavam Angra numa cidade única. Mas a verdade é que engenharia civil e cultura nunca se desligaram uma da outra: quando a Câmara apresentou a medalha comemorativa dos 450 anos da cidade, em 1984, o verso trazia cunhados os módulos metálicos do Cerrado do Bailão, onde, durante vários anos, estiveram alojadas centenas de pessoas à espera de habitação social.

A agilização dos processos não foi imediata. Até porque, para muitos os que mais tarde vieram a representar papéis importantes nas duas missões, o terramoto foi também uma catástrofe pessoal. O presidente da Câmara Rui Mesquita, por exemplo, havia sido empossado escassas 24 horas antes do sismo - e os primeiros tempos de mandato foram mais uma espécie de despertar para a catástrofe que o rodeava do que propriamente um arregaçar de mangas para a combater. «Só caí em mim ao fim de doze dias. E as minhas prioridades eram a água, a luz e que o Rádio Clube de Angra estivesse a funcionar para dar informações às pessoas», conta, agora com 62 anos. Francisco Reis Maduro-Dias, que em 1987 viria a instalar e chefiar o primeiro Gabinete da Zona Classificada de Angra, casara-se no Porto pelos dias do sismo e, ao regressar a Angra, encontrou destruída a casa que passara dois anos a restaurar com as próprias mãos. «Não tive lua-de-mel. Em sete anos, vivi em sete casas e dormi em nove camas diferentes», conta hoje, aos 50 anos. Mas a vontade de resistir nunca desapareceu. O poeta Santos Barros, morto três anos depois, sintetizou-a em dois versos: «Não perecer*s, ó destruída! Havemos de reerguer-te, casa a casa...» E a verdade é que havia por onde começar. As paredes das igrejas eram pesadas, mas as coberturas eram leves - e, ao contrário do que aconteceu em Lisboa durante o terramoto de 1755 (7,9 na escala de Richter), em que centenas de pessoas pereceram sob os tectos dos templos, alguns dos edifícios importantes não chegaram a aluir por completo. Mais: a Sé Catedral colapsou bastante tempo depois e ainda foi alvo de um violento incêndio, mas salvaram-se dois arcazes em jacarandá e uma moldura do tecto a partir da qual foi possível reconstituir a cobertura toda.

Depois de uma fase inicial em que os proprietários das casas classificadas comuns começaram a colocá-los de pé sem controlo nenhum - ao fim de dez dias já havia obras por conta própria -, o trabalho foi ganhando método. Reforçada a DRAC, que no início tinha apenas um arquitecto e um desenhador, a abordagem da destruição passou a seguir um critério de etapas sucessivas: limpeza do edifício, escorações e protecções, recolha e armazenamento dos objectos de valor, levantamentos detalhados, medições, fotografias, estudos de pormenor, constituição e execução de projectos. Nem todos os cidadãos aderiram, mas aqueles que o fizeram passaram a dispor de legislação especial, prevendo financiamentos a fundo perdido para casas classificadas (50%), associações culturais e desportivas (90%), impérios do Espírito Santo (90%), igrejas da Diocese (90%) e capelas e ermidas privadas (50%). As regras tornaram-se apertadíssimas, inclusive para as zonas rurais, mas a possibilidade de subsídios fez das pessoas reféns do processo. «Foi isso que acabou com muitas das resistências. No limite, os proprietários podiam mesmo vir a ser expropriados das suas casas, através de mecanismos previstos na lei», recorda José Guilherme Reis Leite, 60 anos, então secretário Regional da Educação e Cultura e um dos principais negociadores da lei. É nesta altura que o gabinete de Jorge Forjaz, que no início partilhava uma única sala com outros sete serviços da SREC - as instalações da Secretaria ruíram e a máquina burocrática instalou-se toda num pequeno prédio, antiga sede da PIDE -, deixa de ter apenas uma fila de pessoas à porta: dezenas e dezenas de pessoas passaram a amontoar-se diariamente junto à DRAC, à espera da aprovação de projectos e do desbloqueamento de verbas.

O trabalho ganhou então ritmo de cruzeiro. Uma recolha fotográfica iniciada ainda antes do terramoto permitiu a catalogação por edifício (e não por rua) numa escala 1/200, a DRAC passou a reunir todas as quintas-feiras com um representante da Diocese - o cónego Gil Mendonça - para discutir a reconstrução dos templos, os monumentos não religiosos e as áreas de intervenção urbana foram devidamente priorizados e chegou-se mesmo a utilizar técnicas absolutamente inovadoras de reedificação, como foi o caso da recolocação de uma parede do Palácio dos Capitães Generais com um macaco ainda em protótipo, sem necessidade de separar as cantarias umas das outras. O relógio da Sé continuou nas 15:42, a hora do sismo, até à reinauguração do espaço em 1984 - mas, lentamente, os monumentos foram renascendo: as igrejas da Misericórdia e da Conceição, o edifício da Câmara Municipal, o obelisco a D. Pedro IV, os solares e os conventos, as igrejas e as capelas, os fortes e até um hospital militar de valor histórico incalculável. A última grande inauguração foi em 1997, quando reabriu ao público o Museu de Angra do Heroísmo e a Igreja de São Francisco, ao cimo da rua homónima. As igrejas das Concepcionistas e do Livramento ainda estão em ruínas, mas têm o início da reconstrução previsto para breve.

Foi pouco depois do início deste processo que nasceu a possibilidade de candidatar a cidade à lista do Património da Humanidade, também chamado Património Mundial. A UNESCO enviara uma comissão à Terceira entre 23 e 31 de Janeiro de 1980, para avaliar a destruição, mas só em 1981, quando Álvaro Monjardino passou por Paris, o desafio lhe foi lançado a sério. «Disseram-me: 'Então Portugal assina uma Convenção e dois anos depois ainda não apresentou nenhum projecto?' E eu pensei: 'Está aqui uma oportunidade de sermos pioneiros.' Trouxe a ideia, apresentei-a ao Baptista de Lima e, dali a pouco, o Instituto Histórico da Ilha Terceira estava a trabalhar no dossier, com o conhecimento da DRAC», recorda Monjardino, hoje com 73 anos, naquela altura um ex-ministro de Mota Pinto regressado à vida de empresário e advogado. O processo, impulsionado sobretudo pela força e pela experiência de Baptista de Lima, entretanto falecido, chegou a ser rocambolesco: Angra entregou o projecto ao Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) - a quem competia registá-lo na UNESCO - em Novembro de 1981, para ser traduzido e entregue até ao final do ano, mas só em finais de Janeiro o documento chegou a Grainha do Vale, embaixador em Paris, que teve de proceder pessoalmente à tradução, com a ajuda das secretárias. Foi por isso que, sendo a primeira candidata e acabando por ser também o primeiro bem português classificado, Angra teve de partilhar o seu dia de glória, já no final de 1983, com o Mosteiro dos Jerónimos/Torre de Belém (Lisboa), os mosteiros de Alcobaça e da Batalha e o Convento de Cristo (Tomar), entretanto também indicados pelo MNE. Mas isso também lhe proporcionou tempo para recorrer ao dossier de La Valletta (Malta) e corrigir defeitos no portfolio fotográfico e na fundamentação da proposta, assim como para fazer lobbying e reunir apoios tão diversos como os da Secretaria de Estado do Vaticano, do senador americano Edward Kennedy ou do presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, Thomas P. O'Neill. No final da reunião decisiva, que decorreu em Villa Medicea de Poggio a Caiano (Florença) entre 5 e 9 de Dezembro, Portugal acabou elogiado pela coerência dos seus projectos, todos englobados numa lógica expansionista. Angra, classificada no dia 7, entrou pelos critérios IV e VI: a sua importância como escala de rotas marítimas e o seu papel na aproximação das civilizações. «Angra conservou, mesmo depois do terramoto de 1 de Janeiro de 1980, a melhor parte do seu património monumental e um conjunto urbano homogéneo», dizia a declaração.

No momento em que regressava à ilha, contou mais tarde, o arquitecto Luís Durão chegou a sonhar com uma recepção calorosa, do tipo «vitória na Taça dos Campeões Europeus». Mas nada - apenas um homem lhe deu uma palmada nas costas e lhe disparou: «Então, lá te classificaram a cidade...» Jorge Forjaz, que havia levantado sozinho uma pedra demasiado grande, estava internado no Hospital da Cruz Vermelha, em Lisboa, a convalescer de uma operação a uma hérnia discal. O próprio Rui Andrade, ao saber da notícia, encolheu os ombros e continuou o trabalho. «A obra que vínhamos fazendo valia por si própria, com ou sem classificação. Teríamos sempre motivos para estarmos orgulhosos. A Angra actual é também o legado de uma geração», diz. «Sinto-me um privilegiado», acrescenta Rui Mesquita, olhando para trás. Lentamente, Angra do Heroísmo voltava então a ser a cidade descrita num poema memorável de Marcolino Candeias, curiosamente hoje o presidente do Gabinete da Zona Classificada, para onde foi depois de chefiar a DRAC: «Angra oh minha cidadezinha de bolso querida/minha putefiazinha maquilhada de ternura/oh rola de papo vaidoso da Memória de D. Pedro IV/do Cais das Pipas para as naus das Índias de/D. Afonso VI babando-se de tolo pelos Canos Verdes/Oh minha tolinha inchada de orgulho do aqui-j*-foi-só-Portugal (...).» Uma cidade às vezes pequenina e mesquinha, sim, mas noutras grande e orgulhosa do seu passado. «As pessoas deram-se conta da envolvência urbana ao chorarem as pedras deslocadas ou caídas. E pela primeira vez aperceberam-se da importância que elas tinham na sua vida», escreveu então Luís Durão, elogiando a participação popular. «Angra do Heroísmo era de uma beleza tal que não podia nunca morrer. A alma da cidade clamava pelo seu corpo. E hoje é de novo uma pequena jóia», sintetiza Mota Amaral. Jorge Forjaz, recém-investido conselheiro cultural da embaixada de Portugal em Rabat (Marrocos), foi condecorado no 10 de Junho pelo Presidente da República como Grande Oficial da Ordem do Mérito. «Estou certo de que foi por causa do trabalho após o terramoto», reflecte.

Bem vistas as coisas, o sismo tivera efeitos positivos. A reconstrução foi elogiada nos mais diversos jornais nacionais e internacionais - o semanário Expresso considerou-a recentemente a sexta de 30 razões para estarmos orgulhosos de Portugal. Tudo o que é património está devidamente inventariado. As ruas retomaram a antiga toponímia. O betão é talvez excessivo, mas as casas são seguras e têm agora quarto-de-banho. Apesar dos telhados cor-de-laranja, sinal de construção recente, é bonita e ordenada quando vista do promontório natural do Monte Brasil. As igrejas destacam-se na paisagem, nos seus variadíssimos estilos arquitectónicos. E, sobretudo, existe vida. «A maior parte das cidades Património Mundial não têm ninguém lá dentro. Aqui, embora não habite muita gente, circulam mais de 15 mil pessoas por dia. Vivem dentro do próprio monumento», sublinha Marcolino Candeias. O Centro de Restauro, inaugurado em 1980, continua o seu trabalho: só recuperou ainda um terço das 150 telas recebidas após o sismo, e muitas das restantes andarão três ou quatro anos a correr as salas brancas, entre sucessivas etapas de recuperação. O Gabinete Zona Classificada viveu momentos de frenesi quando Maduro-Dias enfrentou o então presidente da Câmara, Joaquim Ponte, mas a passagem de Rui Andrade pela presidência da autarquia (1995-97) pacificou as relações. E, hoje, um pedido de licenciamento entra na Câmara, segue para o Gabinete, é apreciado por uma troika que inclui um representante de cada um daqueles dois órgãos e outro da Direcção Regional do Ordenamento e volta à Câmara para ser despachado - quase sempre sem dor. A gestão modelar do estatuto de Património Mundial permitiu mesmo à cidade albergar, em 1988, um congresso internacional da UNESCO e do ICOMOS, a ONG associada para a área das classificações. «Conservar uma cidade não é como conservar um só monumento. Dá muito mais trabalho. Mas a verdade é que, hoje, são os cidadãos os primeiros a preservar isso. No início, o Património Mundial parecia-lhes um empecilho. Hoje, são eles próprio a contestar a instalação de semáforos, de candeeiros novos, mesmo da marina. Não há os projectos abomináveis do passado. Só é pena que o Governo da República tenha despertado tão tarde para isto e que as isenções fiscais, por exemplo, tenham vindo tão tarde», destaca José Guilherme Reis Leite. Só em 2001, com a aprovação da nova Lei do Património (lei 107/01) é que Angra passou a ser Património Nacional, quando há quase 20 anos era Património Mundial e Regional.

O último impulso ao processo foi dado por Sérgio Ávila, eleito para a presidência da Câmara em 1997, quando tinha apenas 28 anos. Com a obsessão de que era preciso «voltar a cidade para o mar», o então menino-prodígio do PS-Açores dividiu muita gente durante muitos anos, mas é hoje capaz de receber os mais rasgados elogios de alguns dos «refundadores» da cidade, todos da área do PSD. «Ao nível municipal, a única pessoa que soube agarrar nisto com força foi o Sérgio. Só ele e mais ninguém», diz Álvaro Monjardino, que foi presidente da Assembleia Regional aos primeiros mandatos de Mota Amaral. Numa cidade em crescimento para fora dos seus limites mas a perder vida interior, a Câmara Municipal iniciou um longo processo de requalificação urbana que só estará concluído em 2008-2010, com a transformação da zona industrial e de combustíveis em parques habitacionais e de lazer. «A lógica é a de que Angra seja cada vez mais uma cidade de serviços e a Praia da Vitória uma cidade de indústria. E há três coisas essenciais que a classificação nos permite: turismo de qualidade, regras de preservação e financiamentos suplementares», diz Sérgio Ávila. Ao longo dos anos, e recorrendo parcialmente ao programa Polis, foram construídas rotundas, melhoradas as iluminações, instaladas esplanadas, lançados os mais diversos festivais (jazz, rock, cinema, folclore, teatro) e, recentemente, importados mais de 80 mil metros cúbicos de areia para reforçar uma pequena praia no centro da baía. O projecto continua com a consolidação das encostas, a requalificação da marginal, a transformação do Porto de Pipas em centro de desportos, a criação de uma zona de restauração e bares do tipo «Docas de Lisboa» (a uma escala menor), a inauguração de uma pousada da Enatur no interior do Castelo de São Sebastião e a instalação de uma outra zona verde e de lazer bem no centro da cidade, entre o Jardim Público e a Miragaia. «A única regra é esta: se a cidade tiver de crescer mais, será para fora da Circular Interna. Cá dentro, só requalificações. A próxima é a conclusão da substituição das habitações precárias do Bairro de São João de Deus», acrescenta Ávila.

A construção da marina, aberta aos barcos há dois anos, desencadeou os mais diversos tipos de polémicas. Foi soterrada uma antiga porta de entrada na cidade, foram relocalizados vários dos inúmeros navios que se encontram naufragados pela baía - e ao longo de muito tempo foi divulgada e esgrimida a ameaça de expulsão do nome de Angra do Heroísmo da lista de Património Mundial. Mas, em 1999, o então Director Regional de Cultura, Luiz Fagundes Duarte, contactou directamente a UNESCO e o ICOMOS e deu-lhes a conhecer todo o projecto da cidade, marina incluída, que foi aprovado por parecer. Ainda há quem não goste. «Antigamente as pessoas tinham de pensar na vida e debruçavam-se naquele muro junto ao mar, a consultar a baía. Era o seu oráculo. E isso acabou», diz Marcolino Candeias. Mas a Câmara tem resposta: «Quando se falava no Porto de Angra, que origina a classificação, falava-se na baía toda, nesta enseada protegida pelo Monte Brasil. E, se essa baía perdeu importância, sobretudo por força da decadência das suas funções portuárias, tem de recuperá-la de outra forma, de acordo com as necessidades do século XXI. O resto, sobretudo as ameaças de perda do estatuto de Património Mundial, nunca passou de um bluff», diz Sérgio Ávila. E a cidade, hoje no centro de um concelho com 19 freguesias e 36 mil habitantes, prossegue o seu caminho: inaugurou parques de estacionamento nas extremidades e colocou carreiras grátis à disposição dos cidadãos (as «Serginhas»), criou um Centro Cultural e de Congressos, tem dois novos hotéis de harmonia paisagística reconhecida e acaba de comprar o edifício da Caixa Geral de Depósitos, um mamarracho sem escola que há vinte anos choca quem chega à Praça Velha pela primeira vez. «Entregámos a obra ao arquitecto Miguel Cunha. Não queremos nem mamarrachos nem pastiches do passado. Queremos arquitectura do nosso tempo. Todas as gerações têm a obrigação de deixar a sua marca nesta cidade», diz Sérgio Ávila. «Penso que, hoje, está provado que Património Mundial é compaginável com progresso», sintetiza Jorge Forjaz. A passagem dos vinte anos sobre a classificação foi festejada ao longo do ano, mas modestamente, quase em silêncio. O principal já estava feito.

COMO RENASCER DOS ESCOMBROS

A 15 de Fevereiro de 1980, um mês e meio depois de a terra tremer, o Governo Regional dos Açores fez um primeiro grande relatório da tragédia: três ilhas atingidas (Terceira, São Jorge e Graciosa), 71 mortos, 400 feridos e 21 296 desalojados. Mas o documento revelava também que nessas mesmas seis semanas, e só na Terceira, haviam sido montadas 415 tendas em diversos aldeamentos improvisados, distribuídos dois mil quilos de lacticínios (manteiga e queijo) e 120 mil unidades de alimentos básicos (pão e leite) e entregues aos sinistrados 1550 toneladas de cimento, 63 toneladas de ferro, 750 metros cúbicos de areia, 950 metros cúbicos de brita, 2800 barrotes e 2750 dúzias de tábuas de forro. Na altura do relatório já havia casas em avançado estado de reconstrução - e então ainda não havia projectos nem empreiteiros, era o povo a trabalhar com as próprias mãos. A frase lapidar de Mota Amaral, proferida escassos dois dias depois da tragédia, produzira efeito. Os açorianos haviam de facto «enxugado as lágrimas e arregaçado as mangas», como ele pedira.

Para todos os efeitos, o primeiro herói da reconstrução das três ilhas, e do concelho de Angra do Heroísmo em particular, foi o próprio povo. Numa comunicação feita três anos mais tarde, durante uma Semana de Estudos promovida pelo Instituto Açoriano de Cultura, o advogado e dramaturgo José Orlando Bretão recorreu a Bertold Brecht para fazer-lhe essa homenagem. «Quem construiu Tebas, a das sete portas?/Nos livros vem o nome dos reis./Mas foram os reis que transportaram as pedras?», citou, recorrendo a Perguntas A Um Operário Letrado. Na verdade, as ajudas vieram de todo o lado. Instituições como a Cruz Vermelha, a Cáritas, a Fundação Espírito Santo, a PSP, o Regimento de Infantaria, a Base Aérea - todas elas acorreram ao que puderam. Países como os Estados Unidos, o Canadá, o Japão, a Coreia do Sul, a Alemanha, a França ou a Inglaterra - todos eles contribuíram com fundos. Cidades como Viseu, Aveiro, Fafe, Leiria e Coimbra - todas elas forneceram operários mais ou menos qualificados. Empresas nacionais (como a Edimar ou a Soares da Costa) e locais (como a Movelcar ou a Santos e Matos) - todas elas apressaram projectos. Mas foi o povo o primeiro a reagir. «Ninguém mais do que as pessoas sinistradas queriam as casas de pé. Tivemos sempre isso em mente. O povo foi o grande herói daquilo tudo», recorda João Bosco Mota Amaral, presidente da Assembleia da República, então líder do executivo regional.

O sismo de 1 de Janeiro de 1980, que atingira 6,9 na escala de Richter (máximo de 8) e 11 na de Mercali (máximo de 12), foi brutal: com epicentro a apenas 15 quilómetros a Sul-Sudoeste de Angra (a povoação mais dramaticamente atingida), foi perceptível durante 20 segundos num raio de 120 quilómetros e produziu mais de 300 réplicas em três meses. Entre as populações, apanhadas à hora em que terminava o almoço de Ano Novo (15:42), houve mortos, feridos, abortos, partos prematuros e ataques cardíacos. Grande parte dos edifícios colapsou. Mas não houve pilhagens. Ao fim de apenas dez dias, marcados por chuvas torrenciais, os entulhos estavam todos removidos e/ou encostados às paredes, com as estradas desobstruídas. Milhares de pessoas foram realojadas (escolas, tendas, módulos metálicos, barracas de madeira e casas pré-fabricadas), correndo às distribuições de comida e de roupa, improvisando espaços de culto e tentando resistir aos atritos da vizinhança forçada - o crime quase não aumentou. E, então, numa cidade que quase nem sequer tinha arquitectos (apenas seis inscritos na Ordem), toda a gente se transformou num operário de construção civil - pedreiros os mais habilidosos, serventes os restantes. O léxico foi reforçado com novos termos, estranhos até então: «palette», «picar», «três por um», «ferro de doze», «prego número dez». Alguns inventaram novos tipos de sismógrafos, com copos de água cheios ou latas empilhadas - muitas vezes por brincadeira. Outros simplesmente criaram anedotas. Uma delas fala de dois homens que se encontram na rua. «A tua casa sofreu muito», pergunta um. «Não, caiu de repente», responde o outro. E o trabalho continuava.

«Responsabilizar as pessoas foi a melhor maneira de impedir que se repetisse a emigração maciça verificada após a erupção dos Capelinhos ou a crise sísmica de São Jorge. Em 1964, o navio Lima parecia uma Arca de Noé a caminho de Angola», explica Mota Amaral. Os receios tinham razão de ser: poucos dias depois do sismo, o senador americano John H. Chafee, de Rhode Island, fez aprovar uma nova quota especial para imigrantes açorianos. Mas a reconstrução rápida e eficaz de Angra foi considerada prioritária desde o início, tanto pelo Governo Regional como pelo executivo nacional, chefiado por Francisco Sá Carneiro e com Cavaco Silva no lugar de ministro das Finanças. Na manhã imediatamente a seguir ao sismo, chegou à Terceira José Correia da Cunha, número 2 do Governo Regional, para fundar um Gabinete de Apoio à Reconstrução (GAR), que passou a coordenar todo o processo civil, fazendo a ponte entre os sinistrados e os empreiteiros - só as igrejas e os monumentos ficaram a cargo da Direcção Regional dos Assuntos Culturais. Os fundos foram aparecendo de várias origens, a Caixa Geral de Depósitos disponibilizou empréstimos a 30 anos e com juros altamente bonificados - em alguns casos de quatro por cento, quando a média na altura era de 20 por cento - a rádio e a televisão foram mobilizadas para informações e briefings diários, a hora mudou para haver mais 60 minutos de sol e a cidade começou a renascer. «Foi a melhor coisa que fiz em cinquenta anos de serviço público», diz hoje Correia da Cunha, 76 anos, reputado engenheiro e geógrafo que depois foi responsável pelo saneamento básico do Algarve. Pessanha Viegas, o homem que lhe sucedeu no GAR, ficou mais tarde com a reedificação do Chiado, em Lisboa.

O êxito da reconstrução foi reconhecido internacionalmente. Num estudo americano divulgado em 1983, feito por uma extensa equipa chefiada pelo investigador Alexander Shaphleigh, o processo é considerado «remarkable» - «admirável». Em 1985, mais de 85 por cento dos edifícios destruídos nas três ilhas estavam outra vez de pé, agora com novas condições sanitárias e de segurança. Foi talvez o único erro da obra: o excessivo endurecimento das construções, com demasiado ferro e demasiado betão. Mas, quando voltou a Angra para a reinauguração da Sé Catedral, em 1984, Mota Amaral escolheu uma frase de efeito diferente: «Nem Filipe II teria feito melhor», disparou (a Sé é parcialmente filipina). Com o Faial e o Pico, que em 1998 sofreram um sismo de magnitude menor (5,6 Richter), nunca foi possível dizer isso. «É claro que na Terceira foram feitos gastos estúpidos, mas a eficácia foi sempre privilegiada, em detrimento da eficiência. O lema era: 'Faça o mais bem feito que puder, mas faça'. Na Horta, estão a ser feitos todos os estudos, todos os cálculos. Privilegiou-se a eficiência. Mas as casas estão no chão há cinco anos e as pessoas passam o dia no café, à espera de que o Governo as ponha de novo em pé», comenta Francisco Reis Maduro-Dias. Na ilha do Faial, as obras foram suspensas por falta de fundos e depois constituiu-se uma sociedade anónima que pediu um empréstimo de 77,5 milhões de euros para a reconstrução. O prazo para a conclusão dos trabalhos é, para já, o final de 2004.

A VOLUNTÁRIA DA CONCEIÇÃO

Fátima Laranjo era viúva há três anos quando se deu o terramoto. A sua casa resistiu razoavelmente, os filhos estavam criados, o trabalho de professora primária ocupava-lhe apenas uma parte do dia - e ela saiu para ajudar. O primeiro trabalho que fez foi a coordenação do processo de reconstrução do Império dos Inocentes da Guarita, um daqueles edifícios pitorescos no seio de qual se organizam as iluminações e as touradas que marcam a paisagem terceirense. Foi um trabalho duro: ainda não havia legislação para os subsídios, os vizinhos estavam mais preocupados com as suas próprias casas e o processo demorou. Depois, no entanto, tudo se precipitou: a lei apareceu (a DRAC subsidiava 90%), um empreiteiro mostrou-se generoso, a vizinhança colaborou - e o império reconstruiu-se. Então, começaram a chegar pedidos de outros impérios. Ao todo, Fátima Laranjo tratou da reconstrução de oito (todos da freguesia da Conceição): organizava os documentos, promovia festas e peditórios, espicaçava as consciências, - enfim, punha as coisas a mexer. Quando acabou o oitavo império encontrou Gil Mendonça, o cónego encarregado pela Diocese de tratar da reconstrução das igrejas. «Encontrámo-nos ali ao pé da ermida do Santo Cristo e ficámos a olhar para aquilo tudo destruído. E então ele perguntou-me: 'Dona Fátima, porque é que não lhe bota a mão também?' E eu botei», conta Fátima, hoje com 74 anos. Seguiram-se ermidas e capelas, num trabalho que durou toda a década de 80.

UMA CIDADE COM HISTÓRIA

Angra do Heroísmo desempenhou, entre os séculos XV e XIX, um papel fundamental na história da Expansão europeia, funcionando, tanto para portugueses como para espanhóis (no domínio filipino), como porto de abrigo e placa giratória para os navios a caminho de África, do Oriente, da América do Sul e da América do Norte. A sua história é repleta de feitos, até ao declínio provocado pela chegada dos motores a vapor às embarcações marítimas.

1427-39 As ilhas dos Açores são descobertas.

1474 João Vaz Corte-Real é designado primeiro donatário da capitania de Angra e Álvaro Martins Homem inicia a remodelação arquitectónica renascentista da Vila.

1499 Paulo da Gama, regressando com o irmão Vasco da viagem de descoberta do caminho marítimo para a Índia, morre e é sepultado em Angra.

1534 Angra é feita cidade por D. João III e o Papa Paulo III cria o Bispado de Angra e Ilhas dos Açores.

1580 As hostes de D. António Prior do Crato repelem a Armada de Filipe II, de Espanha.

1580-1583 Angra é proclamada sede do governo nacional do País.

1582 D. António é aclamado em Angra como Rei de Portugal.

1583 A cidade é finalmente conquistada pelos espanhóis.

1642 D. João IV dá à cidade o título de «Mui Nobre e Sempre Leal», conseguida a rendição dos espanhóis.

1669-1674 D. Afonso VI é preso no Castelo de São João Baptista.

1766 Marquês de Pombal instala em Angra a sede da Capitania-Geral dos Açores, governo político, civil e militar.

1821 A Constituição Liberal é jurada em Angra.

1828 Angra acolhe uma revolução liberal, a favor dos direitos de D. Pedro IV, sendo aclamada rainha D. Maria II e jurada a Carta Constitucional. A Junta Provisória declara a Ilha Terceira única sede do Governo legítimo.

1828-1829 Angra é sede da Junta Provisória e capital constitucional do Reino.

1829-1832 Instala-se em Angra se Regência do Reino, presidida pelo Marquês de Palmela e D. Maria II atribui à cidade a Grã-Cruz da Torre e Espada e o título de «Muito Nobre, Leal e Sempre Constante Cidade de Angra do Heroísmo».

1983 A UNESCO torna a Zona Central de Angra do Heroísmo no primeiro bem português inscrito na lista de Património Mundial.

DOZE BENS CLASSIFICADOS

A Convenção para a Protecção do Património Mundial, Cultural e Natural foi criada em 1972, na Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Mais de 150 países inscreveram-se ao longo dos anos, do que resultou a classificação de 690 bens Culturais, Naturais ou Mistos. Portugal, que aderiu em 1979, tem hoje doze locais e/ou conjuntos arquitectónicos classificados e faz parte do Comité que decide sobre as inscrições na lista do Património da Humanidade.

1983 Zona Central de Angra do Heroísmo CULTURAL

1983 Mosteiro dos Jerónimos e Torre de Belém (Lisboa) CULTURAL

1983 Mosteiro da Batalha CULTURAL

1983 Convento de Cristo (Tomar) CULTURAL

1988 Centro Histórico de Évora CULTURAL

1989 Mosteiro de Alcobaça CULTURAL

1995 Paisagem Cultural de Sintra MISTO

1996 Centro Histórico do Porto CULTURAL

1998 Sítios Arqueológicos no Vale do Rio Côa CULTURAL

1999 Floresta de Laurissilva (Madeira) NATURAL

2001 Centro Histórico de Guimarães CULTURAL

2001 Alto Douro Vinhateiro CULTURAL

ARQUIPÉLAGO MÁRTIR

Os elementos abateram-se sobre as ilhas dos Açores ao longo de todo o século XX. Da morte à emigração, e desta à resistência, os açorianos fizeram um longo percurso mental na abordagem da sua relação com a natureza. Hoje, a tendência é para arregaçar as mangas.

1907 Erupção submarina na Fractura Mónaco, a Sul-Sudoeste de São Miguel. Emitiu cinzas e provocou o corte do cabo submarino S. Miguel-Faial.

1926 Grande sismo na cidade da Horta (31 de Agosto), com oito mortos, mais de 200 feridos e destruição generalizada na Horta e freguesias vizinhas. Foram derrubadas 4138 casas.

1957 Erupção do Vulcão dos Capelinhos, no Faial, provocando a destruição de habitações e campos. Uma quota especial de imigração, aprovada pelo Congresso dos EUA, desencadeou um autêntico êxodo.

1963 Crise sísmica e erupção submarina no Pico (12-15 de Dezembro), com bolas e/ou nuvens de vapor saindo do mar.

1964 Crise sísmica em S. Jorge, danificando mais de 900 casas e destruindo outras 400. Foram evacuados inúmeros jorgenses, dos quais muitos acabaram por emigrar para Angola.

1973 Crise sísmica no Pico e no Faial (a partir de 11 de Outubro), registando-se a 23 de Novembro um violento sismo que resultou em casas destruídas, muros caídos e estradas obstruídas.

1980 Sismo na Terceira, S. Jorge e Graciosa (1 de Janeiro ), com intensidade 6,9 Richter, provocando destruição generalizada - sobretudo na ilha Terceira -, matando 71 pessoas e ferindo mais de 400.

1981 Nova erupção submarina na Fractura Mónaco, com emissão de gases e de material basáltico.

1986 Violento temporal nas ilhas do grupo Central, com avultados estragos provocados em edifícios e embarcações.

1991 Erupção submarina no Banco D. João de Castro, com intensa actividade micro-sísmica sentida na Terceira e em S. Miguel.

1992 Violento temporal nas ilhas dos grupos Oriental e Central, com avultados estragos provocados em edifícios e embarcações.

1997 Nova erupção no Banco D. João de Castro, com actividade micro-sísmica sentida na Terceira e em S. Miguel.

1997 Aluimento de terras na Ribeira Quente, em S. Miguel (31 de Outubro), com 29 mortos, três feridos graves e 114 pessoas desalojadas..

1998 Sismo no Faial, Pico e S. Jorge (9 de Julho), com uma magnitude 5,6 Richter e epicentro a Nor-Nordeste do Faial, provocando oito mortos e 1700 desalojados.

1999 Erupção vulcânica submarina na Serreta, Terceira, com emissão de gases e de lava basáltica. A erupção extinguiu-se oficialmente a 2 de Outubro de 2001.

«A PRÓXIMA É EM 2007-2008»

Victor Hugo Forjaz, sismólogo e vulcanólogo do departamento de Geociências da Universidade dos Açores, garante que a próxima crise sísmica no arquipélago ocorrerá em 2007-2008. Não é possível prever as suas dimensões, mas a data e a região de incidência são mais ou menos fáceis de delimitar. «Os cliclos sísmicos, ensina-nos a História, são de mais ou menos nove/dez anos e percorrem longitudinalmente o arquipélago de Oeste para Leste, e vice-versa. A isto chama-se Hábito de Bullard», explica Victor Hugo, em mais uma das suas extremamente contestadas teses. Com base no estudo das crises sísmicas verificadas no século XX, Victor Hugo prevê que a próxima manifestação tectónica violenta ocorra algures no Grupo Central. E exceptua daqui a actividade em torno da erupção submarina ao largo da Serreta (Terceira), extinta em 2001, que era de origem vulcânica.

A AMEAÇA DAS TÉRMITAS

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